Aperitivo da Palavra

No tempo da delicadeza

Por Lima Trindade

 

 

Publicado pela Patuá em 2018, Por assim dizer recusa neons e maneirismos. O livro vai na contramão de boa parte do exibido nas páginas das redes sociais e nos estandes das livrarias em que as capas das publicações precisam desesperadamente chamar a atenção de um público não mais tão interessado em atributos como discrição e  elegância. Basta ver a predominância de best-sellers nas vitrines, suas capas carregadas de cores berrantes, seus títulos ofensivos (tanto pela gratuidade do uso de palavras de baixo calão quanto pela “originalidade” de sua poesia). Perto deles, Por assim dizer soa prosaico demais, dito quase como um sussurro para não incomodar a sensibilidade de seus possíveis leitores. No entanto, observemos que a utilização da locução por assim dizer enquanto nome da obra também guarda uma valiosa declaração de intenções, uma não aceitação de um único modo de se ver e se falar sobre as coisas do mundo, uma necessidade de relativização (e reflexão) que julgo extremamente bem-vinda para nosso cenário cultural contemporâneo.

São 16 contos a compor a primeira parte e a reverberar numa segunda. São 16 contos que tratam da condição humana num cenário muito, muito, muito próximo ao que vivemos, presenteando-nos cada um deles com uma centelha de emoção que jamais esbarra em pieguismo, retórica maniqueísta nem pirotecnias linguísticas.

Os temas são variados e estão divididos em “Dos amores”, “Das dores”, “Das viagens”, “Das memórias” e “Das paragens”, desdobrando-se em muitos outros subtemas e situações de conflitos em que os protagonistas lidam com diferenças sociais, violência, desamor, sonhos, esperanças e perdas, as personagens agindo e reagindo como seres autônomos, vivos, senhores e senhoras do próprio destino, muitas vezes nos surpreendendo por suas escolhas e pontos de vista únicos.

Yara Camillo nos faz adentrar a mente de um criminoso quando ele aplica um golpe por telefone num velhinho, permite que acompanhemos os impasses de uma mãe excessivamente protetora em admitir a escolha amorosa do filho, que compartilhemos as alegrias etílicas de uma sem-teto que não sabia rezar, o choro de uma cafetina pela morte de uma das suas protegidas, o pavor que um notório malandro tem de noites de temporal e escuridão, a estranha e compulsiva relação entre uma fã e uma escritora novata e, até mesmo, lança um petardo contra a indústria farmacêutica em sua ânsia monetária.

Esses são alguns exemplos que demonstram vividamente seu interesse em entender de maneira mais profunda a sociedade em que vivemos, mas que seriam vazios se ela não potencializasse a linguagem a seu favor, se não fizesse da técnica uma aliada.

Yara Camillo é adepta da economia verbal. Ela sugere muito mais do que afirma, mostra muito mais do que conta, diz muito ao dizer pouco. Segue o caminho dos mestres, sobretudo Tchekov, Cervantes e o uruguaio Juan José Morosoli, na delicadeza com que constrói suas cenas e explora a tensão de experiências aparentemente banais, assenhorando-se de um tempo com um compasso menos apressado, muito menos leviano. É o que constatamos na abertura de “Duas vias”:

“Ele abria a porta do carro para que ela entrasse.

− A velhice dando passagem à juventude?

− Não: a sabedoria dando vez à pretensão.”

Já neste começo entrevemos o jogo de poder entre o casal, a provocação inteligente, a sedução, o humor, os embates que terão no futuro.

“Com fatos banais e incidentes corriqueiros é possível entrever toda a transformação de uma vida passada a limpo”, diz Arlete Cavalieri ao comentar a síntese poética da narrativa de Tchekov, acrescentando ser essa vida “fragmentária, sem relações imediatas de causa e efeito, sem respostas definitivas aos conflitos e predisposta ao inesperado e ao inexplicável”, juízo esse que se adequa perfeitamente a Por assim dizer, um livro que se presta a mais de uma leitura e não se rende à pressa dos relógios nem à brutalidade das cifras dos mercados. Sua arte está inserida num tempo outro: o tempo da delicadeza.

 

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Lima Trindade é escritor e mestre em Teoria da Literatura pela Universidade Federal da Bahia.

 

 

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