Dedos de Prosa I

Mayrant Gallo

 

 

Ilustração: Denise Scaramai

 

 

CARAS QUE NÃO COSTUMAM LER LIVROS

 

Dani Dark tinha viajado. Rio de Janeiro. Um congresso em seu ramo de atividade, que não vem ao caso explicitar aqui. O certo é que, àquela hora, ela estava num hotel da Zona Sul, o mar em frente, numa verdadeira metrópole, e eu aqui, comendo no Yang Ping do Center Lapa e, nos dias em que não tinha trabalho, saindo cedo para caminhar no Dique. Era tudo. Meu trabalho, vocês sabem… Quem leu os contos do Gallo já me conhece. Eu mato. Sou pago para matar. Gente rica, e até gente pobre, me contrata com frequência. Mas também já matei para fazer cumprir a justiça. Instinto de nobreza, uma coisa assim do Zorro, que não faz de ninguém um sujeito melhor nem pior ― muito menos eu ― e que, sobretudo, não nos salva do injustificável: o fim do túnel lá adiante e o salto, afinal, no abismo.

Uma semana antes, como estivesse na cidade um escritor de São Paulo, lançando um livro, compareci ao evento, na LDM do Itaú Cultural. O cara autografou o livro para mim, e fiquei lá, zanzando entre os escritores. Dei até a minha opinião sobre um poema do Ruy Espinheira Filho, que Milena Brito, Tom Correia e o Gallo ― acima citado ― leram com reverência, a um canto da livraria. Falei: “Metáfora da ditadura militar”. Eles concordaram, e logo saí, fui me restabelecer no balcão com um cappuccino gelado. De lá, fiquei olhando a plateia. Quero dizer: as pessoas que compareceram para comprar o livro do escritor. Me perguntava quantos de fato o leriam e quantos não estavam ali apenas pela dedicatória ou pelo autógrafo, rabiscados na folha de rosto. O autor parecia dos bons, com títulos que ressoavam: Não há nada lá. Ou: Do fundo do poço se vê a lua. Um sugeria desesperança, e o outro, o inverso. Whitman aprovaria. O velho João Antônio também. E os três livros que abri e folheei, entre os quais o que o autor me autografou, começavam bem, produziam interesse. Acabei então o meu café e fui para casa, ler. Não precisei sair à francesa, pois ninguém me conhecia mesmo. Eu estava isolado, sou comumente isolado, e esta é realmente a maior das dádivas.

De manhã cedo, lá pela página 35, o autor ― Joca Reiners Terron (e tive agora de pegar o livro para achar este nome do meio, pois tenho dificuldade em memorizar nomes triplos) ― o autor continuava me seduzindo. À tardinha, idem. Tanto que eu estava quase no fim do volume e entrei na internet e adquiri outra obra do cara, A tristeza extraordinária de alguma coisa. É a vantagem de se trabalhar para si mesmo e exercer uma atividade lucrativa: pode-se ler à vontade e quando se quer. E adiar as obrigações, que jamais serão inadiáveis.

Finda a história, e não eram vinte horas ainda, pus calção, camiseta, tênis e desci para uma corrida no Dique. Passei pelo porteiro, que cumprimentei como sempre, levantando a mão, ao mesmo tempo para que abrisse o portão e se sentisse bem, por eu enxergá-lo no seu trabalho diário.

O Dique estava quase vazio. Na segunda volta, vinte minutos depois, eu passava por um jogger a cada duzentos ou trezentos metros, sempre homens, nenhuma mulher. Eu ia correndo e pensando no livro, também em telefonar para Dani, que estava no penúltimo dia do tal congresso. E foi então que cheguei ao fim e me sentei num dos bancos. Um orixá próximo, horroroso. A típica arte do típico e que não nos diz nada, a não ser para os turistas, que também são típicos. Eu estava lá, olhando a lua subir, respirando um ar frio e menos poluído, todo suado, alguns mosquitos grudados na testa, reflexos do Terron ainda na cabeça e nos olhos, quando dois caras chegaram da escuridão e se sentaram, um de cada lado do banco. Ambos negros, desnutridos e inúteis. Mantive a calma e pensei que as pessoas são livres para se sentar onde quiserem. E que o banco não me pertencia e que eu não poderia exigir que eles saíssem. Então saí eu, mas, mal havia dado dois passos, ouvi:

“Onde cê vai?”

Eu poderia dizer “Não é da sua conta” e seguir em frente, mas preferi parar e esperar.

“É, onde cê vai?” ― disse o outro, como um eco.

