Dheyne de Souza
Memória
memória, essa lâmina que não vem só com corte mas o cheiro dos móveis o vapor do olhar a temperatura do dolo
as horas em torno
memória, esse som
que escava
regurgita
apodrece
o urro mais largo
o vazio da prece
memória, essa língua dentada
esse punho tombado
essa voz sem assento
memória
esse eco sozinho
esse tempo sombrio
a saudade de cada
memória,
esse espólio de guerra
***
nãos tempos
não temos tempo de perder o trem
olhar no olho
parar ouvir
não temos, tempo, veja bem as horas
veja bem a
veja
não temos saldo paz joelho asilo
temos fome miséria temos filhos
não temos tempo de pedir à mãe ao pai à amada
pátria, não temos tempo de dizer
não
não temos tempo de tratar a morte o açoite a voz
não temos tempo de temer
sequer
***
ontologia
o que é isso que a vida
tem feito conosco
passam-se os anos
fincam-se as farpas
o que é isso que o tempo
crava na pele
enrugando a coragem
constipando a voz
o que é isso que a gente
tem permitido
jazigos de sonho
esses nossos co
pos
o que é isso amigo
você está longe
aonde foi que embarcamos
ou
o que é isso que há
feito fumos lúcidos
tragamos
o que mais podemos
o que é
escute
não olhe no espelho
em que ponto da rua
nos
***
amor dest’era
o nosso amor tem o som de um animal sofrendo
o nosso amor, eu não sei, anda puxando uma perna
ou talvez tenha deficiência de sol
o nosso amor, parece, dorme no enorme vão de ar que atravessa nossas espinhas
à noite
o nosso amor tem visto demais e escutado palavras extremas
o nosso amor perece
não sei
perdendo
até aqui
o nosso amor tem uma bala
no ventre
***
à meia voz envio
um sorriso
um alento
uma mão
uma linha
quem sabe para guardar, quem sabe para sempre, quem sabe em algum lugar virtual onde a memória suspende onde compartilhamos a vida quem sabe pra gente com certeza pra poucos que sentem mas os bem poucos e seu poder imensurável que se querem sabem de tudo e usam sem rastro a vida moldando a memória soterrando o bagaço ameaçando a mão esfumando o alento apreendendo sorrisos
essa meia voz não
é o nosso presente
não cala
***
ah a vida e esse cheiro que vela
como um cavalo no escuro no pesadelo da espora
como uma grama que acorda molhada pra ser pisada
como um refém que habita o esconderijo da porta
como uma escolta. paulatina. versando que a vida há
Dheyne de Souza é goiana, está morando em São Paulo e sustém um blog. Tem um canal de leitura de poemas, em parceria com Helô Sanvoy. Os poemas desta seleção estão no recém-lançado “lâminas”, pela Martelo Casa Editorial.