Aperitivo da Palavra II

Formas de Cair: Um Projeto de Não Ser!

Por Rita Santana

 

 

Eu, filho do carbono e do amoníaco,/Monstro de escuridão e rutilância.” Eis a epígrafe do livro Formas de Cair & outros poemas (Letra Capital), do escritor Sandro Ornellas, cujo paradoxo final guiará, sobremaneira, o livro e o sujeito de enunciação, ambos imersos em jogos de luz e sombra. É preciso demolir os velhos paradigmas – quando opressivos – e Sandro os conhece de muito perto, com profundidade porque sabe das suas fundações e dos seus pilares estruturais. Ao trazer Augusto dos Anjos, o maldito, prepara os espíritos leitores para as estranhezas capturadas pela vida afora e trazidas à luz para que nós as vejamos sem filtro, sem maquiagem; na crueza e no malabarismo das desventuras existenciais suspensas aqui. Tudo ornado com apuro e requinte lírico. O leitor, que tenha certa proximidade com o escritor, não ficará imune aos conflitos e dilemas criados para este projeto que temos em mãos. Porém, o precipício será lançado, inescapavelmente, a qualquer leitora ou leitor que o abra: estaremos em plena queda!

 O livro é dividido em três partes: 1. ROMANCE DEFORMAÇÃO, 2. URBI ET ORBI e 3. FORMAS DE CAIR.  Na primeira seção, o Poeta ironiza, questiona, ludibria conceitos e a seriedade do universo em que vive, em que tece existência e criação, o universo acadêmico. Temos expostos alguns procedimentos de desconstrução do próprio cânone e descontração pândega de pilares caros à tradição. O autor já nos lança uma provocação inicial, ao intitular o primeiro movimento do livro, onde aciona um desconcerto entre os gêneros e indica denúncias de “deformidades” ou “deformações” primordiais, de origem, que formam o sujeito do enunciado. O humor é, certamente, um dos pilares da sua obra: o riso, o desconcerto, o sarcasmo e a ironia. Constam desse momento poemas que demarcam o território da Identidade. O sujeito poético está em busca de um eu que se funde em tantos outros e que, juntos, engendram uma unidade absolutamente tosca, culminando em um processo de construção de um autorretrato cubista. Talvez o autorretrato tecido seja um caleidoscópio absolutamente revelador de assimetrias e incertezas. Um Pablo Picasso, demolindo as expectativas em torno do que seria um autorretrato. Diante de uma sociedade cada vez mais ávida por definições identitárias, exigindo que o indivíduo assuma uma identidade definitiva, torna-se um transtorno não ter ou não ser uma resposta. Uma sociedade capaz de reger processos excludentes aos que não estiverem de acordo, aos que não se encontram dentro de um pacote fechado do que seja considerado um modelo identitário, dentro dos padrões, das nomenclaturas possíveis e aceitáveis, em determinado tempo e contexto social específico.  O eu poético, enfático, desilude-nos, de cara, ao negar tais possibilidades, ainda no poema 1. (inquietante rosto):

……………………………  inquietante rosto
……………………………………….que não sabem
……………………………………….nunca saberão

……………………………………..ex-crer-ver

Ao dissecar e expor o ato da escrita, no desnudamento da palavra, ele tenta nos persuadir à desistência: é inútil tentar decifrar palavra e rosto. Enquanto tantas identidades convivem, contaminam-se, flertam com outras, num intercâmbio cada vez mais violento, veloz, fluido ou líquido, pois mediado pelos processos tecnológicos, transcendentais, ancestrais, inauditos e geográficos que seguem o fluxo complexo e mutável da própria existência. Processos que sempre estiveram em nosso/seu âmago e perpetuar-se-ão até a morte do Ser.

