Sel
ODE
Canto 1
1
que dizer a mais do que já dito
desse obscoso formato, ornamental?!
o que para alguns tem de maldito
a outros certamente de imortal
2
qual etna entre tempos se revela
num espetáculo, arco tortuoso
narra a olhos sem pudor sua querela
afligindo até mesmo o virtuoso
3
como quem ardendo se exaspera
lança-se’m pensar, ao mar, ao fundo
eu vi dentre mim nascer a fera
errante animal, vil moribundo
4
que em seu canto, fresco odor, se enleia
chagando o que chamamos de razão
quanto mais fugir tenta d’ sua teia
mais consome, definha esse brasão
5
marca iluminista inda eminente
embora já freud tenha descrito
que esse, subjugado ao inconsciente
fica, apesar do apelo d’ seu mito
6
skinner, com objeto bem diverso
ao relatar sobre essa abrangência
nega ao abstrato, neste universo
delegando-o para a contingência
7
boltzmann e gödel noutra vereda
tangendo aquele vau impossível
criam o que à lógica faz-se azeda
nau onde o contrassenso é compossível
8
nessa via, loucura voluptuosa
em quo acaso ao causo sempre é mote
volvido vou com a agre mucosa
carne na carne, sorvendo o pote
9
satisfação que maslow predizia
ser da boa pirâmide a sua base
cuja carência formula uma azia
corpo transfigurado em estase
10
mesmo q’ depure, reveja o tema
tal rato rói, e o verme o defunto
esse imã, atroz que não queda, rema
disforme, em massa, rompendo junto
Canto 2
11
empinado o glúteo, a língua em bis
sua sombra encerrada como cela
o ânus à manteiga simula um xis
bel tango, masoch, eu, marquês e ela
12
oposto a descartes, q’ pelo juízo
quis tocar metódico o que é real
a episteme, atribui, sem prejuízo
hume, pro empírico, achando-o leal
13
enthousiasmos que em mim só se agrava
afronta pois o ensino d’aquino
o qual ao gênio ofende, deprava
também d’ luther, hipona, Calvino
14
se a marx o fetiche é mercadoria
o capital opressor do infeliz
aqui, donx, escravx, em coautoria
convertem a dor no valor motriz
15
bem mostra-nos aquela multidão
que no ato com françois observara
sanson primeiro torturar-lhe a mão
tronco, o resto após, a tarde cara
16
queimam, vertebras, equus n’alcova
alegorias, comuns arquétipos
homolka, bundy, bodil, malkova
bispanking claire, fados, édipos
17
conquanto comece, exija o perfil
mártir, catella, de hermética ou rés
seu molde revira, perfaz-se em til
amiúde, avessa, reviça, revés
18
perdoe-me leitor se cá me extravio
abuso das figuras pra aduzir
mas é flama a memória, ou um pavio
ora compraz-me o fluxo e faz luzir
19
crua, devassa, nessa contradança
la bruja vislumbra, desfere o fel
de lua, dourada, a bátega, avança
o tédio da última, oblitera, o mel
20
harpia, vampir, agita o chicote
agarra, rebuça, esgatanha o osso
oblíqua, carmina, a própria sorte
cava, retrava, profondo rosso
Canto 3
21
antes d’ seguirmos cabe explicação
ao uso dum termo citado acima
porventura não seja obrigação
contudo dou versão q’ qro que exprima
22
se “obscoso” nd encontra, em lugar nenhum
é devido seu viés ‘xtraordinário
obscuro e viscoso agrupados num
neologismo pro vocabulário
23
prossigo nesse instant donde parei
co’ a femme fatale a minha frente
que, em frenesi deixou-me, na sua lei
miragem, substância evanescente
24
nessa forja onde a pedra amarra o sol
e a legião celebra o próprio fim
ta’ o sábio que na montanha é farol
condenado o dragão ressurge em mim
25
este tão logo se manifesta
“venho a ti, e ‘tu deves’ é meu nome”
grito “satã! diabo! mal que infesta!
belzebu! levai p/ lá a vossa fome!”
26
ao que sorri e, soberbo, assim me diz
“ouve, compreendo essa tua precaução
porém os que compõem minha matriz
são os mesmos que povoam teu coração
27
mil faces tenho e mil faces há em ti”
conclui dessa maneira a sua língua
reajo, então, “vós, de mim, ide, parti!”
