Dedos Prosa II

Samantha Abreu

 

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Foto: Milton Boeira

 

Faz sol

 

Logo agora que a chuva parou e que voltamos a ter vinis na estante. Agora, bem agora que não queremos mais ter tudo pois estamos de folga. Que não precisamos calçar sapatos, que a lua de mel mora no sofá de veludo. Bem agora.

Estava chovendo antes de ser hoje. Antes de ser este cabelo ruivo secando ao vento antes de ser vida acontecendo a partir das dez da amanhã. Mas dormir é sonho que também é noite. Bem agora que dormir é sonho eu escuto esses gritos lá fora e corro pra ver a morte, o ardor, a bomba. Bem agora, bombas. Explosões que não são coloridas e a gente querendo um banho morno seguido de pijama cama pra dois nossa comida. Bem agora que acabou a comida, que o sapato aperta e que a gente desaprendeu a dançar, já não temos cabelos nem sono nem os sonhos.

O que é que a gente vai fazer quando essa guerra acabar?

***

O golpe

 

O tempo entre a pancada e tombo está no cambalear das pernas.

As mesmas que vibram durante o ato – teu dia amanhecendo em mim – são as que cedem diante do fato de que tua ausência seja sempre

passagem.

O teu perfeito golpe

me pega na rigidez das coxas, para o amparo dos braços antes da queda.

Mas o tombo chega

inelutável,

fazendo do susto o sonho sempre depois do nascer do dia

o nocaute, a lona.

***

Guerrilha

 

Simulo que não, ele provoca o sim. Tem fácil acesso, nome na lista, ingresso livre. Entra, carrega as malas, todas as balas e todos os concordantes motivos. Ele me arranca os sorrisos, os suspiros. Arrasa todos os atinos.

Faz que não faz e desfaz a completa certeza do não.

E daí já não sei, já não importa: roupa, brincos e cordas. O banco de trás, o beco e o balcão. Guerra indeclarável pelo território alheio. Língua na boca do outro e cerveja esquentando na mão.

Enquanto ele derrete, eu sua.

Líquido e rubro amor que escorre. Terra invadida que ferve por toda a veia que corre,

briga no escuro, gangue de rua.

 

Samantha Abreu é professora em Londrina/Pr. Já foi publicada em antologias e revistas, além de participar de debates, projetos e eventos literários. Lançou o livro de poemas “Fantasias para quando vier a chuva” (Orpheu, 2011) e o livro de contos “Mulheres sob Descontrole” (Atrito Arte, 2015). Integrou as antologias “O Fio de Ariadne” (Atrito Arte, 2014) e “29 de Abril: o verso da violência” (Ed Patuá, 2015) junto com autores contemporâneos de todo o país. Seus textos poéticos foram adaptados para o teatro na montagem “Trouxe a chave para libertar sua tristeza”, da Cia AARPA.

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