Felipe Fleury
Esta manhã que não finda
quando o dia
tem sede
sorve o eclipse rubro
da manhã
em cálice de pedra
enquanto espera com paciência
balas escavarem epígrafes escarlates
nos seus olhos inflamados
é tiro e queda
antes do fim da tarde
choverá vinagre
sobre as terrinas
dispostas nos cemitérios
– o que nem sempre sacia a sua sede –
até as trombetas soarem
mais alto que as sirenas
anunciando o funeral
da mãe do natimorto
quando o dia tem sede
até o silêncio se tinge
de vermelho
não
não é o fim do mundo
ainda
É só esta manhã
que não finda.
***
Sem sombra
Penso nas pequenas deslembranças
para esconder as grandes demais.
Faço este verso mais longo só para ocupar minhas mãos:
que não escavem sob as raízes
memórias que não procuro.
A noite, embora escura,
não é seara do esquecimento,
é onde a memória trabalha em silêncio,
é quando a poeira da consciência
se amontoa sobre os meus ombros.
Ando então até ser de manhã,
– para cegar-me à luz do sol e enxergar
apenas o que os meus dedos tateiam –
pisando sem deixar rastros
chegando sem fazer sombra,
sem me saber,
nem sabendo o que se perdeu
antes do último passo.
***
Amniótico
Imagina a palavra,
se não grita.
Imagina se entala
no cimo da garganta,
entre o céu da boca e a língua,
no silêncio claustrofóbico
e úmido da saliva.
Imagina um paralelepípedo.
Imaginou? É isso.
Imagina agora por que chora
o recém-nascido.
***
Ubíquo
O mundo já aconteceu
e o indestrutível é só o que passou.
Torres erguidas são escombros à meia-noite
e o amanhã, mero adiamento do caos.
Nada o impede ou controla.
Vem grasnando pela frincha das horas:
O caos me sabe entre os dentes
e me devora.
***
Apneia
Entre um poema e outro,
o que me aflige é a lucidez da cena muda:
o mato crescendo nos seus espaços,
onde tudo é silêncio e desperdício.
Prendo o fôlego dentro do poema
sem desistir de respirar, no entanto
– até o fim da apneia,
meus pulmões serão líquidos -.
Expelirei somente
o que não for algum delírio.
***
Colapso
O que vive
é o que me inspira:
a mosca, voo interrompido
no aço da teia invisível;
o cotidiano da formiga
sob o passo apressado;
o peixe, espasmos de prata
no cabo de guerra invencível;
o inocente sobre o chão de corpos,
alvo fixo na parede de chumbo.
O que me inspira vai
até ao vão da vida
e desaparece no lapso
do instante inexorável.
Viver é sobreviver
até ao colapso.
Felipe Fleury é formado em Direito, funcionário público, reside na cidade de Petrópolis/RJ. Tem poemas publicados no e-book do concurso de poesias da Universidade Federal de São João Del Rey (UFSJ-2018), nas Revistas Literárias Contempo, Contexto, Mallarmargens e Ruído Manifesto, além de ter sido selecionado para integrar a antologia, “quantos players hoje – poemas do árcade ao console”, organizada pelas Editoras Patuá e Fractal. Coorganizador dos saraus poéticos: Saracura e Sarauema. Instagram: @felipefleuryffc.