Aperitivo da Palavra I

Lupeu corre, Lupeu em crise,

Lupeu cresce, Lupeu envelhece

Por Sidney Rocha

 

 

Aprendi recentemente um conceito novo, na minha vadiagem de leituras: “paraexcitação”. Embora não esteja nos dois dicionários de psicanálise de casa, é termo criado por Freud. Eu buscava algo novo para começar a escrever sobre Todo suicídio é um homicídio, o recente livro de Lupeu Lacerda, ele o escreve assim, a meu ver, sob paraexcitações. São defesas, são escudos. São escusas. Para-raios. Para-brisas. Paralamas. Paralemas. São paralupeus.

E assim entendo melhor esse livro: na verdade uma carta, menos ao modo ridículo das cartas suicidas e de amor, e mais ao modo dos mapas, das cartografias, das batalhas navais, como está ali na página 96.

 

1.

Cada investida sua no mundo editorial é um tipo de suicídio, porque depois de publicar um livro ele se cala, fica puto por qualquer coisa, os vizinhos o chateiam, os amigos antigos também, os mais novos não lhe interessam para nada, pois ele está de novo em xeque. Não comparece para corridas, não vai aos hipódromos dos autógrafos, foge das baias e das bahias dos mise en scenes. Sua melhor atuação é para dentro de seus livros, ele sabe disso, e não está interessado em nenhuma teoria mais, nem poesia, nem literatura, nem música. Ele está no melhor e no auge de sua máxima forma: está de novo só.

Lupeu Lacerda escreve sobre Lupeu Lacerda a partir da leitura que Lupeu Lacerda faz de si e contra si. Muitos anos na literatura e na música fizeram dele seu leitorouvinte mais radical.

Ele não busca pontuar em concursos e fortunas críticas, senão escrever como o cara que conheci aos quinze anos. Temos 55, eu e ele. De lá para cá, Lupeu é um fenômeno. Ele emula todos os bons e maus modos da contracultura, anuncia certo descrédito pela leitura sistemática dos críticos e evoca para si o papel de leitor de si mesmo. Sua persona pública vive sob a aura da performance de sobrevivência, bem narrados nos seus poemas-coisas ou prosoemas e tocam os leitores mais jovens, os velhos e os mais velhos ainda como eu.

E por que nos tocam? Porque morremos, os mais velhos. Porque querem morrer, os mais novos. Porém, no caminho, resta isso, a morte destinada a quem não quer morrer: a velhice. Precisamos falar sobre ela, Kevin. Em breve. Na página 77?

 

2.

 

Tolstoi caminha por sua propriedade rural:
messianismo sem fé, mas esperança

 

Cada investida sua no mundo editorial é um tipo de homicídio. Esse seu Todo suicídio… já tem o título todo na contramão comercial. Paira algo de messiânico nele, de domesticável, e pode não agradar a alguns, mas Lupeu não parece estar muito aí para isso. E inaugura sua ironia, seu ‘tolstoismo’ particular. Como Lupeu sabe, Tolstoi, já velho, aos 50 anos, vivia atordoado por pensamentos suicidas ou pela na morte, mas sempre esperava algo a mais da vida. Um místico para além da mística, eu diria. Um escritor atormentado pela filosofia na sua potência máxima. Também serve. Dadas as proporções certas, Lacerda sempre foi alguém assim. Mas a ele se acrescente a ironia trazida pelo narrador de Todo suicídio…, livro de auto-leitura numa transleitura.

A palavra “leitura” vem de eleição, de escolha. E o autor faz muitas, boas e más, nesse novo trabalho. São sensações, parasensações; estesias, parestesias; paraexcitações, como eu disse. Seus leitores gostam. Escreve para os confins e os confinados do século da Peste.

 

3.

Desde 2019 foi retirado outro mal do jarro de Pandora. A Covid. Neste maio de 2021, já somos mais de 400 mil mortos, cuja paisagem mais fiel está na página 59, à espera do Deus anunciado dez páginas antes.

Mas o deus da pandemia, de Lupeu, é Pã, chamado de Lupércio, pelos latinos.

A divindade nesse seu novo livro é esse Pã e não aquele Tânatos, de Entre o alho e o sal, (2007), por exemplo. Mesmo quando esse deus festeiro namore Senectus (de onde vem a palavra geração, essa velhice). O narrador de Todo suicídio… é um Titônio moderno, transformado em imortal, mas sem o privilégio da eterna juventude.

Deixe-me provocar lembrança mais recente a quem lê esta resenha: se Alex, o personagem central do romance A laranja mecânica (1962), de Anthony Burgess, envelhecesse, seria ele o narrador de Todo suicídio… A aproximação não é deslocada. Lacerda aponta de forma consciente para o leitor ou leitora algo distópicos, descrentes, amantes de Cioran mesmo sem conhecê-lo para além das epígrafes ou aforismos, para quem os clichês da linguagem precisam ser reconhecidos de imediato. E seus leitores são fisgados justo por essa familiaridade. Somente depois seu poema ou narrativa vão se inovando. Lupeu é um escritor que poderíamos chamar de cult. De seguidores. E acerta bem na lata: o público interessado na rebeldia em relação às convenções sociais e literárias. Sua única novidade é garantir vitória sobre o desafio violento de se manter o mesmo. E isso não é fácil no mundo como o nosso, sobretudo o submundo literário. Esse compromisso mantém o autor vivo, me parece. Certa irregularidade, comum a todo autor, faz parte da verossimilhança, dessa atmosfera criada por Lacerda, onde se inclui persona & obra que, com exceção de um livro, Caos Tecnicolor (Virtual books, poemas, 2012), mantém escalada bastante visível.

