Janela Poética V

José Carlos Sant Anna

 

Gabriel Rastelli Quintão

Foto: Gabriel Rastelli Quintão

 

 

Descabido no orvalho, penso diferente
do que sonho porque o inefável me acena
palavras que me fazem tão leve, por acaso
mais leve do que claro, sem que firam o ser
ou o corpo que contraio. Logo, não me aferro
ao sonho, ao amor da existência que me
fere a pele, que aguça a minha sede, aflige
o meu sono e me abandona às margens
dessa vida em que me diluo sem saber
se o que estava em mim me subjugava
ao nada ou é o excesso que se move como
um rio ou é uma febre que só a si mesma
se compara, movendo-se dentro de mim,
distendida, como se fosse um par de asas.

 

 

 

***

 

 

 

Qualquer dia que me cale fundo,
…….paciente,
seguirei o teu chamado

Será um mergulho por esplanadas
e um livre entender
…..das ondas de dentro
……..no curso de um rio que se pressente…

 

 

 
***

 

 

 
tudo o que ela queria
era um flash,
um instantâneo
nada, nada mais que isto,
ou talvez, quem sabe,
tudo isto.

epígrafes nas páginas ímpares,
escritas ao léu,
filmes
gibis
baralhos
tarôs
bricolagens
ou imagens bruscas do Aleph de Borges
ou um bouquet de Simone de Beauvoir
no café da manhã

e o coração bumerangue
não estaria nem aí
para a histeria de Freud com pane
no seu imaginário

ou para as linhas tortas do império romano
sem as agruras de César
e, mesmo assim, para um Balzac caricato
o que ela faria do seu diploma
de anjos radioativos,

se o levassem a um cruzeiro
em mar constelado
cheio de metáforas de incertezas?

o que seria da maquete
de frutas silvestres adornando o salão de arte?

o desvario do seu idioleto é
a estupefação da sua poesia

Ah! e como ela oscila nos lapsos
da reinvenção da palavra.

 

 

 
***

 

 

 
Meus olhos compassivos andam postos,
Em minucioso silêncio e vínculo perfeito,
Sobre um horizonte de estrelas tatuadas
Que alumbram o signo traçado do mundo
E soletram palavras para a mão da noite
Que repousa sobre o dorso de uma lua
Prata, pasmada em céu aberto, a revelar
Uma alegria imensa a correr por suas veias,
Como a urgência de um rio, venturoso,
Liberto do jugo incerto, sem temer
As ribanceiras. É nessa serenidade ante
Os ritos de passagem que a mão do Pai,
Substantiva chama oculta, ensina a este
Peregrino as razões do ser para essa busca.

 

 

 

***

 

 

 

Afastar-me é o remédio para livrar-me do convívio
com esse vírus ignominioso, de palavras ásperas,
insensatas, dizer não à caverna, ao deserto aberto
fechando a porta ao vento de areias premeditadas;
apagar os frágeis sinais da ponte, dos cipós, da lua
feroz erguida dentro de vós porque a tua doença
faz desmoronar tudo num instante, sem que a arte
aceite esse veneno em sua raiz; deixar que outro sol
cante em minhas entranhas como a sombra da tarde
pois, uma vez decepada a minha haste, o sangue
espesso jorra ao ouvir a sirene de uma engrenagem
muda. Morte e movimento se esbatem nessa margem;
minhas braçadas não aguentam o tamanho desse rio.
Quase morto, visto-me a rigor para a noite de luto.

 

José Carlos Sant Anna é professor aposentado da Universidade Federal da Bahia. Atualmente é o editor da  Quarteto. E já andou publicando os seus alfarrábios pela vida afora.

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7 Comentários

  1. Olá José Carlos.
    Gostei do site. É mais uma forma interessante de divulgar os poemas que são uma arte tão bela!
    Adorei os poemas.
    Beijos

  2. Um passeio poético, um lavar de alma, a poesia do escritor de excelência: Parabéns José Carlos Sant Anna

  3. Um grande poeta!
    Com um horizonte largo, dentro e fora de si. E um rio que o percorre que não tem mais tamanho. Um rio com vários afluentes, muitos dos quais ele tenta ainda descobrir a foz. Como todos nós… Só que nem todos sabem dizê-lo poeticamente.
    xx

  4. Gostei poeta. Continue voando nas asas da poesia.

  5. Olá Carlos,
    gostei muito dos seus poemas. Como já havia dito a você, os poemas são formas densas e intensas de dizer muitíssimo com muito poucas palavras. Realmente, adoro. E claro, adorei os seus! Forte abraço e aguardo os próximos…

  6. Belos poemas de um poeta pródigo de frases e palavras que dizem muito de sua sensibilidade. Parabéns
    Maria Lindgren

  7. Muito bom ler os poemas de José Carlos SantAnna! Versos cheios de sugestão e beleza.

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