Me voltei. E só me ocorreu, naquele momento, arrancar de minha testa dois mosquitos que estavam me incomodando ― mortos, afogados, contra o meu suor.

“Eu tenho uma casa e é para lá que eu vou”.

“Não sem a gente”, o primeiro disse e se levantou, e tinha um revólver na mão e o ar de insolência dos poderosos da política, quando não estão em público fazendo média com o eleitor burro, burro o suficiente para acreditar em palavras repetidas à exaustão, desde o tempo em que, entre animais, o primeiro homem impôs a outro a sua força.

Vestiam bermudões, folgados, as cuecas à mostra, e camisetas de tecido sintético, com propagandas de cervejarias, restos do último carnaval. Nos pés, sandálias que antes só os verdureiros e estivadores usavam. E nas cabeças, com as palas sobre a nuca, bonés de clubes de futebol rivais. Os braços eram finos e tatuados, desenhos que mal se viam sobre a pele fubenta, que estava longe de ser uma tela branca. Exalavam tristeza. Um odor de quarto de hotel barato, das Sete Portas.

Havia um segundo livro do Terron me esperando e um terceiro a caminho, nas malhas da internet. E havia aqueles dois caras ali, que não fariam nenhuma falta ao mundo.

Abri os braços, mostrei que estava liso, que não tinha dinheiro algum, nem celular, nem qualquer outro tipo de aparelho comigo, apenas minha identidade, o cartão do plano de saúde e um papelzinho com o telefone de Dani Dark, para o caso de eu ter um treco, cair afogado também, em meu suor.

Mas eles eram insistentes, queriam que eu fosse com eles em casa, pegasse o cartão bancário, fôssemos à agência mais próxima ― falaram assim, “agência mais próxima”, como num comunicado de tevê ou um impresso de publicidade ― e lhes entregasse uma boa soma.

O que eu poderia dizer, diante da argumentação de um cano frio? Eu, que a meu modo, também matava e sabia que não é preciso motivo algum para se apertar o gatilho numa noite, mesmo de lua…

Assenti:

“Tudo bem, moro nos Barris. É só subirmos a ladeira”. Uma mentira, pois quem já leu o Gallo sabe que moro mais à frente, no Politeama.

“Pare de falar!” ― um deles disse. “Só vá andando, que a gente vai junto, do seu lado”.

E este foi o erro. Quem conhece o caminho do Dique para os Barris sabe que, depois da funerária A Decorativa, à direita, há uma curva e que os ônibus, sobretudo à noite, dobram ali chapados. Foi o que me bastou. Ia com um de cada lado do corpo e, quando ouvi o ruído do ônibus às minhas costas, empurrei o cara da esquerda para a pista ― ouvi o baque ― e, quase simultaneamente, num gesto simétrico, dei uma violenta cotovelada no outro, à minha direita. Ele caiu, e o revólver, que antes apontara para mim, estava em minhas mãos. Não hesitei. Era ele ou eu, como se diz, embora não fosse verdade.

Veio a polícia, e tive que me explicar: os caras tinham me sequestrado, queriam dinheiro, e todo o resto… Ao fim, o delegado, que sabia das minhas atividades, só faltou me abraçar por livrá-lo daqueles dois mosquitos afogados em crimes, um dos quais era suspeito de molestar mulheres e crianças, no Dique. Caras que não costumam ler livros morrem indistintos. Não sei mesmo quem disse isso, mas é um belo aforismo.

O único inconveniente foi que cheguei em casa depois das vinte e duas horas. Sacudido. Escangalhado. À minha espera, havia um e-mail de Dani, afetuoso, e dois outros, de clientes disfarçados de spam, requisitando meus trabalhos. Ia ter que dar um tempo na leitura. Do Terron e de qualquer outro escritor. Bem, pelo menos, em troca, eu ia ser remunerado. Matar sem grana, só por justiça ― e, neste sentido, eu já havia cumprido a minha cota do mês ―, não leva a nada.

Dani, que preferiria que eu fosse mecânico de automóveis ou músico de quinta categoria, não ia acreditar quando eu lhe dissesse que tinha saído para correr no Dique e, por acaso, matei dois caras. Ela ia dizer, como sempre, lembrando-se do célebre caso do cinema ― em que matei um babaca no banheiro, durante a sessão:

“Sem essa!”

 

 

(Mayrant Gallo é autor de Os encantos do sol (Escrituras, 2013), Cidade singular (Kalango, 2013) e O inédito de Kafka (Cosac Naify, 2003). Este conto foi escrito exclusivamente para a Diversos Afins e incorporado ao volume inédito O próximo herói)

 

 

 

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