Aperitivo da Palavra I

PROFUNDANÇAS: TRAJETÓRIA DE UMA GUERRILHA LITERÁRIA

Por Daniela Galdino

 

 

Nos últimos anos tenho me dedicado ao duplo desafio: denunciar a invisibilidade histórica de nós, mulheres, no campo literário; maquinar formas de romper com essa genealogia de apagamentos. Muito embora a energia que me move seja íntima, nasça de vivências pessoais, sei que não estou só.

Uma rápida andada pelas veredas virtuais já é suficiente para percebemos a profusão de coletivos de leitoras, selos editoriais, canais no YouTube e outras plataformas dedicadas à divulgação da literatura de autoria de mulheres. Já é possível falar de uma ampla rede dissidente que, ao existir, tem desafiado a continuidade dos apagamentos. São experiências diversas, vozes dissidentes, lugares díspares a partir dos quais as tramas dessa rede vão se construindo, e mesmo nas diferenças os desejos transgressores nos trazem aos pontos de confluências. Ou seja, aqui o pessoal é político.

Para ficarmos na Bahia – lugar a partir do qual desobedeço – destaco que esses elos transgressores envolvem os clubes denominados Leia Mulheres (já ativos em vários territórios de identidade), o coletivo Lendo Mulheres Negras (atuante em Salvador), as plataformas virtuais Escritoras Negras da Bahia e Escritoras da Bahia, a coleção Das Pretas (pensada por mulheres pretas para publicação de outras pretas escritoras via Editora Segundo Selo), a Irmandade da Palavra (que tem mobilizado mulheres no recôncavo), o Slam das Minas (em que os corpos dissidentes performam os versos cortantes), as edições do Festival Sonora Ilhéus/Serra Grande, que têm aliado a poesia e a música de mulheres. Trago apenas alguns exemplos não institucionais para demonstrar que também seguimos atentas e dispostas a transpor as barreiras da interdição literária.

Nessa energia de partir das perguntas ainda não respondidas (quantas e quais mulheres você leu na escola ou por conta própria?), nasceu na Bahia, em 2014, o projeto Profundanças (numa parceria com a Voo Audiovisual). Ao rebentar-se, Profundanças veio rasgando várias negativas que ainda hoje impedem que os nossos escritos rompam as gavetas e alcancem os amplos circuitos de leitorxs. Nascido e criado como projeto independente dedicado à visibilidade de escritoras, Profundanças parte do reconhecimento de que, associada aos apagamentos e silenciamentos, há uma concentração editorial inviabilizando mulheres escritoras (sobretudo aquelas em atuação fora dos grandes eixos de produção cultural). Daí ser algo inegociável que o projeto vá ao encontro de mulheres que sonham e lutam nos lugares mais diferentes desse universo chamado nordeste (do sertão à favela, da roça ao litoral deslocado), pois entendemos a necessidade de criarmos outros espaços, já que as dinâmicas editoriais voltadas para o mercado são excludentes.

Em cinco anos de projeto, Profundanças editou três antologias literárias e fotográficas que seguem disponíveis para download gratuito. O conjunto desses e-books expressa as conexões que rasuram as distâncias, fazendo com que as águas turvas do Capibaribe alcancem o mar de Itacaré ou que a poeira do Pajeú pinte de ocre as tardes potiguares ou ainda que as marés da Baía de Todos os Santos sejam música nos amanheceres cinzas em Garanhuns. Tudo em Profundanças é diálogo, encontro de dicções e experiências autorais diferentes, somos afluência.

