Drops da Sétima Arte

Por Guilherme Preger

 

A Substância. Reino Unido/França. 2024.

 

 

O filme recente, que concorreu em Cannes e ganhou prêmio de melhor roteiro neste festival, vem assustando ou impactando muitos espectadores.

A obra da diretora francesa Coralie Fargeat tem elementos de contato com Titane, de Julia Ducournau, que ganhou a Palma em Cannes em 2021. Ambos são filmes de horror, baseados em metamorfoses corporais, filmes nos quais uma sensação de incômodo, beirando a aversão, atravessa a plateia. Ambos os filmes também trabalham com elementos fantásticos, que não são simplesmente “surreais”, como nas versões modernistas, mas também não são sobrenaturais. O fantástico nesses filmes é um gênero de hibridização com formas inaturais, aberrantes. Não é sobrenaturalismo nem surrealismo, mas inaturalismo. Não trabalha com objetos, mas com abjetos. Trata-se de um cinema que tem uma interface com a literatura do insólito, como na obra da escritora argentina Mariana Enriquez.

Esses dois filmes abordam as intervenções técnicas no corpo produzindo deformações que precisam ser “incorporadas” pelas personagens. Nisso, fazem referência aos ciborgues da teórica Donna Haraway. A menção a esta teórica é importante, pois se tratam de obras sobretudo feministas, mas que não reivindicam um estatuto próprio à feminilidade, mas, ao contrário, indicam o que podemos chamar de uma “desapropriação do feminino”. Na obra de Haraway, o ciborgue é justamente aquele que “borra” o binarismo sexual e o dualismo natural/artificial.  No entanto, os filmes diferem num elemento fundamental: em Titane há um processo de alienação psíquica que é almejado e desejado (o ego deseja ser outro), ao passo que em A Substância, o ego procura um encontro com sua própria essência “substancial”, para além das formas corporais.

O filme de Coralie tem um apelo extra, que vem a ser metalinguístico, ou ainda, que é a feliz escolha pela atriz Demi Moore como protagonista para um papel que basicamente é o de interpretar a si mesma. Moore como se sabe é uma atriz icônica, mas que está associada a um semblante jovem, representante de uma geração (dos anos 80) que agora envelhece, o que significa para as atrizes (que ultrapassaram os cinquenta anos) um deslocamento para o ostracismo. No filme ela interpreta a atriz Elizabeth Sparkle, que se tornou uma estrela de aulas de ginástica (como Jane Fonda, outra atriz icônica de geração anterior), mas que os patrões da indústria cultural (representados pelo ator Dennis Quaid) querem “aposentar”. Elizabeth tem o destino de estrelas que são tratadas pela indústria cultural como “corpos bonitos”, o que quer dizer especialmente jovens e sexys. O envelhecimento significa para elas algo que simplesmente “stops”, como lhe diz o empresário bufão, branco e machista Harvey (Quaid).

 

Demi Moore como Elizabeth Sparkle / Foto: divulgação

 

No roteiro do filme, Sparkle tem acesso no mercado negro a uma “substância” que quando injetada nas veias dá lugar a uma bifurcação genética gerando uma cópia de si (clone), porém mais jovem. No filme, esta Elizabeth jovem é vivida pela atriz em alta Sarah Qualley, filha da atriz da mesma geração de Moore, Andy McDowell. A bula da “Substância” indica que as duas Elizabeth, a jovem e a madura, devem trocar (switch) de posições a cada semana. A bula também diz que elas não são duas, mas uma única pessoa. Uma só pessoa, mas com dois corpos. Enquanto uma vive, a outra “hiberna”. Mas a troca entre os corpos precisa respeitar o prazo de uma semana, ou consequências sérias acontecem.

Embora seja a mesma Elizabeth, sua versão jovem assume o nome de Sue, nova promissora atriz que ocupa precisamente o espaço de estrela destinado a Elizabeth, com um novo programa de ginástica no qual desfila seu corpo jovem e sexy. E então no roteiro do filme começa uma disputa entre as duas Elizabeth, a jovem e a madura, que agem como se fossem duas mulheres diferentes, mas que são a mesmíssima pessoa. Essa disputa vem às expensas da decrepitude acelerada da mulher madura, mas cuja desconstrução corporal ameaça a saúde da mais jovem. Ambas estão “umbilicalmente” ligadas. O melhor seria então dizer, “geneticamente ligadas”.