O dialogismo ainda nos atravessa, durante a leitura do primeiro poema.  A Terceira Margem do Rio de Guimarães Rosa nos chega, através da primeira estrofe: “terceira via/terceiro homem/terceiro olho”. Aqui, já temos uma condição existencial que transpõe a lógica regente do universo dos homens. Transitaremos numa terceira margem, alargando nossos limitados horizontes, nossa visão, nosso olhar, num sentido holístico sugerido pelo próprio Poeta. O eu da escritura deixa-nos com o indecifrável que é: “inquietante rosto/que não sabem/nunca saberão.” O tom profético já aniquila qualquer esperança de compreensão futura. Mais que um rosto, uma identidade impenetrável. Descrever, “ex-crer-ver”, virar o avesso da palavra, separar-se dela, da crença, apartar-se para, enfim, compreendê-la, ampliá-la. Descrença, abandono, desistência, ceticismo, estamos diante do inescrutável que habita a busca do que somos. Quanto de significados ele nos impõe na ludicidade com a palavra refeita, numa anatomia que esmiúça e refaz sentidos contidos no ato de escrever? A partícula ex atribui um caráter pretérito à crença, à visão e à escrita, pois desarticula, desestabiliza e põe tudo em estado de evidência e questionamento. Tudo foi ou terá sido. O campo semântico ainda nos liga ao que foi separado, apartado. Ornellas nos traz a ludicidade como uma de suas características. Bella Josef assinala o caráter lúdico da escrita:

 “O jogo da linguagem é o da busca do sentido, não encontrado no objeto, mas armado na própria linguagem que o constrói. A arte literária passa a ser o espaço privilegiado da “doação de sentido”, através do inter-relacionamento de todos os elementos do texto.”                     

E completa:

“A linguagem lúdica é a mais significativa, no sentido da expressão do homem como ser simbólico, e, portanto, criativo, e a mais adequada à construção do pensamento autônomo. A comicidade e o humorismo atuam como catalisadores numa tentativa de diminuir a separação entre objeto e sujeito, recuperando a natureza lógica da arte. Se o humor matiza, o jogo liberta”.

Em 2. (arte do autorretrato), vemo-nos diante da representação de um rosto, num autorretrato que poderia elucidar uma identidade, já anteriormente negada e anunciada como inviável. A busca frustra-se novamente, ao percebermos que o sujeito do enunciado deixa pistas de que não há vestígios. Antes, o que há é: “uma montagem adúltera de tudo/ uma mistura muito funda/muito bruta muito puta”.  Percebemos uma revolta, forjada no emaranhado de origens, além de misturas e etnias que convergem para o projeto de não-ser que se monta diante dos nossos olhos: “monturo que dá em nada/em noves fora/projeto sem forma/projeto de não ser/face mestiça/etnia postiça/massa de tudo.“  Uma confusão descomunal com um suposto pertencimento que não se realiza e não se realizará. Lembro do entre-lugar do discurso, hibridismos e uma série de estudos identitários que se fundem diante de um eu em vertigem, turbulento, entre as buscas ou desistências do ser. Diante de tamanha liquidez, trago Bauman:

“Tornamo-nos conscientes de que o “pertencimento” e a “identidade” não têm a solidez de uma rocha, não são garantidos para toda a vida, são bastante negociáveis e revogáveis, e de que as decisões que o próprio indivíduo toma, os caminhos que percorre, a maneira como age – e  a determinação de se manter firme a tudo isso – são fatores cruciais tanto para o “pertencimento” quanto para  a “identidade”. Em outras palavras, a ideia de “ter uma identidade”, não vai ocorrer às pessoas enquanto  o “pertencimento” continuar sendo o seu destino,  uma condição sem alternativa.” 

Estamos diante de um autorretrato com a orelha cortada, um Van Gogh que se procura e denuncia desilusões, imperfeições, perdas. Ou uma Frida Kahlo, que também se expõe em dores, aflições e pensamentos, através dos seus autorretratos. Ornellas, que assina o livro utilizando um pseudônimo, Sandro So, destitui-se, despe-se de tudo e nada lhe pertence. Um ser poético que busca formas de cair. Um sujeito desalojado, desencontrado: “Em todo e qualquer lugar eu estava – algumas vezes ligeiramente, outras ostensivamente – “deslocado””. Aqui, o nosso eu lírico também se mutila em exposições, desnudamentos, em cortes profundos diante de todos nós, seus leitores, suas leitoras, e nos entrega – em nossas mãos – reflexões que geram perplexidades.

Há uma constatação, em Formas de Cair, sobre a impossibilidade de conseguirmos atingir esse retrato indefinível. Ele prossegue: “projeto de não ser/face mestiça etnia postiça/massa de tudo/rebarba caliça resto rebite/que não existe/bricolagem de branco com-banto/neto-de-filha-de santo/linhagem de negro e galego”. Um sujeito inautêntico, um terceiro homem indefinido, exposto à terceira margem. Eis o fio condutor deste livro: um sem-lugar, um sem-jeito. Desfazer-se de si mesmo ou assumir a sua especificidade de ser, que carrega em si tantos outros seres, além de também habitar uma canoa que segue o curso da água, sem aportar em margem alguma, sempre em trânsito. O não ser é a loucura. É não ter digitais, nem face. E o ex-eu declara: “falsa persona do próprio rosto”.

