Cecília Vieira
Meu primeiro conto de ficção científica
A cabeça ainda doía pela insônia. Na madrugada, lutei com aqueles pensamentos borbulhantes que fermentavam alternativas de respostas para nossa discussão.
Sovei bem essa massa de opções e a cozinhei no lado esquerdo do cérebro. Transformei tudo em produtividade e encarei meu primeiro banho do dia tentando sentir a energia da cromoterapia, efeito da lâmpada recém instalada no box. Última moda de relaxamento inconsciente do mercado.
Na noite anterior brigamos feio. O pior é que ele me deixou falando sozinha, mal respondia meus argumentos. Deve ter achado que agir assim resolveria. Até agora no café, pelo jeito, pretende ficar sentado à mesa sem me dirigir uma palavra.
Ainda não parei hoje, até esse momento do barulho ensurdecedor do liquidificador. — Quando compramos dizia ser o mais silencioso! Sigo na tentativa simulada. — O quê? O que você falou? Não escuto fazendo a vitamina!
Nada, indiferente. Ele bem sabe, que nada me irrita mais.
Ignorarei também. Afinal são 7h e eu já fiz minha meditação, exercícios faciais e os de “barriga negativa”. Check na primeira hora do dia. Pronta, não preciso da aprovação dele.
Os gêmeos, na correria matinal para a escola, não reparam na nossa falta de diálogo. Mal sentam à mesa, já levantam com a comida na mão falando combinações que só entre eles são compreensíveis. A caçula, no fone, nem que quisesse participaria da conversa, se houvesse alguma.
As crianças mandam um tchau de longe e ele nem olha. Isso já é absurdo. Nosso combinado sempre foi não misturar nossas discussões e o relacionamento pais-filhos. Meu nervoso só aumenta e desconto batendo em tudo enquanto procuro aquela lixa de unha que nunca está onde a deixei.
Agora vai se levantar e sair da mesa, no mínimo, para se fingir de incomodado com minha loucura.
Permanece quieto.
Então é guerra. O que era um conflito por temas banais, totalmente passível de resolução rápida e com bom senso, tornou-se daqueles que durarão o fim de semana. Incluindo sogra, cachorro, periquito e papagaio.
— Oi Alice! Sim, já estou descendo. Claro, faço questão. Mas na volta do happy hour hoje, você dirige porque é meu turno, lembra? Desligo o celular que fiz questão de atender ainda no apartamento.
Não, as vizinhas-colegas de trabalho-amigas de vale night ainda não estão na cota para serem afetadas pela briga conjugal.
Calço meu salto, bato a porta, chamo o elevador.
— Ai, esse salto não! Lembro que tirei o sapato de dirigir do carro, para limpar.
Escancaro a porta, reparo aquela nuca impassível, concentrada permanentemente no vídeo do celular. Toc toc toc toc, meus saltos pisoteiam o flutuante a ponto de quase se partirem, mas a tal série repetida deve ser mesmo mais interessante que resolver de vez a confusão.
Nessa altura, um olhar bastaria. Um — Mirela, me exaltei ontem, estou quieto repensando. Não. Só meu salto raspando na cabeça dele enquanto calço a Crocs.
Dessa vez não bato a porta. Cumprimento o vizinho de andar que segurava o elevador. — Obrigada! Bom dia! Quase terminando a semana, não?
No trabalho debatem o assunto noticiado pela manhã: um feminicídio ocorrido ali perto. Em plena luz-do-dia, o ex-marido com arma branca. — Em que mundo vivemos. — As mulheres não têm mais lugar. — Em casa está ainda mais perigoso. São os comentários dos que anseiam por uma justiça urgente. Fico sem saber o que falar. Compartilho do sentimento póstumo, mas me aterroriza o antes, em como relações chegam a esse ponto.
Após o almoço e com a fome ainda presente resultante da marmita fitness, olho constantemente o celular para checar o status online. Nada. E isso me surpreendeu. Só pode ter decidido fazer home-office, se afundou na vergonha de alhear-se a família e intensificou o trabalho.