 

Sarah Qualley como Elizabeth Sparkley / Foto: divulgação

 

O mais interessante da obra de Fargeat é a incorporação de referências literárias. Já mencionei sua proximidade com a literatura do insólito. Em A Substância ecoam dois clássicos da literatura do século XIX, de influências góticas: O Médico e o Monstro, de Robert Louis Stevenson e O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde. Deste último, em particular, o filme parece uma releitura cinematográfica.

Mas a principal referência é a sua proximidade manifesta com o cinema de David Cronenberg. Há primeiramente uma relação com seu duplo, como em Gêmeos, mórbida semelhança do diretor canadense.  Há igualmente um interesse nas deformações corporais e no cruzamento entre corporeidade e tecnologia, no qual os corpos são objetos para intervenções tecnocirúrgicas (como em seu filme recente Crimes do futuro) ou hibridizações genéticas (como no clássico A Mosca). Há, no entanto, uma diferença crucial entre os dois diretores: a questão de gênero.

Os filmes de Cronenberg, ao que pese suas qualidades indiscutíveis, não deixam de apresentar aquilo que é chamado de “mirada masculina” (male gaze). A mirada é um gozo voyeurístico presente no cinema. Seu gênio absoluto foi Alfred Hitchcock que fez a mirada do espectador adentrar o espaço cênico como composição. Os exemplos mais óbvios são os filmes Janela Indiscreta e Psicose, em que  o gozo da mirada não é apenas um tema, mas é parte da construção da própria imagem cinematográfica. Este assunto foi objeto de diversas leituras psicanalíticas. No entanto, a mirada cinematográfica sempre foi tendencialmente masculina, principalmente quando a mirada recai sobre o corpo da mulher.

O que Coralie Fargeat faz em A Substância é desconstruir essa mirada de viés masculino. Sem recusá-la, ela a “deforma” e faz com que o corpo da mulher de objeto se torne abjeto. Faz com que a exigência de que o corpo feminino seja jovem, bonito ou sexy, seja revertida em monstro. De um lado revela o aspecto senil, branco, decrépito e grotesco da indústria cultural (uma verdadeira máquina monstruosa), retratada no conjunto de seus acionistas, homens velhos e brancos que são justamente os voyeurs iniciais da cadeia de exploração das formas femininas. Por outro lado, também denuncia por detrás o desejo cúmplice (pois todo gozo tem cumplicidade com o desejo) das mulheres com sua obsessão em corresponder aos apelos de juventude e beleza eternas, ou a própria dificuldade de lidar com a decadência corporal.

Walter Benjamin já escreveu que o choque estético, iniciado na obra do poeta Charles Baudelaire, havia sido incorporado tecnicamente pelo cinema. O cinema, para o filósofo alemão, era a arte do choque. Noventa anos depois de seu artigo (1936), o choque perdeu sua capacidade de impactar a sensibilidade do espectador. A questão não é que o cinema deve assumir formas cada vez mais radicais de choque, próximas ao terror, como certa linhagem cinematográfica pretendeu, explorando a violência ao ponto do sadismo. Essas novas diretoras trazem outra via para atender a necessidade do cinema “mexer” com a sensibilidade do público. Coralie Fargeat consegue construir um cinema do incômodo estético, retirando do espectador o direito a uma mirada acomodada.

 

 

Guilherme Preger é carioca, engenheiro e escritor. Doutor em Teoria da Literatura pela UERJ. Autor de Fábulas da Ciência (ed. Gramma, 2021) e Teoria Geral dos Aparelhos (Caravana, 2024). Mantém o blog Resenha Cibernética  e faz curadoria do cotidiano diária no Mastodon no endereço @gfpreger@piupiupiu.com.br. Escreve sobre cinema na Diversos Afins desde 2015.

 

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