Aperitivo da Palavra II

PAIXÃO SEM ETERNIDADE

Por Sandro Ornellas

 

 

 

O Deus do Trovão e No chão, o anjo são dois livros de Ivan Castilho, escritor capixaba nascido em Parintins-AM, lançados em 2022 pelas coeditoras Cousa e Villa Olívia. No caso do primeiro livro, uma segunda edição, sendo a primeira do longínquo ano de 1988 e que parece ter assumido ares de livro cult no Espírito Santo, pois o autor não voltou a publicar nada, até No chão, o anjo. Aliás, o nome do estado de adoção e publicação de Ivan parece estar subjacente a ambos os livros naquilo que eles têm de inocência e imoralidade, seja para as novas, seja para as velhas sensibilidades. Isso porque Ivan Castilho parece escrever em muitos momentos como um coroinha que sonha com devassidões e luxúrias, para depois contá-las no confessionário ao leitor. Ou melhor, escreve como um adulto que conta suas memórias de pornógrafo voyeur das mazelas morais e sociais da humanidade brasileira. Ou ainda, como um moralista que sabe muito de perto a alma perturbada que ele próprio e o mundo em que vive possuem, e fala dela para expiar todos os seus pecados. Por fim, como fino observador narra as contradições humanas que muitos querem obrigar a ser coerentes em julgamentos sumários.

Coerente é, na verdade, o próprio Ivan, pois tudo isso vale tanto para o livro de 1988 quanto para o de 2022, apenas um pouco mais amplo na rede temática, embora estejam lá os mesmos tipos e a mesma linguagem. O mundo de Ivan Castilho é o dos que frequentam o subsolo moral da sociedade, à caça de sexo safado, perdidos nas ruas e “bares atômicos” ou entediados em casa, com suas famílias, seus casamentos ou subempregos. Em nenhum desses casos, a felicidade é de fato realizada, apenas sonhada e trocada por um tesão onipresente e grotesco, ou abandonada na frustração pelo alto grau de indignidade em que vivemos. São homens e mulheres em casamentos falidos, malandros mutreteiros, gays solitários e infelizes, estudantes vagabundos, desesperados crônicos. Todos sempre cansados da vida e, ao mesmo tempo, com um tesão irrefreável e pronto para descarregar-se junto à primeira pessoa que o capture, fazendo desses personagens seres apaixonadamente humanos no tratamento que lhes dá Ivan.

Essa contradição, entre o cansaço e o tesão, torna-se evidente porque o autor não deseja despertar pena para seus personagens. Muitos deles, cheios da radioatividade lírica dos homens alcoólatras, das esposas impuras, dos velhos priápicos, dos pedófilos condenáveis, dos adolescentes espinhudos, das mulheres lascivas, dos artistas da vida, dos bêbados tombados, das ex-prostitutas – todos assediados e assediadores profissionais. Profundamente solitários e silenciosos em sua dor.

Enquanto lemos seus minicontos, somos geralmente tomados por diferentes afetos em relação aos personagens. Se começamos algum texto sentindo identificação e tesão, podemos passar rapidamente à repulsa e reprovação – dos personagens e, discretamente, também de nós. Ivan dá voz a homens e mulheres que carregam vidas de desesperança e culpa, de inocência e crueldade, de humor e violência. E que não desistem de vivê-las, apesar de algumas vezes assomar nos enredos algum desejo suicida. É o que Ivan parece traduzir ao evocar repetidamente a figura do anjo, caído e abandonado pelos deuses para vagar sem destino na superfície do mundo: “O anjo, então, caiu de joelhos, ajeitou cabelão loiro, falou mal dos últimos deuses pelo abandono, cuspiu sete espinhas de peixe miúdo e deu um longo suspiro”, ou “Caem alguns anjos – aqueles que desistiram da eternidade”.

Nos dois livros, a vida é o que transcorre fora das telas, rodrigueanamente como ela é, desidealizada, sexualizada, dolorosa, fora-da-lei e triste, muito triste: “Tristeza da porra, tristeza que não tem fim não tem não tem”. O olhar de Ivan para o mundo é de um ceticismo apaixonado, de quem investiga com detalhes o desespero de que é feito o ser humano nesta quadra da história. Isso faz da paixão de Ivan pelos tipos populares uma paixão sem eternidade e sem amor, senão o fugaz e grosseiro. O autor parece cético também em relação à própria literatura – “grandes merdas, esta folha branca, esta caneta preta” –, com apenas dois breves e muito espaçados, embora intensos, livros publicados.