Um homem imerso em teorias, pelo ofício que exerce, tem pleno conhecimento das distorções e indefinições de uma identidade e, por isso, a persegue, não em busca, mas em caça, em perseguição acusatória, persecutória; em denúncia de si mesmo e de suas farsas ou revelação do que em sua história fictícia pode sugerir farsa ou inautenticidade, quando, na realidade, é o que é e é o que não é. O desconcerto e o desassossego estão instalados. Detetive e criminoso ou inocente, Javert e Jean Valjean. Enquanto nós, leitoras, talvez sejamos testemunhas do seu processo de anunciar a ausência de digitais autênticas para a carteira de identidade. Nós, leitoras, estamos a acompanhar o indigitado nesse descampado solitário; desnudo campo do corpo, da cidade. Ele, o eu, descreve e revira o avesso da palavra. O terceiro olho e a terceira via atuam em todo o percurso do desconcerto, enquanto outros caminhos apontados pelo Poeta surgem. Uma terceira margem da imagem, da representação semiótica do rosto; uma persona que não se decifra e que se torna a obsessão do eu- lírico desiludido, nesse escrutínio por uma decifração da identidade. Há, em quase todo o livro, uma dramaticidade niilista, um olhar agudo para a sociedade; a escrita busca uma identidade que ele percorre apenas para, ao final, desmascará-la.

Ouço ecos de João Cabral de Melo Neto na cadência do poema 3. (dialética negativa), onde, além do ritmo marcado, de uma métrica permanente, versos talhados, aqui, em redondilha maior, observamos a musicalidade, o ritmo dos versos que percorrerá todo o livro. O poema é a pontuação musical dos desencontros cravados nas identidades dissolvidas em nossa sociedade brasileira, baiana. Assim, prossegue em poemas como 4. (mito) e 5. (clandestino), onde podemos vislumbrar origens, causas do desconforto étnico que perseguirá o eu lírico, durante toda a queda.  O vocabulário transita entre palavras do universo afro-brasileiro, como forma de encontro, semelhança, familiaridade, pertencimento: “ela é meu horóscopo/meu ouro meu ori/ meu faro/ meu anjo…”. O eu do poema prossegue em processos antitéticos luminosos e obscuros, que são suas pérolas barrocas perenes. Há ritmo, dança de sons, aliterações, métrica na seleção e organização das palavras, primor no artefato poético. O rosto, o autorretrato busca por si mesmo e pela definição do outro: personas em busca. Desconstrução, desnudamento arqueológico da palavra e das identidades. Há uma exposição de não seres que nos jogam em questionamentos sobre as exigências sociais por definição, pertencimento.  A mestiçagem está na roda das suas preocupações e de suas consequências na existência; danos, dores, medidas, questionamentos em “suas funduras suas fissuras/as origens duplas/do atravessador”.

Confessa-se clandestino e atravessa fronteiras, ainda fixado em seu rosto com e sem barba, partido em dualidades, num jogo de desconfiança, de quebra de ilusões, ilusionismos; como se não fosse possível mantermos expectativas em torno de um apátrida, um pária, um aventureiro clandestino, em constantes migrações, além fronteiras. A própria convivência é redimensionada diante das flutuações, viagens, inconstâncias do ser cujo trajeto e travessia acompanhamos. Um ser transitório. Um sujeito sem teto, sem lar, sem casa, sem porto. Incapaz de se fixar em qualquer parte e que insiste em reafirmar sua natureza peculiar de homem em constante trânsito, em constante queda e que nos apresenta suas formas de cair. Talvez assim, possamos nos aproximar dos seus descaminhos:

“Estar total ou parcialmente “deslocado” em toda parte, não estar totalmente em lugar algum (ou seja, sem restrições e embargos, sem que alguns aspectos da pessoa “se sobressaiam” e sejam vistos por outras como estranhos), pode ser uma experiência desconfortável, por vezes, perturbadora. Sempre há alguma coisa a explicar, desculpar, esconder, ou, pelo contrário, corajosamente ostentar, negociar, oferecer e barganhar.” (Bauman).

