Aperitivo da Palavra I

Entre outras mil: nós iguais e diferentes

 Por Helena Terra

 

 

No livro “Sobre a literatura”, Umberto Eco explica que as obras literárias nos convidam à liberdade de interpretação por oferecerem um discurso aberto a diferentes planos de leitura ao mesmo tempo em que pontuam o que nelas deve ser assumido como relevante e à prova de dúvidas. Pois bem, no romance “Entre outras mil”, da escritora Rochele Bagatini, lançamento da Diadorim Editora, há um ponto de partida indiscutível: a educação sentimental e cultural das mulheres brasileiras por meio das telenovelas nas décadas de 70, 80 e 90. Quem passou horas e horas semanais, de segunda a sábado, diante de uma televisão nesses anos, ainda que não tenha parado para refletir, testemunhou e absorveu a organização e condução de modelos e estereótipos femininos. Às vezes, tendo à frente uma protagonista chamada Raquel, como a que dá nome a do livro “Entre outras mil”; outras vezes, tendo uma Helena, como eu que agora desenvolvo esse texto, as telenovelas impuseram valores e comportamentos. Em grande parte, nocivos. Registre-se.

A protagonista do “Entre outras mil”, por exemplo, batizada de Raquel por ter nascido no dia da morte de um ator e em homenagem à atriz central da novela “Sol de Verão”, tal como nessa trama televisiva, subitamente, vê-se frágil e desamparada diante da partida de uma mulher, sua mãe, que não suporta mais a rotina com o marido. Não sabe, a Raquel menina, as razões que a levaram a deixá-lo e a incluí-la no pacote do abandono. Não sabe, também, a Raquel adulta:

“Minha mãe sempre foi calada dentro de casa, mas com as pessoas na rua era simpática, falante. Eu tinha ciúmes quando se abria com outras pessoas e contava coisas que eu não sabia sobre ela. Era carinhosa comigo, embora distante. Nunca falava o que pensava sobre a vida. Algumas pistas eu identificava em comentários sobre as novelas, pistas essas que bem podiam ser fruto da minha imaginação.”

Essa Raquel literária, de fato, é imaginativa e dada a devaneios tanto quanto é dada ao enfrentamento do mundo. Oscila dentro de um pêndulo de ingenuidade e de lucidez, recapitulando a própria história e o vínculo com os pais, em especial com a mãe, como se estivessem todos atrelados ao horário nobre da programação de uma emissora de TV sem, no entanto, simplificá-los e desumanizá-los. Sua percepção, senso de justiça, espírito crítico e sua capacidade de narrar, apesar das memórias conectadas com as telenovelas, são apuradas e trabalham a favor de seu despertar e amadurecimento.

Raquel dedica-se ao bem-estar do companheiro e revende cosméticos para melhorar o orçamento do casal enquanto sonha com sua independência financeira e prepara-se para uma carreira jurídica. Em um primeiro momento, parece exagerado e paradoxal ela questionar o papel social e doméstico para que foi programada, querendo fazer parte de uma estrutura conservadora e masculina como é a do Poder Judiciário. Mas querer ser juíza e atuar fora do universo estético e subserviente das mulheres que conhece desde criança está de acordo com o seu processo de ruptura de padrões. Raquel não está mais sentada no sofá em frente à televisão decorando textos. Ela não quer mais ser manipulada. Tampouco manipular. Portanto, não manipula. E não se afunda em culpas, temores e condenações. Quer é entender:

“Não sinto falta do meu pai. Sentia pena. Talvez tenha sido vítima dele mesmo, por ter escolhido para vida uma mulher acima do que ele poderia suportar, ou que poderia suportá-lo. Não sei por qual motivo coloco ambos em níveis diferentes, e sequer sei dizer de que substância é feita essa diferença. Talvez ele seja superior a ela, porque não fugiu da vida que lhe foi dada, porque não quis ser outro. No caso do pai, não querer ser outro deu errado. Será que, no caso dela, deu certo?”

Como saber o que deu, o que não, no romance, nas novelas, na vida? Eu li e reli o “Entre outras mil” em uma espécie de “vale a pena ver de novo” sem controle, mesmo o remoto. Penso ter encontrado algumas respostas e muitas perguntas. Um livro é uma interrogação fincada na mente. E é, voltando a citar o Umberto Eco, uma máquina preguiçosa que pede a quem o lê que faça parte do seu trabalho. Você tem feito o seu?

 

Helena Terra é escritora e jornalista. O seu interesse, despertado na infância, por literatura a levou a cursar a Oficina de Criação Literária, do escritor Luiz Antonio de Assis Brasil, na PUC/RS, e a frequentar os grupos de produção e de leitura crítica da professora Lea Masina. Em 2013, publicou o seu primeiro romance: “A condição indestrutível de ter sido”. De lá para cá, participou de antologias, organizou, com o escritor Luiz Ruffato, a antologia “Uns e outros” e é coautora na novela “Bem que eu gostaria de saber o que é o amor”. Atualmente, ela coordena o grupo de leitura “A literatura tem nome de mulher”, que se propõe a ler, a pesquisar e a pensar os livros escritos por mulheres em Porto Alegre.

 

 

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