Janela Poética V

Felipe Fleury

 

Foto: Cristiano Xavier

 

Esta manhã que não finda

 

quando o dia
tem sede

sorve o eclipse rubro
da manhã
em cálice de pedra

enquanto espera com paciência
balas escavarem epígrafes escarlates
nos seus olhos inflamados

é tiro e queda
antes do fim da tarde
choverá vinagre

sobre as terrinas
dispostas nos cemitérios
– o que nem sempre sacia a sua sede –

até as trombetas soarem
mais alto que as sirenas

anunciando o funeral
da mãe do natimorto

quando o dia tem sede
até o silêncio se tinge
de vermelho

não
não é o fim do mundo
ainda

É só esta manhã
que não finda.

 

 

 

***

 

 

 

Sem sombra

 

Penso nas pequenas deslembranças
para esconder as grandes demais.

Faço este verso mais longo só para ocupar minhas mãos:
que não escavem sob as raízes
memórias que não procuro.

A noite, embora escura,
não é seara do esquecimento,

é onde a memória trabalha em silêncio,
é quando a poeira da consciência
se amontoa sobre os meus ombros.

Ando então até ser de manhã,
– para cegar-me à luz do sol e enxergar
apenas o que os meus dedos tateiam –

pisando sem deixar rastros
chegando sem fazer sombra,

sem me saber,
nem sabendo o que se perdeu
antes do último passo.

 

 

 

***

 

 

 

Amniótico

 

Imagina a palavra,
se não grita.

Imagina se entala
no cimo da garganta,
entre o céu da boca e a língua,
no silêncio claustrofóbico
e úmido da saliva.

Imagina um paralelepípedo.
Imaginou? É isso.

Imagina agora por que chora
o recém-nascido.

 

 

 

***

 

 

 

Ubíquo

 

O mundo já aconteceu
e o indestrutível é só o que passou.

Torres erguidas são escombros à meia-noite
e o amanhã, mero adiamento do caos.

Nada o impede ou controla.
Vem grasnando pela frincha das horas:

O caos me sabe entre os dentes
e me devora.

 

 

 

***

 

 

 

Apneia

 

Entre um poema e outro,
o que me aflige é a lucidez da cena muda:
o mato crescendo nos seus espaços,
onde tudo é silêncio e desperdício.

Prendo o fôlego dentro do poema
sem desistir de respirar, no entanto
– até o fim da apneia,
meus pulmões serão líquidos -.

Expelirei somente
o que não for algum delírio.

 

 

 

***

 

 

 

Colapso

 

O que vive
é o que me inspira:

a mosca, voo interrompido
no aço da teia invisível;

o cotidiano da formiga
sob o passo apressado;

o peixe, espasmos de prata
no cabo de guerra invencível;

o inocente sobre o chão de corpos,
alvo fixo na parede de chumbo.

O que me inspira vai
até ao vão da vida

e desaparece no lapso
do instante inexorável.

Viver é sobreviver
até ao colapso.

 

Felipe Fleury é formado em Direito, funcionário público, reside na cidade de Petrópolis/RJ. Tem poemas publicados no e-book do concurso de poesias da Universidade Federal de São João Del Rey (UFSJ-2018), nas Revistas Literárias Contempo, Contexto, Mallarmargens e Ruído Manifesto, além de ter sido selecionado para integrar a antologia, “quantos players hoje – poemas do árcade ao console”, organizada pelas Editoras Patuá e Fractal. Coorganizador dos saraus poéticos: Saracura e Sarauema. Instagram: @felipefleuryffc.

 

 

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