Jussara Salazar
ars memoriae
Tenho uma vaga lembrança
De um pássaro [De um mar
De lembrar essa vaga [Essa água
De reprise de ondas
Filmes desbotados [De sombras
Marcas [De patas úmidas
De animais ao redor da casa
Peixes de celofane
Tenho uma vaga
Que se vai
Que se vem
Alga caravela de fogo
Boiando [Como uma chaga
Essa água
Chamada lembrança
Vagando chegando
***
sobre amanhecer no agreste
nessa aridez que tudo ocupa
terra semeada à faca_ iamanaka’ru
como se em terra sua
lança suas bordas afiadas
fere a pele de sua pele quando rasga
em si_ como se nasce_ sem água
essa terra que lhe serve de morada
e se lhe sustenta a epiderme_ é para
quando a sede que lhe bebe lhe serve
nas noites de frio espelhe-se
em galáxia de órion que vaga
lá do alto como a fruta violeta
_ a polpa breve
no céu da noite ao amanhecer
fúria
que o sol no catimbau floresce
_recrudesce_ em meio ao nada
***
visão de n.s. da feira do Arcoverde
En roscas de cristal
serpiente breve não vês?
pois ouve
seu farfalhar quando
resbala uns
guizos preguiçosos
arabesco
vivo venenosos
rodeando o barro das
vasilhas e moringas
esticadas ao sol gongórico
entre pés
idas e vindas
os peixes
presos ao calcário
gasto há mil anos
pétreos sob o sol
em duro calvário
não despertam
nem
à castanha passagem
ruidosa passagem
de cabras e trens
um cão
o vento
o vento
os bois
o tempo
a água
pingando
na lata
as mulheres
os homens
a montanha xukuru
a mata
e a procissão das
vestes negras o
corpo santo que
atravessa ao dia
o corpo
ornado de velas
vai ardendo a
parafina
à revelia
tão morno
tão fria
tão morna latomia
tão morna latomia
tão morna latomia
enquanto um tambor
ressoa
o som tortuoso
a ladainha ao
longe não é
senão
a luta de um vivo
e de um morto
timão fiado
santos
santa
barrueca bendição
eu e
minha avó
ali
temos
cem anos
de sertão
um cão
o vento
o vento
os bois
o tempo
a água
pingando
na lata28
as mulheres
os homens
a montanha xukuru
a mata
a terra castanha
como
as cabras
exibe suas
cicatrizes
sem
água
a terra
seu chão29
eu e
minha avó
na solidão
ali
temos
cem anos
de sertão
***
O sal
essa sílaba
mínima
marítimo oceano
um grão
cristal
pedra d’água
o sal
essa sílaba
para lavar pés
e derramar
sobre a cabeça
do santo
como o batista
um dia o fez
o sal
essa sintaxe salsugem
para a onda
levar
e trazer o cão
a escama
translúcida
essa bendição
o sal
de queimar o mar
das águas vivas
das pedras lavadas
das ervas nocivas
do encarnado
multitudinoso
rubro carnoso
oinopa ponton
homérico salobro sal
para sangrar o mar33
para levar
a onda
para trazer
o corpo
e cobrir as conchas
o fundo do barco
como mínimos
diamantes
para te parir
por um instante
o sal
***
das manhãs na rua das moças
sobre a mesa antiga
marcas
ranhuras
mapas riscados
rotas marinhas perdidas
……..[antigos oceanos]
entre panos
da costa
cauim
papéis recortados
as frutas
respingam um frescor
como as folhas brilham
nas mãos que as colhem
na tábua que as acolhe
e sangram seu sumo
como no andor36
de procissão incensada
sagradas
as frutas
as folhas que Nhá
com mãos escuras
lava
eleva
lava
mergulha
na ágata
e bendiz
as manhãs
da morada
Jussara Salazar é doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade de São Paulo [Fapesp, 2016], é mestra em Teoria Literária pela Universidade Federal do Paraná (2010). Escritora, tradutora e artista visual, pesquisa ainda alguns mitos relacionados à oralidade e ao feminino havendo publicado “Inscritos da casa de Alice” [1999], “Baobá, poemas de Leticia Volpi”, [2002], “Natália” [2004], “Coraurissonoros” com tradução de Reynaldo Jiménez [Buenos Aires, 2008], “Carpideiras” [2011] com a Bolsa Funarte, ficando entre os finalistas do Prêmio Portugal Telecom na edição de 2012, “O gato de porcelana, o peixe de cera e as coníferas” [2014], “Fia” [Projeto Funcultura, 2016], “Corpo de peixe em arabesco” [[2019], “O dia em que fui santa joana dos matadouros” [2020], Prêmio Hermilo Borba Filho e finalista do Prêmio Jabuti e Bugra [2022].