— “Mãe, tem q autorizar nossa participação no campeonato do futs! E tem q ir junto”. É a mensagem que encontro no grupo da família. E continua… — “Viu, mãe? Pode ser? Vc marca lá no app da escola”. — Meninos, vocês sabem que assunto de futebol é com o pai de vocês! Minha chance. Joguei a isca, agora é aguardar.
— Ele não responde. Faz aí mãe. No dia ele vai. — Faço só isso então. Não posso perder minha trilha do sábado, já que domingo cozinho a comida da semana.
— “E antes tem q me deixar no coral, mãe!” — Sim filha. Feito meninos, agora peçam pro pai e me avisem.
Não fisguei ainda, mas coloquei gente para me ajudar. E não, eles ainda não perceberam nada.
A noite seguiu como esperada. Dois Mojitos para alegrar a conversa previsível das amigas sem intimidade e a cabeça na mesa do café. Por isso, o efeito do terceiro foi no #tbt da nossa última viagem de casal, com a legenda “amor pra vida toda”. Cansada dessa briga arrastada, da qual já nem me lembro o motivo.
Agora ele foi marcado, vai ver e abrandar aquele coração que só eu sei como é mole. Estou até agora sem entender qual das nossas falas rompantes o fizeram se chatear tanto, a ponto de desaparecer das nossas vidas.
Só quero logo que a motorista da vez se canse; libertar meus pés; tomar meu segundo banho e rir dessa confusão toda. E que as pazes não se prolonguem porque tenho minha leitura diária antes de dormir.
— Tchau querida, adorei! Sempre bom! Mês que vem deixa comigo.
Ao final de um suspiro, no espelho do elevador, reparo meu rosto. Quando foi que envelheci assim? Passo alguns segundos tentando entender o que faço ali, naquele lugar. Olho para os botões e não sei qual apertar. Apenas alguns segundos, de branco total, um frio no estômago como em uma queda livre. Por fim enxergo o 17. Isso, é ali.
Tudo quase volta ao normal, não fosse a indignação e decepção. A rotina cronometrada deveria estar mais eficiente, acho que falta incluir algo. Quem sabe nos 15 minutos restantes do almoço — Google, encontre um app para estimular memória após os 50. Talvez dormir seja uma boa opção. Um abraço apertado com autorização para choro sem porquê, também. Mas não, esses não aparecem na lista de trends.
Abro a porta com cuidado. Escuto o videogame dos gêmeos e as tentativas de afinação da caçula. Olho para a mesa e não seguro a risada.
É sempre assim que ele me ganha. Resolvendo tudo com bom humor. Como conseguiu voltar para a mesma posição da manhã?
— Oi Marcelo! Também senti sua falta. O salto enfim não resiste e se quebra com meus braços ainda em movimento para o abraço estalado pelas costas e um cheiro no cangote, quando tropeço e seguro no ombro dele com tudo.
Ele tomba devagar, para o lado, e bate a cabeça na parede. Um pedaço da orelha cai no chão.
Solto um grito atordoante.
As crianças aparecem esbugalhadas no corredor.
Me agacho trêmula e pego o pedaço da orelha. Do lado de dentro um papel, algo escrito em um tipo de etiqueta.
Com a vista turva pelo medo e assombro leio:
Modelo Cyborgue Yi1723. Para atualização de sistema e recarga de bateria abra o QR CODE.
Cecília Vieira é brasiliense, mãe de dois meninos e mestre em RH pela Universidade de Salamanca, Espanha. Estreou na literatura infantil com o “Marina a girafa que queria ser estrela”, na Bienal SP/22. É contista em coletâneas e revistas literárias. O conto “Perfeitamente equilibrado” foi um dos vencedores do 19º Prêmio Mário Quintana de Literatura. Lançou em 2023 o ebook “Guadalupe sobre um tapete de mangas” e o livro “Se tudo der errado não volto”, pela Caravana. Siga a autora em @cecivieira_eu.