Aperitivo da Palavra II

UM CARA CHAMADO JOÃO

 Por Gustavo Rios

 

 

Geralmente, é assim: o escritor, num ato solitário e meio transcendente, trabalha para, num outro extremo, ser lido por alguém que muitas vezes nunca o encontrará, mas que precisa ser um cúmplice, apesar da distância. Dessa forma, suponho ser assim também com o cronista que, entre outras coisas, mistura fatos com percepções e sentimentos para seguir em frente com seu trabalho.

Resolvida a introdução desta resenha, venho dizer que Quando a luz do sol desaparecer nada vai se alterar no universo, do jornalista e escritor João Mendonça, pode, sim, ser considerado um bom livro de crônicas conforme a sua catalogação. Mas não apenas isso.

Nas 122 páginas da obra, publicada em 2018 pela Via Litterarum Editora, temos o protagonista que se mostra solitário e que usa do expediente comum aos cronistas (o trivial como inspiração) para escrever. Como o autor afirmou em seu site, Quando a luz do sol desaparecer nada vai se alterar no universo foi todo produzido “sem a intenção de transformá-lo em livro. Todo ele foi escrito entre 2015 e 2017. Nesse período, eu adquiri o hábito de escrever antes de dormir, deitado na cama”, atitude que cabe numa boa nesse gênero textual de possível origem francesa.

No livro, porém, é evidente a busca pelo melhor texto, o que refuta um pouco a tese defendida por ele sobre não ter a intenção de publicá-lo. Mesmo que essa busca seja algo inconsciente, naquele esquema do fluxo, enxergamos claramente uma vontade, por assim dizer. Além de percebermos um encadeamento de escolhas e gostos, principalmente na relação de Mendonça com a cidade que o cerca e, de forma mais particular, com o seu bairro, o tradicionalíssimo Corredor da Vitória.

Usando como ponto de partida uns bocados de seu cotidiano – frequentar a banca de jornais; tentar conversar com um italiano antipático, enquanto a baiana do acarajé trabalha; a visita de um sobrinho -, conforme uma das “regras” da crônica, desse mesmo ponto de partida surge uma escrita que se mostra muitas vezes etérea. Os textos do Mendonça tendem ao poético, meio no sentido clássico da coisa (plenitude, essas coisas), talvez ligados a um dos conceitos gregos de poiésis que fala sobre a disposição em criarmos algo belo a partir do sentimento e da imaginação (1).

Pois, conforme o próprio Mendonça, as “palavras quando são colocadas de maneira errada precisam ser corrigidas antes da primavera”, no que conclui: “O erro da palavra é o erro da vida”.

Caso prefira, o leitor pode ficar com a ideia do Quintana que fala sobre os poemas (uma das manifestações da tal poiésis) terem ritmo “para que possas profundamente respirar”.

No caso de Mendonça, respira-se bem. Muito bem, por sinal.

 

Poesia, ainda

 

Deixando um pouco de lado esse papo envolvendo gregos, troianos e “quintanas”, outro ponto forte do trabalho é justamente a liberdade. Principalmente em relação à linguagem propriamente dita.

No livro de 89 textos, dividido em partes (“Delírios de uma alma abstrata”, de tratamento mais subjetivo; “Afetos, ausências e fragmentos”, mais autobiográfico, e “A vontade que tenho de abraçar o mundo”, sentimental e franco), o autor baiano extrapola a “simplicidade” comum às crônicas – entendendo “simplicidade” como algo corriqueiro captado pelo olhar de um autor, que se converte em algo belo e comovente, mas que busca o entendimento sem cair em hermetismos. Daí que a escolha de João é acertada.

Ele não se priva de viajar um tanto aqui, outro acolá, sempre calcado na beleza do texto. Seus devaneios fogem da descrição direta, se estendem. E, ainda que o leitor se pergunte o que ele realmente quis dizer com determinada frase, a pergunta se perde na fundamental cumplicidade que esse mesmo leitor deverá ter com o autor para seguir em frente. Cumplicidade que deve se manter, já que não devemos esperar a todo instante fechamentos ou conclusões, daquele tipo de frase que encerra algo (uma ideia, um sentimento, um efeito). O compromisso de João Mendonça é com a escrita.  Com as possibilidades dela.

É preciso viajar com João, antes de tudo. Enxergar que seus caminhos são internos, abstratos, metafóricos, bonitos pacas e baseados em verdades e em sentimentos bem pessoais. Na relação marcante com o pai, ou mesmo com amigos, parentes, com a cidade e com as namoradas – estímulos do mundo exterior -, Mendonça nos dá a dica: sempre confie no que escrevo, não nos fatos causadores.