O amor perde-se em lapsos barrocos que se jogam em versos modernos rapidamente, como se fosse preciso estar no aqui e escapar da linguagem rebuscada, elaborada com certa sofisticação e exasperação dos rococós. Mas ela está presente: a arquitetura que propicia à linguagem um tratamento envelhecido, como uma pátina capaz de cobrir com camadas de tempo o verbo e dourar – ainda que em gotas – as páginas que escapam às permanências e ao conforto do íntimo, ao conforto do que vigora e persiste. O sujeito do enunciado nega-nos qualquer acomodação ou facilidade: escapa, foge, nega-se a nós! Aventura-se em mil rostos para dissolver, definitivamente, qualquer esperança de encontro, de busca. E percorremos o suaveduro de suas histórias de desistência, enquanto paroxismos nos atravessam.

Parece que estamos numa ficção, narração das origens. Perambulamos por esses cobogós sem encontrarmos o todo, pois o sujeito está perdido no princípio e nos precipita em sua própria queda vertiginosa e dura. A desconstrução e o desnudamento da palavra, a fragmentação da ideia causam um efeito de transe, como se o Poeta  nos desse um quebra-cabeça, faltando peças para decifrarmos sua angústia existencial, seu olhar agônico diante da consciência do que somos, sua náusea. Orpheu e Heuterbise de Jean Cocteau percorrendo os labirintos de Hades em busca de Eurídice, mas também em busca da Morte sedutora, intensa, bela, a sua princesa. A vertigem da caminhada, a vertigem do atravessamento dos espelhos, calçando luvas que são o passaporte para a viagem, o atravessamento do Tempo. Assim, também o nosso Poeta desfila suas inquietações existenciais.

A dimensão da beleza das imagens apresenta-se corajosa e intensa no poema 10. (corpo sem pouso) que desenlaça no trágico, afinal, não há pouso, repouso nem refresco na queda em que estamos imersos, num gerúndio que se reafirma a cada página aberta, durante o processo de leitura. Vejamos o desfecho do poema: “na hora das coisas cruéis/decisivo é ultrapassar/ a planta carnívora da história/para flertar/ com a beleza do mundo/em fulgurante desaparecimento.” Sem dúvida, um dos poemas mais belos do livro, composto de uma tragicidade final, pois, agora, todo o mundo desaba. A queda sobrevoa todas as espécies, como se estivéssemos atravessando um longo plano sequência que, velozmente, percorre o planeta. E nos atinge: “um zangão à beira do gozo/à beira da abelha-rainha/agoniza em seu amor à morte.” Mesmo trágico, encanta e arrebata por sua beleza, por sua construção imagética, capaz de provocar suspiros estéticos. Mas a leitura nunca está imune a desdobramentos, ela sempre nos suscita lembranças, complementos e elos com o que estamos vivendo ou lendo, num dialogismo inesgotável. Assim, surge Simone de Beauvoir, no início do Segundo Sexo, capítulo Biologia, onde a autora discorre, com o seu estilo vigoroso e belo de filósofa e escritora, um pouco sobre o quanto a abelha e o zangão estão atados à espécie.

“O mesmo ocorre entre as abelhas: o zangão que se une à rainha no voo nupcial, onde levam uma existência ociosa e embaraçante. No início do inverno são executados. Mas as fêmeas abortadas, as operárias, pagam seu direito à vida com um trabalho incessante; a rainha é, de fato, escrava da colmeia: desova incessantemente. E, quando da morte da velha rainha, várias larvas são alimentadas de maneira a poderem disputar a sucessão; a que nasce primeiro assassina imediatamente as outras.”

Assim, descortina-se esse aspecto de sacrifício do zangão, como se fosse ele o único a sacrificar-se pela espécie. Mais adiante, ao abordar a espécie humana, ela dirá: “… ao passo que a humanidade está em permanente vir a ser”.

Ou ainda:

“É somente dentro de uma perspectiva humana que se podem comparar o macho e a fêmea dentro da espécie humana. Mas a definição do homem é que ele é um ser que não é dado, que se faz ser o que é. Como o disse muito justamente Merleau-Ponty, o homem não é uma espécie natural: é uma ideia histórica. A mulher não é uma realidade imóvel, e sim um vir a ser; é no seu vir a ser que se deveria confrontá-la com o homem, isto é, que se deveria definir suas possibilidades.”