Se seus textos podem ser lidos como minicontos naquilo que possuem de enredos elípticos, muito do efeito criado é próprio da poesia lírica: “Dia a dia simples: minha estrada de tijolos amarelos é aceitação da morte lenta, aquela que sempre chega no fim da tarde: chega macia e rasteira, quase cinza – puã de caranguejo – e aperta aperta aperta aperta”. Na maioria das vezes, um único parágrafo de poucas linhas desenhando vidas menores. É como se Ivan não acreditasse mais nas potencialidades do romance, ou mesmo do conto de maior extensão, de uma narrativa mais estruturada em torno de uma vida. Tudo que sobra são restos de histórias e de vidas. Que Ivan trata de colecionar e experimentar como fragmentos de vidas falhadas. Pois é disso que se trata nos relatos de Ivan: o que resta de possível nessas vidas, que são vividas com tanta força e fragilidade. Para contá-las, no entanto, só sobraram restos de biografias, de romances e de linguagem. Em O Deus do Trovão, percebe-se uma maior experimentação sintática, enquanto No chão, o anjo há um pouco mais de coesão narrativa e reflexiva. Embora nunca nada que se coloque com autonomia de pé. Nada que não solicite do leitor imaginar aquilo apenas recolhido em palavras:

“Seis e meia. Hora sagrada da grande caçada. Ônibus escolhido a dedo: o que passa pela praia do morro. Linha preferida das pobres moças balconistas da rua do trabalho. O herói na melhor roupa: bermudão de marca óculos chingling ráibam chinelão ráider. Barrigão espremido, peito de pombo estufado, cabelão repartido. Olha aquela que pegaria todinha aquela aquela faria amor selvagem nas pedras do siribeira clube. De noite noite toda noite toda toda noite.”

São cenas o que os textos de Ivan constroem, o que os faz imagéticos e com precisão descritiva, quase cinematográfica: “Camisa de seda branca, marcada ao meio por um filete de sangue; pulso esquerdo com fita azul, traçada sete vezes, pelos sete santos; no peito – sem pelos – a estaca brilha, grávida de tantas mortes”. É o texto que abre O Deus do Trovão, “O franco-atirador”, exemplar por muitos motivos: 1) a habilidade em descrever histórias com a precisão de um poeta em fazer imagens, 2) a síntese narrativa conduzida discursivamente a partir do título, 3) a caracterização psicológica do personagem através de elementos concretos e 4) a repetição de marcas estilísticas que, presentes nesse texto, continuam 34 anos, no outro livro. Por exemplo, no uso enigmático do número sete, que aparece acima na contagem dos santos, mas que vemos em inúmeros outros textos de ambos os livros como sete selos, sétimo banco, sete chagas, sétimo dia, sétimo prédio, sétima vértebra, dentre outros. Muito se poderia dizer dos significados místicos do número sete, mas Ivan vai do sagrado ao profano no seu uso. O mesmo vale para a figura do anjo, do tubarão radioativo e da castanheira: “para mim, toda árvore perto do mar é castanheira ou coqueiro”.

É, portanto, nas repetições temáticas, estilísticas e vocabulares de Ivan que encontramos o escritor com suas obsessões mais íntimas. Os textos são escritos com o sarcasmo que parece hoje um tanto démodé, mas que afirma uma parcela da humanidade para quem bem e mal não se diferenciam. Ao contrário, encontram-se unidos, principalmente no corpo apaixonado. Eu poderia listar aqui escritores que formam par com Ivan, mas evito apagar sua singularidade literária, submetendo-o a nomes consagrados. Por isso, concluo apenas registrando que é a paixão sem desejo de eternidade o que move a literatura de Ivan Castilho.

Vale!

 

Sandro Ornellas é poeta, escritor e professor de literatura da Universidade Federal da Bahia. Autor de Herberto Helder e a questão dos fins (Villa Olívia, 2022), Dói-me este mundo de violentas esperanças (Patuá, 2021), Em obras (Cousa, 2019), dentre outros.

 

 

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