Fatos são “molduras novas para meus quadros”, como ele mesmo diz na página 35. Por sinal, a mesma página em que afirma: “já deixei a poesia se livrar de mim. Ela precisa voar” (tendo como base o conceito de poiésis exposto acima, e considerando que tal comparação feita por mim valha algum Real, sequer um Dracma).

Possivelmente, a ideia de trabalhar sem o intuito de converter sua escrita em livro tenha o feito derrapar em alguns momentos. Em miudezas de seu cotidiano, como a ligação de um amigo que se mudou para Londres, por exemplo, o leitor poderá se perguntar o porquê daquilo, pois nesses exemplos a poesia não brota e o ritmo falha. Frases como “O acarajé é a hóstia de quem mora em Salvador” (um pouco estereotipia), ”Uma flor sombria busca incansavelmente sua pigmentação mirando-se para o sol” (aliteração), podem não agradar tanto ao leitor. E quem as lê pode achar um tanto esquisito. 

Entretanto, assim como toda viagem tem lá seus trechos de paisagem modesta, cabe mais uma vez ao leitor confiar que logo adiante a coisa melhora. E muito. Além do mais, e curiosamente, não consigo imaginar Quando a luz do sol desaparecer nada vai se alterar no universo sem essas paisagens-passagens mais simples, digamos. Talvez por sacar que elas fazem parte da vontade do escritor e do caminho escolhido por ele. Um caminho firme.

Não demora e Mendonça retoma ao devaneio que comove. É quando ele, autor de O Sol Partido, dentre outros, nos surpreende com frases longas, sutis, belas, meio herméticas e ritmadas (olha o Quintana de novo!), tais como:

“Já fui ao Iraque e não te vi na balaustrada perfurada pelas crateras do tempo. Volto sempre ao mar que grita teu nome. Volto sozinho e esperançoso. Nunca mais entregarei a caixa de bombom sem o endereço correto da última casa em que moraste no fim do grande vazio.”

 

Aforismos legais para mesas de bar (ou para umas camisetas hype)

 

Em minha opinião, quando um escritor nos dá alguma frase boa e curta, daquelas que nos orgulhamos em repetir em mesas de bar, geralmente ele está no caminho certo.

Evidentemente, tais frases-de-efeito devem ser o resultado de depuração, de um processo coerente, de literatura boa e da reflexão. No caso de João Mendonça, identifiquei algumas dessas pérolas. E em todos os casos as tais frases me trouxeram a certeza de que o livro dele é bom.

Em tempos de “lacrações” e “memes”, pode ser perigoso destacar algo do tipo num escritor. Todavia, considerando o contexto a que essas frases (bacanas e eficientes) estão submetidas e o efeito direto que elas podem causar, acho que vale a pena arriscar.

O fato é que eu não poderia fingir não ter visto coisas como as que seguem: “Assim é a vida: uma sensação de dúvida intermitente”; ”A saudade é o sonho na contramão”; “O mundo transformou-se numa máquina quebrada que se repete contra a vontade dos homens”; “O vento é a chave que transpõe portas”; não esquecendo a já citada, “O erro da palavra é o erro da vida”.

Sabendo que tais aforismos não surgiram de forma isolada e não surgiram para serem “aforismos”, e que eles são, antes de tudo, consequências de parágrafos bem trabalhados, concluo que a intenção de Mendonça não foi “lacrar”. A coisa meio que brotou como final, meio, mote ou princípio; como boa prosa, boa poesia.

Dessa forma, esse autor baiano, além de nos agraciar com um texto fluído e bacana, nos oferece pensamentos que valem uma dessas camisas legais que a moçada usa em saraus – ainda que eu ande meio desconfiado com essa turma; coisa de quem está beirando os cinquenta-de-idade.

Outro ponto a ser destacado é o olhar de Mendonça que também parece capaz de enxergar a conjuntura social e política (acho que as manifestações de 2016 mexeram com ele de alguma forma), muitas vezes reagindo a ela quase imediatamente (ele caminha pela cidade e vê; depois, em seu quarto, discorre sobre). Reação trabalhada com a mesma pegada poética e metafórica de sempre.

Ontem, o fogo queimou lojas e as praças foram fechadas por precaução. O menino de rua viu tudo do alto da árvore da vida. A mesma árvore que testemunhou inúmeros massacres contra o povo desarmado de ódio e ávido por lutar. O menino viu tudo e não contou a ninguém porque ele vivia sozinho e nesse mundo estranho ele só conhecia a ele mesmo.

O fogo se alastrou com força em direção às margens dos palácios dos brancos. Logo o acusaram e seu rosto parecido ao de tantos bandidos certificava que ele se tratava de um bandido mesmo. A polícia foi atrás dele porque lugar de menino é atrás das grades.”