O fio que tento estabelecer aqui é exatamente o olhar existencialista para a transcendência, ”este ultrapassar de uma situação presente por um projeto futuro”, segundo Sartre. Trago para estas reflexões o vir a ser que é constante e que toca também uma identidade que não é estática e talvez nunca tenha sido tão velozmente mutável, influenciável: líquida!

O poema 11. (travessias) irrompe cruzamentos inúmeros com dores e confissões cotidianas, de quem se perde em ressacas, em portas, numa convulsão de desencontros, situações sem saída. Mas ali, há a quimera e isto restitui o caráter onírico do nosso sujeito de enunciação, que sofre o desterro em que vive, em que delira em estado bruto de consciência; um eu cortado por desencantos, empurrões do destino. Um ser tortuoso de onde conflitos abundam. Com o poema 12. (inverso), fecha-se a primeira parte com uma tentativa metalinguística de organizar o caos.

Temos, então, o segundo momento do livro, intitulado URBI ET ORBI, em que os poemas tocarão a cidade, o corpo inserido no mundo, nas ruas, em outros continentes, na órbita universal.  Em 1. (carteira de identidade), vemo-nos às voltas com os complexos psicanalíticos que trazem a presença do Pai e da Mãe, em seus arquétipos, para a cena: “esta cidade não me salva/nasci fora de suas fronteiras/pai e mãe são meu medo/dupla derrota/tatuada em meu corpo/como cicatriz da história.” Mais uma vez, a origem umbilical dos dramas ou dos traumas; a busca por seu território ou a constatação de estar ausente do seu lugar e a circunstância de não ter lugar: “esta cidade não me basta/sou bastardo em sua memória/tenho um não-lugar além/sou estranho a toda estória/irredutível ao que se exprime/em seu fado/em suas horas”. Um inadequado, um inadaptado numa cidade, onde ele se sente – como tantos de nós – um estrangeiro, um estranho, um forasteiro, em situação incômoda de bastaria. A única forma de subverter o estranhamento é pular seus muros e desafiar suas fronteiras, como um clandestino em travessia, em fuga. Assim, o livro trafega entre o abandono em que nos encontramos na cidade que nos vigia, a nós, estrangeiros, e entre o sentimento de nomadismo muito presente no livro. Temos ainda as especulações sobre o tempo, que chegam através de rugas sobrecarregadas de significados. O eu do poema critica a oligarquia que preside o ritmo da cidade. Sutilmente, aponta a cartografia do lugar dividido em andares, elevadores e elevados. Entre arrastares de pés que caminham e percorrem a cidade, vemo-nos atravessados também de amores frustrados. Há desilusão e pessimismo nestes versos que caem. Marcas de uma cidade bem distinta daquela encontrada pelos turistas. Há uma desconstrução ou exibição e desnudamento de mazelas e odores de uma cidade que não acolhe. É o que pontua o olhar e as idiossincrasias do eu poético desencantado, devido ao abandono em que nos encontramos na cidade, devido à solidão e à estranheza que sentimos.  O poema 4. (Casa corpo cidade) traz, em seu título, invólucros que nos resguardam e nos massacram aos olhos do Poeta, que sente ímpetos terroristas: “a sanha por penhascos/o desejo de explodir /o centro em pedaços/ a convivência com o tráfico de afetos e fracassos/e vício compartilhado”.  O Poeta revela-se personagem que vive a crueza da cidade; alguém que a sofre porque está nela e não apenas assiste, distante, aos acontecimentos. Ele, transeunte, vive a cidade. Seguimos em encontros remotos com Gregório de Matos, num diálogo de denúncias comuns das mazelas da cidade, enquanto o próprio leitor é convidado a entrar em sua festa de desencantos, cúmplice, seguindo memórias machadianas: “Estranha virtude nos une/ hipócrita leitor/ meu igual meu irmão”. Assim nos sentimos atravessados pelo mesmo desencanto e amargura, diante dessa fera que nos devora, também a nós que, hipócritas, fingimos que tais dramas não são nossos! Fingimos ler o outro! No entanto, o Poeta nos convoca à Consciência, à Cumplicidade irmanada.

