Aperitivo da Palavra

A criança como o estado da criação em Poética na incorporação – Maria Bethânia, José Inácio Vieira de Melo e o Ocidente na encruzilhada de Exu, de Igor Fagundes

Por Alexandra Vieira de Almeida

 

Igor Fagundes faz do sagrado, em Poética na incorporação (Editora Penalux, 2016), oitavo livro do autor e quarto de ensaio, um caminho para o novo e desconhecido, sem a roupagem velha e puída com a qual se acostumam aqueles que estão presos à tradição mais gasta do pensamento. Traz o olhar da criança, não em sua pura inocência, mas naquilo que ela tem de esperteza, de astúcia e curiosidade pelo fogo do conhecimento na abertura à indagação.

Uma revelação infantil, um erê, na fonte do riso, no rio, é o ponto de partida para a construção poético-filosófica deste livro magistral, que não se quer mais um monumento de saberes a serem seguidos, mas de questões e descobrimentos de novas veredas vivas. A raspagem é o desnudamento de toda nossa tradição cultural, ocidental e oriental, quebrando as dicotomias e trazendo a infância do mítico à lume, à presença, o originário em toda sua força.

O grande mestre poeta Alberto Caieiro já nos revelava este desvestir, este retirar, na violência, no sangue da palavra, o que se tem de mais tradicional em nossa cultura. Igor Fagundes, com todo seu dom pela e na palavra, nos encanta com um canto trazido pela Mãe Oxum. No encontro, nas incorporações entre Exu, Hermes e Cristo, o poeta-filósofo, por aqui estudado, faz da “encruzilhada” um grande trabalho intertextual de confluência entre vários lugares: o grego, o cristão e o africano. Faz da morada do mítico, do filosófico e do poético um trabalho grandioso de esquecimento e memória, sem tomar a água da repetição, porque a incorporar uma nova vida, um pensar nunca antes visto, mas inovado com palavras originárias.

O sagrado, livre dos pré-conceitos da tradição ocidental, perfaz os entrecruzamentos de territórios que poderiam parecer à primeira vista inconciliáveis, mas que pela artimanha arquitetônica da criação de Igor Fagundes, nos leva, com a cantora Maria Bethânia, da Musa à Pombagira, do mar ao sertão baiano. Faz do poeta José Inácio Vieira de Melo um Ulisses que incorpora Exu. O trabalho de incorporações é o diálogo possível que encontramos presente também nos pré-socráticos, sobretudo em Heráclito, que pela “harmonia dos contrários”, torna admirável esta encruzilhada entre tradições distintas, mas próximas pelo olhar agudo de Fagundes.

Nessa “estória”, como o autor mesmo chama, encontramos um trabalho de raspagem, de desnudamento da tradição, para que o novo da criação, da poesia possa nascer. Pois, só abandonando as velhas roupas, o peso, que a leveza do poético pode advir. É intenso o jogo de paralelismos, espelhamentos neste livro original de Igor Fagundes. O livro não segue um sumário tradicional: são versos que alinham as páginas e os capítulos são belíssimos batuques, não só a críticos, mestres e professores homenageados, mas a entidades como Maria Padilha e Exu Tranca-Rua, da tradição afro-brasileira. Em cada capítulo se constrói um mergulho ao universo do Erê, a criança sempre eterna, que caminha para o processo criativo do nosso imaginário, daquilo que incorpora novamente e, sempre presente, se atualiza.

Nas três metamorfoses do espírito, de que falou Nietzsche em Assim falou Zaratustra, seria preciso o ser humano atingir o estado final de criança, paradoxalmente, para que se fizesse a ponte para a liberdade completa. Da fase do camelo, passando-se para a do leão, atinge-se o estágio da criança, quando as cargas pesadas são deixadas de lado até que surjam novos valores. Não valores que venham a servir de modelos, mas valores que os questionam.

A “raspagem” é o retorno a este estágio de infância, onde se busca a liberdade dos paradigmas do mundo adulto e institucionalizado. O erê – a Lagriminha de Ouro da Oxum – surge como apelo ao filósofo-poeta, que, abarcando novos mares, chega ao sertão das criações. Igor Fagundes, a partir de uma vontade de potência, conquista um mundo que é todo seu e que leva o leitor não a respostas prontas, mas às indagações, conforme o universo da criança. A “raspagem” produz seu efeito: o leitor se desnuda de suas antigas vestes conceituais.

Alexandra Vieira de Almeida é escritora e Doutora em Literatura Comparada (UERJ).

 

 

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