Dedos de Prosa I

Daguito Rodrigues

 

Foto: Tati Motta

 

Falaria da saudade, se pudesse

 

Menino é menino, menina é menina. Vinicius sempre soube. O timbre da criança confundia um pouco. Fino, agudo. De garota, diziam. Libertador, contestava o pai. Era nos acordes do violão que Vinicius concordava com ele. Quando se derramava pela música ao pé da sucupira branca, na noite ao lado da fogueira. Ninguém negava. Quem poderia? E todo mundo aplaudia, pedia mais. Era uma voz bonita a do garoto, por mais que fosse feminina.

Ubiratan, o homem de dedos grossos e pele seca, do corpo contorcido e recurvado, a paisagem do cerrado, cresceu com as canções que amansavam as noites de um passado duro como aquela terra. Cresceu com a arte. Aprendeu a transformar as cordas em poesia de curioso. E desde que Vinicius nasceu embalou os sonhos do menino com harmonia musical. E tantos outros de tanta outra gente. Um inquieto.

Doze anos e lá estava o pequeno nas festas das fazendas. Microfone na mão e amor no peito. A mãe achava esquisito, gostava mesmo era do dinheiro a mais no fim do mês. No começo, Ubiratan tocava junto, levava o garoto no colo, mas a idade já não permitia a jornada dupla no campo e nas cerimônias. As reuniões até altas horas também ocupavam o tempo do velho pai. Encontros gritados, de braços erguidos e porradas na mesa. Batidas de portas. Vinicius acompanhava quando podia. Ou quando Ubiratan deixava. Era assunto sério.

Menino bonito. De cabelos longos e ondulados. Pele mais clara que o comum. Quase um filho de fazendeiro. Talvez por isso oferecessem tantos palcos a ele. Além da voz, claro. Dos sorrisos. Dos olhos pretos e lacrimosos, como se chorasse. E chorava, dependendo da música que ecoava na boca. Uma menina.

Quando as noites eram princesas, e Ubiratan preparava o fogo, com o violão ainda adormecido, quando o sol riscava o horizonte, Vinicius ouvia do pai as palavras de um mentor. O dedo escuro de unhas apodrecidas apontava para a vegetação rasteira, para as árvores esparsas no campo, e esse mesmo dedo se voltava para o peito do menino, para a testa do garoto, para a Lua no céu. A criança ouvia e entendia. O canto de mulher eram as asas da seriema, o sabor do araçá, o vento na cagaita. Somos. Escutava e memorizava. Um só. Mirava a enorme máquina no descampado e discorria sobre justiça e progresso, com exemplos que envolviam balas de menta e bombons de chocolate. Falava dos fazendeiros e de suas próprias leis. Tocava as folhas grossas com os mesmos dedos que tirava sons das cordas de aço. Segurava um punho de terra na palma das mãos. E discorria mais. Sobre o homem e o corpo. A separação cega do um e do todo.

A noite chegava com as pessoas, que iam se sentando, perguntavam de brigas e discursos, e Ubiratan levava o dedo à boca. Não ali. O palco sob a árvore e a luz da brasa não era o casebre das reuniões. O momento era da poesia, não de lutas. Os problemas e perigos que ficassem para lá, para além do cercado. Ao menos naquelas noites, que tudo parecesse simples e pequeno. Que fosse como deveria ser. Com respeito e união. E como era.

Hoje, se pudesse, Vinicius falaria da saudade. Falaria do tempo e do pai. Voltaria ao cerrado, à casa, à sombra da sucupira branca. Se ela ainda estivesse lá. Recolheria uns galhos, acenderia a chama. E apontaria também para o horizonte, para o peito e para a testa. Apontaria para o céu e teria a certeza de que somos sim um só.

Na tarde em que Ubiratan não voltou do campo, o garoto cortava batatas na cozinha. Sussurrava uma canção e a mãe estendia roupas no varal. Esperou na porta, com o sol já baixo. Não ouviu o som pesado dos pés na terra, que chiavam cada dia de um jeito. Macios no verão, duros no inverno. Os sapatos num ruído seco roçando as gramíneas e as ervas que rodeavam a casa. Eles não vieram.

Foi com a mãe que viu o corpo no casebre. Já sem reunião nem gritos. Só o silêncio. O sangue escuro no piso. Os olhos abertos para o nada. Foi com a mãe que tentou entender. Com o tecido da saia dela no rosto e as mãos apertando as coxas cansadas. Não pôde explicar para o garoto. Apenas lamentar. Os anos ensinaram. As conversas com os outros. As leituras dos textos. Só depois, o garoto de voz fina finalmente conheceu o pai e compreendeu seu fim. Só depois, o timbre agudo cumpriu a vocação para libertar.

Se soubesse antes, jamais teria cruzado os pórticos com partituras debaixo dos braços. Não teria versado canções entre taças de vidro e risadas insossas. Se soubesse antes, teria se agarrado aos braços do pai todo fim de tarde antes das reuniões. Teria implorado como um mimado para que abandonasse os grupos e as discussões. Rasgado pôsteres e papéis. Teria? Vinicius concorda com o pai. Hoje sabe, hoje entende.