A infância como tema é também algo presente. E marcante. No caso de Mendonça, boa parte dos trechos mais comoventes nasce daí:

“Deixei então a pá encostada na parede e comecei a cavar com as minhas próprias mãos. Logo percebi que tinha anoitecido rapidamente, desde cedo estávamos cavando. Foi quando comecei a encontrar os primeiros objetos.

O relógio preto que meu pai me deu de presente quando fiz dez anos, a foto de minha primeira namorada, a bola de basquete, o badogue com que eu brincava atirando pedras, o murro que eu levei na cara do meu melhor amigo, os carrinhos de ferro que eu colecionava, o grito da professora, meu sonho de ser astronauta, meus óculos quebrados, a imagem que tinha de Deus, o medo da morte, todos os fantasmas que vinham me atormentar à noite, as músicas de Moraes Moreira, o fim do mundo, o mendigo que morreu na porta do meu prédio, o sorriso de minha irmã, minhas primeiras observações sobre o sol, o escuro das escadas vazias, as mulheres velhas que me assustavam, as cores dos potes de tinta com que eu pintava, a barraquinha de camping…

Continuamos cavando, até que meu sobrinho olhou para tudo aquilo que estava exposto e disse: ‘Todas essas coisas não são mais suas. De quem são?’.”                

Apesar de longo, defendo que o trecho acima é digno de ser lembrado; vamos combinar?

 

Breves comparações

 

No quesito paralelos-e-comparações (estou tentando ser didático, tenham paciência), outros autores e livros me vieram à mente na leitura de Quando a luz do sol desaparecer nada vai se alterar no universo: Lupeu Lacerda e seus “prosoemas”, pela vontade de romper a couraça da linguagem a partir de observações “puxadas” do trivial; José Agrippino de Paula e seu PanAmérica, pela liberdade na criação de cenários, cenas, percepções e possibilidades; e, finalmente, Richard Brautigan, com seu livro Pescar truta na América, pela atemporalidade, pela carga metafórica e pelo tema “vida adulta”. O livro de João Mendonça também me remeteu a outro publicado no Brasil em 1995 pela José Olimpo, chamado Primeiro o amor, depois o desencanto (e o resto de nossas vidas), do canadense Douglas Coupland. Embora ambos sejam bem diferentes na forma e nas intenções (2).

O autor canadense nos mostra uma face bem melancólica da vida, todavia. João, apesar de tudo (incluo aí a homenagem a um tio, no que suponho algo marcante e talvez grave), nos traz alguma esperança. Com uma boa dose de leveza e outro tanto de espiritualidade não no sentido religioso, mas da transcendência, Mendonça se afasta da tristeza vã e segue.

Portanto, e esquecendo um pouco essa coisa minha de comparar-para-parecer-um-gênio, ainda que o Quando a luz do sol desaparecer nada vai se alterar no universo tenha sido catalogado como crônica, eu não o vejo dessa forma – não simplesmente. Nesse gênero textual e literário (por que não?), em que nomes como Sabino, Rubem Braga e, aqui em nossa vizinhança, Kátia Borges (também poeta e jornalista), são referências de pompa, creio que o João Mendonça se sairia bem. Entretanto, a sua habilidade em ampliar a linguagem acabou transformando seu livro num trabalho de maior alcance – ainda mais sabendo que as 89 “crônicas” foram selecionadas entre cerca de 300 textos prontos, num trabalho que contou com a ajuda preciosa do escritor e fotógrafo Tom Correia.

Dessa forma, afirmo que mesmo que o leitor se depare vez ou outra com abstrações, sugiro se deixar levar pela beleza e pela poesia contida neles, pois, assim como qualquer viagem, muitas vezes esbarramos em horizontes aparentemente confusos, mas não menos necessários.

Para mim, parceiros, a viagem com João valeu cada minuto. Assim como valeram também as passagens. Tanto a de ida quanto a de retorno.

 

(1) São muitos os conceitos e suas derivações. Daí que usei uma ideia bem simplória, tipo voo rasante. Tenho pouquíssima bagagem no quesito “Filosofia” (seria Platônico supor que eu manjo do assunto), mas acho que dá para o gasto. 

 

(2) Tais analogias seguem guardadas-as-devidas-proporções e não são limitadores para a leitura de nenhum dos escritores citados, incluindo nosso querido Mendonça. Antes, podem servir como tentativas minhas de compreender esses trabalhos. Além do mais, as semelhanças podem não estar evidentes para você, leitor, pois minha cachola não tem a mesma precisão sacal dos algoritmos (alguém digita a palavra “amor” e o Google indica motéis, flores em promoção, perfumes Jequiti e caixas de Lexotan).

 

Gustavo Rios é baiano e autor do livro Rapsódia Bruta (Mariposa Cartonera, 2016), dentre outros.

 

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