“inútil é a ação, nada se míngua
28
hidra sou, dessas testas que possuo
fulguram os preceitos que as sustêm
se uma é decepada, duas, sem recuo
crescem no lugar e o ocaso detêm”
29
qual dura sonora onde o índio clama
soa, ressoa, atirado sou àquela voz
retorno, a visão imersa em lama
para a mulher que é xama, bruta foz
30
mas nesse imo, fragílimo cristal
zona cujas piras não são breves
áspero, esse monstro, sua digital
troa, “tu deves, tu deves, tu deves…”
Canto 4
31
saliva a besta ao desiderato
enqnto, espreita, essoutro d’ várias tranças
caos sobre caos, causando o substrato
menocchio, sua gênese às lembranças
32
degola a mãe, pierre, por compaixão
eu, de mim, um maço que reprime
todavia para ambos a maldição
no cáucaso à ave pelo meu crime
33
tecem as irmãs nosso destino
nós, amalgamados, feitos em ser
consoante d’ parmênides o atino
indiviso, omnis, perpétuo haver
34
de maneira diferente o devir
heráclito crê real, legifera
conceito que introduz ao perquirir
panta rei, fogo, tudo se altera
35
pra tales entretanto em início
a água, da natureza, se traduz
igual fêmea, bravio mar, um vício
líquida nave gera e nos conduz
36
já anaximandro o ápeiron insere
valsa invisível como proposta
infinito q’ derrama, (re)ingere
pasta donde a physis é composta
37
razoável o ar remeter outrossim
àquilo que transmuta a matéria?!
segundo anaxímenes faz-se assim
o antropo, o mineral, a bactéria
38
empédocles afirma por sua vez
que é das quatro raízes essa função
unas com o amor e o ódio em lucidez
tramam da nascença à putrefação
39
pitágoras idem inaugura
o número indubitavelmente
p/ xenófones é a terra, assegura
a demócrito, o átomo, “somente”
40
inobstante, seja enfim essa arqué
não o noûs de anaxágoras q’ move a idea
destart’, qual dorso daquela em mim é
paisagem, pasto, ninfas ou medea
Canto 5
41
a manceba amante inda que tele
pois alfim só plantou grave espectro
fere-me a boca, a boca à mia pele
conserva-se acre, látego plectro
42
tal perenelle flamel, lendatriz
logrou longa vida com a magia
crepita, velada pua ou beatriz
ora turra dulcis, ora em algia
43
águia de sangue, rebenta o fruto
seiva nossa, das escápulas, voa
xenomórfico ose, dissoluto
morta madre na des-figura ecoa
44
nobre sal, item oma signo seu
pela treva age, prodigioso orbe
da abóbada, entona sina, androceu
sua vinga prepara nesse alforbe
45
“eu que de mary à cria me assemelho
largo orto em serro da calipígia
sou, de hades, rei, sacro escaravelho
ou vulgo um, verbero desta lígia?!
46
de ifigênia, a forte, rubro manto
que avulta-se algures pra deidade
ou o bico, à turba, do falsanto?!”
vão… verbo é impossibilidade
47
entre bósons, estelas, onde o grão
a prima obra, ny, raro etimodeus?!
por grossa fuga pulsa seu cifrão
em sólitons verte neuroproteus?!
48
oumuamu’alto e silente cetáceo
paz nenhuma demonstra esse enigma
traspassa o céu, infausto rubiáceo
rangem consigo as almas do origma
49
suspenso negrume ao sono induz
cobre de angkor frontes impassíveis
quem fácil não cede luna seduz
mas uivam em mim coisas horríveis
50
das vespas a peçonha igualmente
quos ortópteros cativos torna
envenena, a solidão, seu cliente
abasta essa raiva que, o senso, orna
Canto 6
51
ouabaína aplaca e regenera estro
quebra espada, esfaz a malfazeja
asperge o falcão sua febre, destro
molesta, circunda, ankou solfeja
Sel é poeta e artista visual. Possui textos publicados nas revistas literárias Arcana, Diversos Afins, euOnça e Benfazeja. É autor dos livros: Autopse (ed. Multifoco – 2012) e [Sel]vageria (ed. Urutau – 2016). Ambos de poesia.