Dedos de Prosa I

Márcia Barbieri

Milton Boeira

Foto: Milton Boeira

Carta a um anônimo

Não, não te escrevo do silêncio incômodo das madrugadas, embora tenha certo apreço pelos guinchados dos ratos domésticos, escrevo com o barulho imperceptível dos automóveis, o barulho das velhas máquinas de ponto, os ruídos dos estômagos de crianças famintas e com o sol se pondo em algum beco que não posso prever. Quando nos habituamos à loucura das cidades, os rumores deixam de ser ensurdecedores. Pensei muito sobre tudo que me disse, agora tento me organizar e respondo um pouco das suas indagações, contudo nunca tive o dom da clareza, não herdei o cérebro sistemático de certos predadores. Me pergunto, como poderíamos manter uma encenação amorosa dentro desses hotéis baratos com ambientação minimalista e objetos impessoais, com toalhas e lençóis mal higienizados e com espelhos embaçados duplicando o trágico-cômico de nossos corpos? Não sei se já te disse o quanto ando cansada de ter um corpo, preferia ser feita desses materiais sintéticos e impermeáveis, que se lava de quinze em quinze dias.

Como poderia te oferecer a ilusão de um amor se tenho consciência que tudo não passa de uma mentira burguesa bem contada? Nos ludibriaram feio, pode crer. Como posso dormir sossegada nos braços de um estranho se o amor não passa de um disfarce para negar nossa íntima semelhança com os primatas? Sim, sinto decepcioná-lo, embora saiba que você não é ingênuo, apenas se recusa a acreditar que animais são seres fatigados e não se procuram além da carne, não passamos de macacos com terno, gravata e emprego fixo.

Como te enganar se o desejo apodrece rente aos latões de lixo e a rua mal iluminada? Se a morte também estraga os cadáveres jovens? Se a vontade se desvanece perto dos cachorros sarnentos e abandonados pelos seus donos, que procuram bichos menos trabalhosos e mais ornamentais? Como ainda querer se há muito me perdi entre as compotas vermelhas, a pia abarrotada de louça e as faturas exorbitantes do cartão de crédito?

Não posso deixar esse espaço quase claustrofóbico, mesmo por poucas horas, apenas na invalidez desses cômodos eu suponho o significado da palavra imensurável, aqui eu já conheço o hábito das formigas, sei onde devo espalhar o inseticida, já experimentei a fúria dos marimbondos, conheço os pardais entediados que batem com frequência nas vidraças fechadas, sei onde as rachaduras deram lugar a infiltrações impossíveis de conter, sei onde as aranhas tecem suas teias e esperam compassivas para devorarem suas presas, sei em quais buracos as minhocas se escondem, sei o trajeto suicida dos pernilongos, sei da fome mediana dos peixes de aquário, sei como os cupins foram desaparecendo quando trocamos os móveis de madeira maciça pelos de MDF, sei que as abelhas sumiram há algum tempo e muitos afirmam que isso é uma das piores catástrofes ambientais e trará danos irreversíveis, mas nos calamos, agoniados pela cumplicidade do mesmo assassinato, a verdade é que a polinização das abelhas nos parecia afrontosa.

Como posso te vender um engodo? Se ao menos eu tivesse o corpo bonito, apetecível… se pudesse subtraí-lo ou doá-lo… No entanto, meu corpo é pesado, insosso, sem querer me recordo da anatomia intrigante dos elefantes, sinto a flacidez se instalando no meu ventre, as pernas perdendo os músculos, a gordura se acumulando e me proporcionando o aspecto de um ser dócil e inofensivo como as toupeiras. Invisível sim, não entendo como pode reparar na minha existência transparente, depois de certa idade as mulheres deixam de ser enxergadas, nos tornamos fantasmas gordos, cansados e sonolentos e quase sempre atrapalhamos a felicidade inconsequente dos adolescentes, porque fazemos questão de explicar antes de sermos interrogados sobre as necroses das paixões.

Entretanto, se apesar de tudo isso ainda me quiser, venha, eu te espero, mas venha rápido, pois está entrando dezembro e as baratas voadoras costumam romper os ferrolhos e se instalar nas frestas poeirentas da veneziana.

 

Márcia Barbieri é paulista, formada em Letras e mestre em Filosofia. Tem textos publicados em várias antologias e nas principais revistas literárias brasileiras. É uma das idealizadoras do Coletivo Púcaro e do canal Pílulas contemporâneas. Publicou os livros de contos “Anéis de Saturno” e “As mãos mirradas de Deus”, os romances “Mosaico de rancores” (no Brasil pela Terracota e na Alemanha pela Clandestino Publikationen), e “A Puta”. O romance “O enterro do lobo branco” será lançado esse ano pela editora Patuá.

 

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