A partir daqui, invade-nos uma atmosfera de sensações, onde a solidão e a estranheza permeiam as páginas do livro. A queda intensifica-se vertiginosamente, pois a insatisfação e a crítica invadem todos os espaços, poros, pele do papel. O tempo e a constatação da impotência diante da vida. A presença do corpo. Lugares. O lugar da Poesia. O contato, a proximidade, os contratos sociais, as redes familiares, o país: “Algo de podre parece viver nesse país de fácil sorriso”. O que um livro traz, o que ele nos ensina. Migrar, migrações transmigram, identidade em vertigem: o lar, a família, o corpo, a cidade, o país, o mundo. A cidade personificada urra e todas as suas imundícies são compartilhadas conosco: família, amor, tesão, fracassos, tudo se mistura e é observado pelo Poeta, em delírio, em vertigem, em queda. Há a presença do corpo que sente e cheira todas as sensações, numa atmosfera sinestésica, apocalíptica, feroz, mortal. Todas as memórias estão impregnadas de fracassos e, mesmo quando vislumbramos um oásis de amor, a penumbra cerca aquela paisagem onírica, permeada de beleza, como acontece no poema 8. (memórias dos carnavais): “o Jardim que você prometeu matou meu serafim.” Ouço bandas de rock de Brasília presentes no poema, consigo ouvir toda uma geração 80, entremeada nesses versos tristes. Em outros momentos, sentiremos ecos de Augusto de Campos em tentativas do Poeta  de explorar imagens, linguagens, sons, experimentos.

Viajamos por lugares especiais, enquanto experimentamos o abandono. De que trata o poema? Memórias de amores, de outros carnavais? Memórias literárias que atravessam oceanos e deixam marcas na pele do Poeta? Do que se trata? A atmosfera nos penetra em interrogações e nos perdemos em devaneios; nos movemos em dúvidas, desejos que já são nossos e perdas que também são nossas. Uma viagem de ônibus é matéria de reflexões tão filosóficas e tão amplamente profundas que mergulhamos com nossas bagagens na viagem, com o eu do poema, sem que ele o saiba. O amor está presente nas páginas deste livro com ares de melancolia. Entanto, há prazeres pelo instante vivido, pela alegria de viver o cotidiano simples e grandioso de conversar, durante o trajeto do ônibus, ao lado de quem nos ama: “íamos no ônibus e falávamos e o ônibus ia em nós/e viajávamos acompanhados de quem nos ama/na solidão do grande rio que margeamos” (11. (intermunicipal)). Aqui, um momento lírico-amoroso, pleno de beleza, de amor e de juventude, onde uma outra margem surge, sinto desejo de permanecer no poema!

O Poeta, que confessa viver, estar num supersonho, trafega por outros continentes e traz aspectos dos povos que frequenta, traz o outro e suas influências; modifica-se com o outro, torna-se outro, numa geopolítica íntima que traz leveza à leitura: “carrego comigo/ muitas outras viagens/ do atlântico sul” (13. (geopolítica íntima)). Viagens como busca de possíveis identidades perdidas, que trazem histórias inscritas na própria pele, em suas origens, mas também trazem as marcas de outros povos, outras culturas que permanecem. A África faz-se presente, assim como Lisboa e Brasília também delimitam influências.  Quando dialoga com Drummond, deixa na página a ausência da cidade; ausência espacial, que, no entanto, está lá, marcada pelo vazio. Tal dispositivo estético-semântico pontua a importância do signo cidade, corpo, cidade-eu no livro. Busca por uma identidade atmosfera de desencanto, de ausência, desesperança; um olhar que perscruta o mundo. Migrações internas e externas, identidade em vertigem. Encerramos a segunda parte do livro com uma sensação de encontro, movimento e busca de possibilidades dentro das linguagens urbanas de expressar e imprimir a si mesmo em seus muros, suas paredes, numa queda mais branda.