 

4.

Todo suicídio… está entre a realidade da lobotomia e as sensações e emoções sem filtros, isso inclui a inteligência; entre o mundo mecânico e o digital, um reino de linguagem pessimista/realista que define bem o personagem-narrador do livro. Suspenso na dupla impossibilidade de dois mundos, o personagem percorre o livro, viaja pelo mundo idealizado buscando a Beleza das coisas e como já não acreditasse tanto nela. Isso me lembrou Rimbaud. Não era o poeta Rimbaud quem disse ter sentado a Beleza no colo para injuriá-la? O leitor ou a leitora desta resenha devem dar uma olhada nos livros para ver se não estou confundindo Rimbaud com Baudelaire, mas acho ter sido Rimbaud: “Sentei o Beleza no colo e a injuriei”. Algo assim. Esse sentimento me arrastou para dentro do livro de Lupeu, ou seja: “Tá, tudo bem, há a Beleza nas coisas, o.k. mas e aí, o quanto mesmo isso muda lá em casa?”

É esse o narrador que marca encontro conosco no livro, alguém encurralado nessa dupla tentativa, a ambi-existência. Alguém disposto a dar ao mundano a beleza sem dar tanta ênfase aos seus efeitos e eloquências. Por isso o livro se aproxima mais do poema e menos da prosa, na busca do registro, da palavra certa e vã. Ali está um dos pontos bons do livro. Esse paralelismo.

Mas a senhora aqui não é a Morte nem a Beleza. É mesmo a Velhice.

Por isso não soa mal a lembrança do personagem Coelho, o Harry da trilogia de John Updike, no começo desta resenha.

Logo, não é tão à toa aparecer o fóssil na capa. Ele está dentro da pedra. Contudo, é preciso quebrá-la lhe adivinhando seu sentido ou longitude, se se quer mesmo encontrar a esqueletaria, o peixe antes jovem e buliçoso; agora, só fantasmagoria, representação somente.

Eternamente morto e velho.

Não é em vão o intertítulo: “prosoemas para ninar dinossauros.”

Assim é assim o narrador que Lupeu retira da pedra, desse livro novovelho: alguém condenado à velhice, mas sem lamentar a vida nem pedir para morrer nem para lhe matarem, mas que, de alguma forma, toquem a flauta do fauno.

 

 

5.

Há 14 anos, escrevi sobre o recém-lançado Entre o alho e o sal, publicado pelo selo Outsider, da Kabalah Editora:

“Tiro do bolso a última bala. Ela tem um brilho estranho, daqui, contra o Sol do Recife. A pólvora rescende a um último verso, talvez. Fi-la dormir no tambor da arma. É uma criança linda. Use-a você, meu amigo. Talvez você queira acertar o autor com ela, ou usá-la em benefício próprio, sabe-se lá.”

Essa escolha serve ainda para a leitura de Todo suicídio… que, diferentemente, não se curva sobre o “eu”, como é o caso de Entre o alho e o sal. Já Todo suicídio… trata mais do Ele, o Louco, o Homem, o Palhaço, o Cujo, o Cospe-Bula, o Caga-Regras, o Indivíduo, o Dito, o Idiota. Este livro é sobre o Você.

 

6.

 

Lucha libre, religião mexicana.

 

No nosso último encontro, eu e Lupeu nos desencontramos e quebramos tudo em torno de nós, nada ficou de pé nem vivo, e terminamos humilhados pelo cansaço e a asma e a velhice, nos esmurrando com golpes que eram mais velhas carícias, porque inúteis e inofensivas. Só nos unimos por um instante: para esmurrar quem tentava apartar nossas mágoas. E voltamos para nossas tesouras-voadoras, nossa religião, nossa “lucha libre”. Olhos roxos, descobrimos de nossa amizade aceitar sermos ao mesmo tempo velhacos e velhos, dois grandiosíssimos filhos da puta, desses wrestlers mascarados que não precisamos mais das cordas, por sabermos de nossa velhice ser agora o ringue mais verdadeiro, a parte mais revolucionária de nossas vidas. E seguimos intrigados um do outro, intrigados um com o outro, mas não a ponto de não nos reconhecermos: dois escritores-pedras da mesma montanha. Pedras inencontráveis.

É sobre aquela revolução, romântica, a anunciação do seu novo e mais velho livro, Todo suicídio é um homicídio, que vocês precisam ler. Ler, não: praticar.

Uns contra os outros.

 

Sidney Rocha é escritor.

 

Clique para imprimir.

3 Comentários

  1. Sidney Rocha é, sem sombra de qualquer dúvida, um patife que quero muito bem! me senti absolutamente honrado com a resenha e a leitura cuidadosa, hostil, inteligente e amável (do jeito dele).
    não atoa somos amigos/intrigados já por quase 40 anos.
    gratidão Diversos Afins.
    gratidão Sidney Rocha.

  2. Maravilhoso. É uma leitura para respirar
    Voltar a ver o menino na nave- máquina de costura e chorar da alegria e loucura dos tempos, da gratidão de aqui estarmos e continuarmos olhando nos esoelhos e vendo novas versões. Virando os olhos para dentro,em especial nos tempos de Covid, e provar da solidão e da solitude. De levantar e seguir em frente. Porquê afinal temos a nós mesmos, ou por vezes não temos. Mas o mergulho, esse é necessário, diz da nossa essência, da nossa impermanência, diz da nossa fé, ainda que zombando as vezes. De fato ler esse livro mexeu com minhas entranhas e ……Corajoso Lupeu! Ave!@@!

  3. Fiquei curiosa. Vou buscar.

Comente

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *