Janela Poética III

Wesley Correia

 

Ilustração: Ana Luiza Tavares

 

Teu homem

 

………………………..Teu homem não virá.
A melodia que, há pouco,
semeaste pelos sulcos da tua pele,
enquanto, aflito, tentavas te limpar
………………………………………………..de ti mesmo,
………………………………………………..não brotará,
………………………………………………..mas restará, seca,
….no fundo das mãos vazias, quedará num
canto do cômodo rarefeito,
e a partitura, então ininteligível,
…………………………………….se executará
………………………………no adverso da regência.

………………………..Teu homem não virá.
Do desejo que imprimiste às ervas aromáticas,
do amor-quase-morte com que,
devotamente, temperaste
.o peixe para o jantar, permanecerá,
tão somente,
..o espasmo de uma premeditação,
…..o sintoma de uma precipitação,
………..a réstia de uma palpitação,
……………….uma deletéria ilusão,
……………………..e uma excitação,
….que nunca tarda em dissipar-se.

………………………..Teu homem não virá.
Recolhe, pois, os pratos, os sapatos,
……………………………….os gatos, os gastos.
Recolhe tuas ânsias, teu querer bem,
………………e tua boca ardente a morder
…………a carne improvável da alegria,
………………………………recolhe-a, também.
E recolhe teu pelo eriçado,
os teus arfares, ai, os teus arfares,
recolhe-os todos!,
e recolhe-te, enfim, a ti mesmo,
quando a chuva, tua confidente,
vier anunciar a noite comprida.

………………………..Teu homem não virá.
Nem hoje
……………nem amanhã
…………………nem depois.
Ama-te, por fim, e sê tu teu próprio homem,
e escandaliza-te com as seivas
de teu corpo transbordante, e ria-se da entrega, e
beije-te a boca, e envolve-te no teu próprio
abraço, e aquece-te no teu calor,
……….e goza contigo, que teu homem aí está.

 

 

 

***

 

 

 

Galope

 

O bêbado levita sobre a maciez
de teu dorso bravio
e tu relinchas.

Ele guarda na mão direita
o redemoinho das caatingas impossíveis
e traz no pé esquerdo
o Décimo Nono Arcano Maior.

Teus olhos são
de esfinge alada
reluzente.

Tu galopas o chão etéreo,
e bebes a secura da terra,
o bêbado ri das profecias mortas.

A vida é sentinela.

 

 

 

***

 

 

 

Noite

 

À noite, tinjo-me de estrelas
e penetro, com o salto
do meu sapato de verniz,
as pedras da cidade.

Fecundo as rochas.

Gasto meu batom azul
em corpos efêmeros,
dou a todos eles os tons
do riso e do prazer.

Pela manhã, volto à rotina:
pego ônibus lotado;
bato ponto;
carimbo dezenas de papéis,
que engendram a máquina colossal,
e chego, sem memória,
ao final do expediente.

Vou pra casa, pintado de constelações
com meu coração sem estrelas.
……..Meu coração sem estrelas
……..tem parido luzes cintilantes.

 

 

 

***

 

 

 

Imaginário

 

Pende entre minhas pernas pretas
um mito gorduroso,
quase impossível de carregar.

E na sua plena atividade,
na diabólica plasticidade,
me arqueia o dorso,
me alquebra o corpo
até interditá-lo.

E na sua robustez de mito,
me debilita a frágil saúde
ainda mais,
nas suas dimensões de mito,
me diminui a forma
ainda mais,
na sua centralidade de mito,
me reduz a toda solidão
do cais.

Por isso, não morram
se eu resolver
extirpá-lo amanhã.

É que minhas pernas pretas
marcham melhor
sem o seu peso incômodo,
minha cabeça preta
se equilibra melhor
sem o seu peso incômodo,
todo o meu corpo preto
se ergue maior
sem o seu peso incômodo.

 

 

 

***

 

 

 

Memória do sol

 

o sorriso
a beleza,
a luz, a pluma e a comoção.

arde-me a fantasia deste sentido querer-te.

 

Wesley Correia nasceu em 21 de Outubro de 1980, em Cruz das Almas, Bahia, e aos dezessete anos publicou seu primeiro conto no Jornal A Tarde. É autor de “Pausa para um beijo e outros poemas” (2006), “Deus é negro” (2013) e “Íntimo Vesúvio” (2017). Atualmente, é professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia – IFBA, onde ministra aulas na Pós-graduação em Estudos Étnicos e Raciais, e outros cursos.

 

 

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