 

 

Em Profundanças a palavra escritoras é acionada para alcançarmos territórios diversos e amplos. Em cinco anos de projeto, foram mapeadas e publicadas 51 autoras nas tentativas de rompimento com a noção hegemônica de mulheres brancas, urbanas/metropolitanas, heterossexuais escrevendo. Sim, precisamos enfatizar outras identidades e seus processos autorais. Num país genocida, racista, feminicida, misógino e lgbtóbico é um ato político de grande impacto veicular imagens e narrativas de mulheres negras, trans, lésbicas, sertanejas, não negras que re-existem a partir das artes. E nessa trajetória de uma guerrilha literária, cada antologia parte da pergunta: quais palavras e imagens podem nos representar em tempos violentos e odiosos? Os poemas, contos, crônicas e ensaios fotográficos de Profundanças são contragolpes à orquestração do medo. Ao dizer isso, inevitavelmente lembro do educador Paulo Freire criticando esse modelo de sociedade que convive melhor com a morte do que com a vida. Queremo-nos vivas e criando – eis o mote de Profundanças.

Outra marca de Profundanças é a horizontalidade. Embora o foco do projeto seja o mapeamento e a publicação de escritoras inéditas ou com apenas um livro autoral publicado, a cada edição participam duas ou três escritoras com maior inserção no campo editorial. Dessa forma, vamos desestabilizando as hierarquias que geralmente definem as dinâmicas de publicação e difusão literária. Interessa-nos muito mais a escuta atenta e o tear de palavras/imagens em lugar das disputas literárias nutridas por posturas de egolombras que exercem seus domínios nas curadorias de eventos, nas editoras, nos circuitos de difusão literária.

Contornando as disputas egolombristas, combatendo a invisibilidade de escritoras, rasurando os grandes eixos de produção literária, criando e ampliando um espaço dissidente de publicação, investindo no virtual como campo produtivo, fortalecendo as redes que divulgam literatura escrita por mulheres, Profundanças vem aprendendo outros modos de atuação. E, nesse corrupio coletivo, de certa forma vamos conhecendo outros modos de ler, à medida em que os nossos livros vão ocupando espaço de destaque nas experiências coletivas de acesso. Já temos notícias das antologias de Profundanças sendo lidas, inclusive, em espaços que não dispõem de redes de internet, pois há xs seres amavelmente transgressorxs que baixam o livro, salvam em alguma mídia e exibem nos computadores de escolas rurais – só para citar um exemplo.

 

 

Sabemos que o acesso à internet não é universalizado no Brasil, pois incontáveis famílias estão privadas da convivência cotidiana com o virtual. Apesar de… seguimos nas aprendências de lançar ao mundo antologias virtuais e comemoramos a cada transgressão sabida, a cada experiência coletiva de leitura vivenciada mesmo nas condições distantes do ideal. O desejo de dizer, nesses momentos, se alia aos desejos de ler… e é assim que se rompem as distâncias entre quem escreve e quem acessa a literatura nascida das nossas entranhas. Queremos alcançar as escritoras, fotógrafes e leitorxs que re-existem a partir dos lugares que nem conseguimos imaginar…

O nosso método dissidente é descobrir esses seres nas relações cotidianas, conhecer pelas bases, nas dinâmicas até mesmo invisíveis do ato de escrever/criar. Por isso, na nossa guerrilha não há edital, não há chamada pública para envio de textos. Na nossa dinâmica há o mundo e a ele nos lançamos para compor o mapeamento transgressor de Profundanças. Agimos em silêncio, temos o segredo como princípio de organização, e seguimos nessa gira até alcançarmos o momento de tornar público que, sim, está rebentando mais uma antologia construída da maneira mais desobediente que se possa pensar. Assim tem sido nestes cinco anos…

Profundanças é uma grande encruza! E aqui estamos, embebides de poeira e águas para saudar os 13 anos da Revista Diversos Afins. Laroyê!

 

* Para baixar gratuitamente as três edições de Profundanças, basta clicar nos links abaixo:

 

Profundanças 1

Profundanças 2

Profundanças 3

 

Daniela Galdino é Poeta, Performer, Produtora Cultural. Idealizadora do projeto Profundanças. Doutora em Estudos Étnicos e Africanos (UFBA). Docente da UNEB. Contato: galdinodanielapoeta@gmail.com

 

 

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