Iniciamos o movimento final do livro com tons de metalinguagem e questionamentos acerca do lugar do poeta no mundo, onde a “tradição” entra na mira do eu lírico. Em Formas de Cair, terceira parte do livro, encontramos uma epígrafe que simboliza e sintetiza todo o projeto, pois é o título de um texto da Poeta portuguesa Luiza Neto Jorge, “O poema ensina a cair”, que será  imediatamente mencionado no segundo poema, indicando que,  apesar da queda, o poema cumpre uma função  importante  em nossas vidas e é uma Poeta quem nos sinaliza, como nos informa o nosso sujeito de enunciação: “É é bom saber que se/ocorrer de nós cairmos/e não  nos ferirmos é/porque o poema ensina/ a cair – conforme Luiza/ categórica explicou/ e que humilde subscrevo/ ciente de que neste jogo/erro, vertigem e queda/são as verdadeiras vitórias/que o poema pode pode ter”. Permanecerão os dilemas cotidianos, mas serão iluminados pela máxima deixada pela Poeta e o poema guiará o eu vertiginoso que acompanhamos até aqui. No poema 5, teremos uma exposição  mais íntima do eu lírico, pois o contato social, o estar com outras pessoas na sociedade será tratado com extrema delicadeza e profundidade, dando-nos um retrato mais nítido do ser que enfrenta a sociabilidade, como tantos de nós, com extrema dificuldade, quase sempre disfarçada. Ele traz no desfecho ao poema: “As convenções são o trono/ das perversões mais severas“. Os embates permanecem, mas há uma outra respiração  musical nos textos; momentos onde o arrebatamento poético nos toma e sentimos vontade de dançar, como no poema 7. O Poeta segue desenhando desejos, sonhos, paixões com mais suavidade. O cinema se apresenta como uma força que move o eu lírico. Estamos aprendendo a cair com seus textos, com suas perdas. O Poeta nos deixa uma interrogação, antes do seu posfácio aos pedaços:

“Mas afinal quem juntou os cacos
dessas histórias de erros e quedas
que tanto lemos?”

 

Rita Santana nasceu em Ilhéus, Bahia, a 22 de agosto de 1969. É graduada em Letras pela Universidade Estadual de Santa Cruz. É atriz com trabalhos em teatro, cinema e televisão; escritora e professora. Em 2004 ganha o Braskem de Cultura e Arte para autores inéditos com o livro de contos Tramela. Em 2006, Tratado das Veias (poesia) é publicado pelo selo Letras da Bahia. Publica Alforrias (poesia) em 2012, pela Editus. Em 2019 publica Cortesanias (poesia), pela Caramurê, e participa do Festival Internacional de Buenos Aires.

 

 

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7 Comentários

  1. Belíssimo texto. O livro é dissecado por uma análise afetivamente teórica e profunda, deixando ao leitor o único caminho de adquirí-lo.

  2. Muito feliz e honrada por escrever sobre uma obra que tanto me ofertou! Escrever sobre a escrita de Sandro, que eu amo!

  3. Texto profundo e permeado de levezas poéticas…

  4. Rita Santana reúne a criatividade da artista à experiência e à técnica da professora de Letras para construir essa crítica, verdadeiro convite- presente para apreciarmos o livro de Sandro Ornelas. Tecendo a análise sinestésica, ela nos apresenta as referências canônicas, transitando com liberdade sobre suas impressões e sentidos. Sensibilidade e entrega parecem permear o olhar amoroso de Rita para a obra de Sandro, tornando impossível não desejar sorver avidamente cada palavra do autor. Gozemos pois!

  5. Que beleza! Um texto lírico/crítico, uma tese amorosa, delicada e crua, um despetalar de palavras, um tratado sob/sobre o fazer e desfazer poético, uma leitura acurada e sincera, precisa e doce, pertinente e sagaz. Perfeito exercício de cair com, de cair junto, de cair sem cair, de perpetuar a queda sem fim, de assegurar o fino equilíbrio do verso, a levitação do verbo, a perpetuação do estado de êxtase da leitura – eis o conectivo altamente volátil e poderoso que se estabelece entre os dois textos, de Sandro Ornellas e Rita Santana, projetos vivos de não.ser.sendo ad infinitum.

  6. Este texto de Rita Santana é admirável, consistente, bem fundamentado. Com grande sensibilidade, a poeta constrói reflexões teóricas em linguagem lirica, revelando as diversas nunças de forma e sentido da poesia de Sandro Ornelas. Mais que uma resenha, trata-se um ensaio interpretativo que demonstra beleza estética e eficiência crítica. Parabéns.

  7. Rita Santana, parabéns por este belo, competente e bem forjado texto crítico. Com olhar teórico bem fundamentado, mas de forma leve e, muitas vezes, poética, você realiza leitura rica e acrescentadora, quando discute o dialogismo do texto poético, observa o jogo da linguagem, aborda questões identitárias, identifica as intertextualidades, conversando com outros teóricos e outros poetas… Assim, enxerga a literariedade do texto resenhado de forma sensível, arguta e crítica. A sua leitura seduz e instiga-nos a ler o livro FORMAS DE CAIR & OUTROS POEMAS, de Sandro Ornellas.

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