Adriano Espíndola Santos
Homens de bens
Naquela tarde, mesmo com o compromisso de buscar o neto na escola, Hélio decidiu sair de casa para encontrar a sua turminha na praça Castelo Branco, porque julgou ser mais importante, caso de providência nacional. Era costume encontrá-la aos sábados, no bar do Jonas Boca de Baleia, só que, desta vez, teriam de bolar um plano. O presidente viria a sua cidade, Fortaleza, no próximo sábado; era imprescindível que o recebessem com honras e pompas, para que se sentisse mais poderoso do que já é – pensava. Falaram sobre as perspectivas da tomada definitiva do poder pelo presidente; que não seria aceitável, de forma alguma, terem novamente o bandido de “nove dedos”. Gozavam e babavam ao falar, tomando, cada qual, a sua cervejinha de lei. Hélio achava que a conversa se estendia e que perderiam o fio da meada: “Caros patriotas, um minutinho de sua atenção… Precisamos mostrar a nossa lealdade ao nosso chefe maior, e, para isso, temos de ser merecedores das insígnias nacionalistas. Explico-me: o tempo está acabando. Chegou a hora de enfrentarmos os comunistas, custe o que custar. Faremos investidas radicais e filmaremos tudo, para entregar-lhe as gravações. O certo é que, estando ele no poder, seremos prontamente o seu braço direito nesta capitalzinha de merda”. Sim, Hélio falava como mandatário do povo, como o verdadeiro dono da província. Os demais, ávidos por sangue, não escondiam o frenesi em começarem os trabalhos. Combinaram de pegar as suas armas: uns com facas, espadas; outros, por disposição dos novos decretos presidenciais, com suas pistolas lustrosas. Esconderam as bandeiras que flanavam nos carros. Seguiram em comboio para os bairros centrais da cidade, onde poderiam encontrar estudantes e outros seres degenerados. Depararam-se com uma vítima: uma senhora de seus quarenta anos, claramente diarista ou doméstica – e a razão da escolha é porque ela levava uma bolsa com o broche de Lula. Esperaram que entrasse numa rua esquisita, transversal à avenida principal. Desceram quatro, com armas em punho. “Encoste na parede, sua vagabunda! Vai votar mesmo em quem? Em quem?! Bora, desembuche! Ah, não quer falar, né?! Pois, para aprender a votar direito, vai aguentar uns corretivos!”. Bateram, bateram, até deixá-la desnorteada, com a roupa em farrapos, com um furo grande na bolsa, onde antes estava o bendito broche. Mais à frente, encontraram quem queriam, um jovem metido a revolucionário. Colocaram-no no carro de Hélio e aí fizeram as maiores atrocidades: cortaram seus cabelos, bateram em sua boca, deixando-o desfigurado; obrigaram o rebelde a dizer que votaria no presidente. Largaram o sequelado numa rua distante, para os lados do bairro Antônio Bezerra. Queriam mais, mas Hélio achava que teriam material mais do que suficiente. Voltaram ao ponto de encontro e lançaram, aos risos, os vídeos para os grupos de WhatsApp. À noite, quando Hélio voltou regozijado para casa, percebeu que havia notícias sobre atentados políticos feitos por idosos, defensores do presidente, em sua cidade. A mulher e o jovem lesados prestaram queixa e falaram ao veículo de comunicação mais conhecido do país. Hélio titubeou, achou que poderia dar bronca, mas um colega, o Sérgio Cabeção, que estava no meio, telefonou para tranquilizá-lo: “Isso não vai dar em nada, patriota. Amanhã já esquecerão… E mais, o recado foi dado; a vagabundagem vai pensar duas vezes em usar um material com a figura do bandido de nove dedos”. Qual não foi a surpresa de Hélio ao ser acordado pela mulher, no dia seguinte: “O que foi isso, Hélio, me explique logo! Vi um vídeo na televisão em que aparecia o seu rosto e dos seus amigos, espancando aquela mulher e o rapaz que apareceram ontem na televisão. Ainda ameaçaram o ministro careca. Vocês piraram ou o quê?!”. O mesmo ministro carequinha determinou a prisão dos suspeitos. Meia hora depois de ter acordado, Hélio era levado à delegacia, onde encontrou os comparsas. A maior tristeza, que declaravam no olhar, é que não veriam mais a carreata do presidente na Capital. Hélio pensou que a esquerda estava por trás de sua prisão; mas não lhe soaram estranhos os atos do dia anterior. Para as câmeras acenou e gritou, isolado: “Lula ladrão, seu lugar é na prisão!”.
Adriano Espíndola Santos é natural de Fortaleza, Ceará. Em 2018 lançou seu primeiro livro, o romance “Flor no caos”, pela Desconcertos Editora; em 2020 os livros de contos, “Contículos de dores refratárias” e “o ano em que tudo começou”, e em 2021 o romance “Em mim, a clausura e o motim”, estes pela Editora Penalux. Colabora mensalmente com as Revistas Mirada, Samizdat e Vício Velho. Tem textos publicados em revistas literárias nacionais e internacionais. É advogado civilista-humanista, desejoso de conseguir evoluir – sempre. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária e em Revisão de Textos. Membro do Coletivo de Escritoras e Escritores Delirantes. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.