NAS CINZAS DAS HORAS DEPOIS DAS HORAS
Por Maruzia Dultra
De todos os órgãos, a pele é o que possui o trato mais direto com o tempo – “o tempo nos toma/ feito obsessor/ revira nossa pele”, “a urgência/ de cada gesto como/ envelhecer todo dia.” É nela e através dela que a passagem das horas se faz presente-passado-futuro, esculpe o corpo a seu modo, nos cava fugazes demoras de uma poesia vívida que “todo mundo vê, o cinegrafista vê, a jornalista vê, mas não escreve, não tem tempo” (Miró da Muribeca). Nos falta tempo, no entanto é irresistível “inventar uma pele para tudo” (Nuno Ramos), roçá-la, esfolheá-la, penetrá-la, transpassá-la.
Aí me cai, sobre “o tato mais experiente [que] é a palma da mão” (Arnaldo Antunes), essa espécie de tratado dermotemporal. Um “cair como caem” os sonhos, ininstagramável “instante-já” (Clarice Lispector). Não consigo deixar de perceber assim o livro de poemas O inquilino das horas (Villa Olívia, 2024), de Nílson Galvão – “Newson”, o poeta da física, como brinco –, que não se constrange frente a dicotomias ilusórias e persegue imagens complexas, que não refletem, nem complementam as polarizações do mundo – antes, nos dizem baixinho e mansamente: sim E não.
Imagens que escapam às binariedades vulgares que “acusam o ridículo do pensador: sim, sempre os dois aspectos” (Gilles Deleuze): “ser é quente-e-frio”; “ela chora e ri”; “coisas combinam e não”; “ainda/ é ontem, já é amanhã: nunca/ soube decidir sobre coisas assim.”; “quase/ não chove por quarenta/ anos e chove chove chove/ por quarenta anos, e ficamos/ doidos de nossos sentidos,/ quer de alguma chuva/ quer de chuva alguma,”; “tão diversos/ tão simétricos/e tão os/ mesmos.”; “o vagão impregnado de/ algo indefinível e palpável/ no entanto”.
É nesse incansável vaivém de inclusões (vai E vem, porque a norma linguística não sufocará o gracejo!) que o poeta faz morada no tempo, reverenciando-o em seus “deuses quandos”: “já faz muito tempo/ mas naquele posto/ persiste a imagem de/ uma súbita mudança”; “ali ulisses nos aguarda com a/ civilização inteira em sua loja/ de quinquilharias.”; “a começar/ pelos ossos partidos/ dos que foram jogados/ no abismo da história”; “as bananas/ quase verdes// agora quase/ passadas// neste canto/ da casa.”; “o tempo é um sol/ decaído, fica frio mas/ um sol é um sol”.
E, na duração das fotografias em preto E branco de sua memória, dentro delas, de seus grãos, verte em personagem constante a manhã: “hoje de manhã não havia/ manhã nenhuma quando/ acordamos”; “não menospreze as manhãs/ esquisitas, dessas que nascem/ com um brilho que não é o que/ se pensa”; “o nome/ do silêncio/ exato/ entre um/ galo e o/ outro e/ o outro/ no halo/ dessa manhã”; “a pele frágil da/ manhã ficando vermelha”; “a verdade late lá fora./ temos tanta coisa pra/ fazer e a manhã é tão/ curta.”
Dizer a manhã “pele do dia” faz cruzar topologia e cronologia, ao modo filosófico de uma pele-tempo, como ocorre no vivente: a superfície dérmica é o presente do corpo, por isso “o tato não tem antecipação” (Sandro Ornellas) e “organiza na pele uma inteligência” (Lais Muller). Daí também a interioridade corporal ser entendida como passado (tempo regresso, do já vivido) e a exterioridade como futuro (tempo sucessivo, do vir a ser): “O presente é essa metaestabilidade da relação entre interior e exterior, passado e futuro.” (Gilbert Simondon).
Em meio ao passado interior e futuro exterior, a derme: “de criatura esquisita de quem olha/ de baixo de quanto mais baixo de/ muito mas muito mas muito mais/ baixo sob a atmosfera o chão a pele/ sob a pele sob as sete peles”; “toda/ pele arrasta gosta de/ arrastar-se. toda pele/ enrosca. toda pele/ toca. toda pele fuça./ (…) a pele sabe os poros.”; “a alma/ se tem dor não é com/ a pele que sente”; “deixe que a pele se acostume ao/ que não se sabe.”; “toda pele/ à espreita: toda pele é/ outra.” Toda a pele à espreita quer outra, em sua defasagem, nas cinzas das horas depois das horas cinzas das horas depois das horas… – convite que subjaz em O inquilino das horas, embora insurja do mais óbvio e exposto contorno de nossa incontornável realidade de corpo.
Maruzia Dultra é jornalista, artista-pesquisadora e poeta.