Aperitivo da Palavra I

UMA QUASE RESENHA

 Por André Rosa

 

 

A beleza da existência humana se apresenta nas páginas do livro intitulado Barroquinha (Ed. Via Litterarum), do escritor Carlos Vilarinho, testemunha contemporânea de uma Salvador visceral. Suas histórias revelam a complexidade humana em uma sociedade cada vez mais apegada a projetos individualistas pretensamente vitoriosos. Na emergência de um cotidiano excludente, em meio a dias cada vez mais acelerados, revelam-se histórias de pessoas comuns que se operam em rede, entrelaçadas pela imaginação de um literato.

Sou lento, portanto insurjo-me. Ao ler Barroquinha, vou-me sem pressa: quero da vendedora, à porta da loja, notícias das novidades chinesas. Também sorver uma xícara demorada de média pingada. Saber do cobrador os horários mais tardios da linha de São Cristóvão. Talvez contar calmamente, ao apontador do bicho, um sonho esquisito com livros e traças em um sebo recentemente fechado. Continuo, assim, lentamente pelas calçadas do livro. Com passos e olhos atentos, passeio entre as páginas e a imaginação.

Como relata Elieser César, na sua apresentação, esse livro espelha uma outra cidade, fora dos clichês turísticos, tal como tantas outras locações de vidas soteropolitanas. Uma Barroquinha composta de trabalhadores, donas de casa, excluídos. Um povo de tantas religiosidades, com seus trajes coloridos e aparatos diversos. Lojas repletas de gente e bugigangas essenciais nos fazem arrefecer o passo nos parágrafos. Gritos de compra e venda, corpos astutos embaixo dos toldos de lona gramatical, nos dirigem imantados ao norte da poesia urbana dos seus meios-fios.

Vilarinho tem como cenário uma área geográfica e cultural bem específica, uma parte do todo-caleidoscópio Cidade do Salvador: a Barroquinha, artéria-abrigo incessante de uma população flutuante, que a habita entre o nascer e o pôr do sol. Findo o dia, uma outra Barroquinha se apresenta: face noturna de um mesmo universo cênico, cujo artefato de cimento e asfalto permuta os sons de músicas, motores e vozes pelo silêncio estranho de outras personagens.

Retrato ficcional e representação simbólica de uma Salvador em meio a tantas outras, o livro de Carlos Vilarinho inebria. Cada página, um cálice. Cada personagem, uma dispersão em mim mesmo. Inebriei-me de vida, pujante vida: soteropolitana e contemporânea. Como agora retornar à Barroquinha, sem olhar de soslaio para os transeuntes, admirá-los em sua simplicidade e festividade urbana. Também suas dores, percalços e sonhos. Especular, inconscientemente, em qual deles se encaixaria tal personagem. Onde morariam, o que desejariam? Seus amores, seus gostos. Torceriam, almas tricolores, pelo Baêa ou, rubro-negros corações, pelo Vitorinha da Barra? Ainda existiriam reminiscências ipiranguenses entre legítimos barroquenses, ou seriam barroquinos? Aceitariam um trago no botequim mais próximo, em prosa ligeira? Nela tudo caberia: seus medos, se de noite choveria, o preço da carne, a festa de Santa Bárbara. Como ir agora à Barroquinha e não pensar nos semblantes literários ao sabor do sol refletido nas suas calçadas atemporais?

Como cidadão afeito ao passado, ao ler Vilarinho penso em abandonar nostalgias. Abrandar o vínculo afetivo a uma Salvador da pesada arquitetura colonial, para apreciar a deliciosa beleza de um DVD pirata, a capa plástica de um guarda-chuva made in Taiwan, os tabuleiros dos ambulantes que mercadejam com seu suor o dia a dia. O casal de namorados com seus trajes escolares. Os garis imprescindíveis, suas vassouras a varrer para os meus olhos os cristais das gentes.

Sou daqueles que penso em Salvador enquanto um polígono imaginário que, partindo da Praça da Sé, desce ao cais e retorna ao Pelourinho via Baixa dos Sapateiros. Estendo-me, por vezes, ao Engenho Velho (de Brotas e da Federação) e ao Retiro de São Gonçalo. Fixo-me agora, no entanto, na velha Barroquinha, a do primeiro terreiro nagô. Desde os fundos da igreja / espaço cultural ao porvir. Nesse espalhar de letras no teclado em prosa do autor, surgem suas páginas de cimento e cal, abarcam seus contos repletos de humanidades precisas.

Enfim, fica por aqui essa quase resenha. Valeu, Vilarinho!

 

André Rosa é nascido na antiga capitania de São Jorge dos Ilhéus. Professor titular da Universidade Estadual de Santa Cruz, atualmente exerce a presidência da Academia de Letras de Ilhéus. Coordena o Prêmio Sosígenes Costa de Poesia e participa da Comissão Organizadora da Festa Literária de Ilhéus. Autor de livros de caráter acadêmico e literário, entre os quais: “Família, Poder e Mito”, “Identidade e Memória”, “In Memoriam”, “Quintais do Tempo” e “Inventário do Caos”. No terreno religioso, tem o cargo de Tata Mabaia no Terreiro Matamba Tombenci Neto, de nação Angola, o mais antigo templo de matriz africana em atividade no sul-baiano.

 

 

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