Por Wilfredo Lessa Jr.
ADRIANA CALCANHOTTO – SÓ
A ano era 1992, eu voltava de Itabuna de carro para Ilhéus. A recém-lançada Morena FM tinha se tornado minha predileta por trazer uma “nova música brasileira”, ou seja, me apresentava novas vozes em faixas não necessariamente de trabalho, com cuidado e boas sacadas. Os primeiros acordes de “Esquadros”, do disco “Senhas”, invadiram o carro e numa era pré-smartphone você tinha de ouvir a música e pedir a Deus que o locutor dissesse o nome do autor/faixa ao fim do bloco, e não no início (doces angústias). Adriana Calcanhotto se tornou uma das musas dos meus 90 e de quatro discos que nunca deixei (Senhas, A fábrica do poema, Marítimo e Partimpim). Esse ano me vi reencontrando naqueles discos um alento, doses de nostalgia contra a ansiedade.
Adriana lançou recentemente o disco “Só”, e aborda a solidão, a política e agruras desses dias. Um trabalho minimalista e marcado pela voz, ora suplicante, ora contemplativa que flutua e traz à tona muito daquilo que me fez manter “Esquadros” em todas as minhas playlists.
Faixa a faixa:
Abrimos com “Ninguém na Rua” – tambores fazendo ponto, leves, eletrônicos e aludindo ao mesmo tempo ao funk e à marcha, ruas desertas, saudades e a dor da distância de quem se quer.
“Era só” – balada agridoce, piano bar, luz incidental e doses fortes de dor on the rocks. “Gostar de gostar de gostar de você” é o tipo de indulgência que só é possível pra quem tem cotovelo dolorido.
“Eu vi você sambar” – como que para desfazer a fossa da faixa anterior, essa tem aquele típico samba/pop que faz as perninhas mexerem por baixo da mesa, clima solar, e uma história de paixão fulminante e esperançosa. Devia vir com a caipirinha pra mesa na mesa.
“O que temos” – faixa que traz o papo sobre o agora pra frente “… o que temos são janelas/panelas…”, beat seco, piano, guitarras e sample de panelas sendo batidas. “Janela indiscreta” de Hitchcock encontra “Pelas tabelas” de Chico Buarque. Necessário.
“Sol Quadrado” – partido alto, também muito próxima de Chico, principalmente na construção, faixa sem nome aos bois que refere até o gado. Quem planta, colhe.
“Tive notícias” – mais uma balada, voz e violão numa intimidade de pé de ouvido. O tema da distância (“… coração de quarentena.”) traz o amor partido e que escondemos até de nós mesmos.
“Lembrando da Estrada” – foxtrot de bongô e guitarras no molho que nos joga na saudade das estradas, da mobilidade e também na viagem interna advinda da reclusão, as estradas que elevam pra dentro e nos forçam a abandonar as bagagens que já não cabem nas nossas vidas.
“Banda Lê Lê” – funkinho divertido, que seria uma dessas “bônus” nos antigos cds. Deu vontade de ouvir um disco inteiro dela com base eletrônica (funk, trap e house).
“Corre o Munda” – muito legal que num disco tão intrinsecamente atual, AC escolha uma homenagem a Coimbra, essa Europa possível vista como fuga para tantos de nós. Presos em nossos apartamentos, batendo panelas e cheios de medo e saudades.
Este é um belo trabalho, com as sacadas inteligentes e sentimentos que vão se tornando mais visíveis a cada audição. Senti falta de arranjos e de riscos, coisa que ela sempre teve. É uma dose homeopática de uma grande artista. Te faz bem, mas também te faz perguntar: “Só?”
Wilfredo Lessa Jr. é professor de inglês que nunca morou fora, músico que não toca instrumento e intelectual que não se formou. Diz ele. Membro inativo do P3 (projeto 3), Infected Minds e Irmandade Arcana. Também se finge de escritor para poder falar de livro com gente que é.