E solta a voz em outras terras, distante das plantações de soja e milho. Por mais que se estendam por todo lado, não chegam onde o canto do garoto adulto chega. Tão longe. E com versos e rimas, com trovas e poesia, Vinicius repete as palavras do pai, transformando a luta em notas, desfilando baru, buriti e mutamba, galito, anhuma e irerê, abotoado, piapara e taguara, João, Maria e José. Espalhando o cerrado e seu povo pelo Brasil, como a água dos rios que nascem naquele solo. Terra rica, terra pobre. Povo sofrido, povo feliz. O progresso, a tradição. O dinheiro, a natureza. O masculino, o feminino. A voz de menina do garoto é também a voz grossa do pai sonhador.

E Vinicius levanta a bandeira. Como cantor e poeta. Ele, filho de Ubiratan, filho do cerrado brasileiro. Somos, canta e universaliza, um só. E é assim que seguiremos em frente.

 

 

 

***

 

 

 

Menino nas caixas

 

 

 

“O amor roeu o menino esquivo,
sempre nos cantos, e que riscava os livros,
mordia o lápis, andava na rua chutando pedras.”
(João Cabral de Melo Neto)

 

Fui o menino dos cantos. Calado, nos bancos das quadras de esporte. Escondido nas quinas das festas. Metido nas frestas dos clubes. Era medo das palavras, dessas faladas. Preferia o silêncio. As páginas dos livros. Ou aquelas em branco das papelarias. Um novo pacote de sulfite. Rasgava com a mesma vontade que as outras crianças rompiam os de bombons de chocolate. Mais que o cheiro do papel moço, eu gostava do vazio.

Fui o menino das viagens à praia, mas sem pés na areia. Escolhia a sombra da sala vazia, ao som das cigarras e dos gritos dos vendedores de sorvete. Distantes. A vida no verão era do lado de fora, mas não a do menino. Com as janelas fechadas e as cortinas cerradas, mordia o lápis e arranhava o papel, sentado no chão frio de uma casa alugada.

O menino não jogava bola como o pai. Não contava piadas como a mãe. Nem era cercado de amigos como a irmã. Fui esse menino esquisito. Um único. Desses que os adultos desconfiam, falam um para o outro. Não era normal, ficar assim de lado, perdido em livros e papéis. Tão longe do comum. Vai ser escritor, brincavam. Vai ser é louco. Queriam mesmo é que o menino fosse mais um.

O castigo era ir à praia. Mas mesmo lá, desenhava na areia, erguia muros e projetava rodovias que carregavam o menino para onde não havia nenhum outro, nenhuma voz. As pessoas assustam.

Mas fui também o menino cercado de amor. Um amor desses protetores, que mimam, impõe regras e conceitos. Só o amadurecimento consegue destruir tudo depois. Tarde demais. Um amor repleto de boas intenções, mas também de medo. Porque os pais, adultos como eram, sabiam que a vida não é amiga do estranho. A vida quer mais do mesmo. Os iguais com quem a gente cruza o tempo todo. O mundo não abre as portas para o diferente. Esse tem sempre que arrombar. Mas que menino tem força para arrebentar um cadeado?

Pois foi esse amor que roeu o menino. Matriculou no judô, no futebol, no vôlei. Jamais num curso de leitura ou escrita, muito menos de desenho. Roeu. E ele, tímido e com medo de se tornar igual a ninguém, fugiu dos papéis rabiscados e dos lápis mordidos. Vestiu a beca e carregou o diploma. Bateu cartão, usou o vale refeição, recebeu o décimo terceiro. Fez e refez o currículo. Entrou em reuniões, participou de happy hours e quando viu já não era mais menino. Sumiu nas mesmas roupas, na mesma rotina, nas mesmas frases de tantos outros. E se tornou igual a todo mundo. Como o mundo todo sempre quis.

Cadê o menino que riscava os livros, mordia o lápis e andava na rua chutando pedras? Cadê? Tiro o paletó, tiro a gravata, tiro a camisa. Arranco tudo e me assusto com o vazio. Bem o vazio, que eu tanto amava, hoje me arrepia. No espelho, não vejo nem homem nem menino. Não me vejo ali.

Cruzo as ruas como o menino virava as páginas dos livros. Histórias ficam para trás. A casa onde o menino morou, a escola, a praia, hoje é tudo apenas imagem no retrovisor. E com as mãos no volante, finjo que estou no controle. Que posso encontrar o menino. Mas, cadê?

Eu sei, não vou mentir, eu sei. Eu sei onde o menino está. Está jogado em caixas no alto do armário. Em papéis amarelados e duros, estampado em frases e rascunhos. Enterrado na dispensa. Escondido e isolado. Calado. Roído pelo amor. O menino são restos perdidos em papelões de leite desnatado.

Não há praia, não há areia. Não há pai nem mãe, apenas mudez. Não há amor, também. Nem luz. Mas não me venham falar de amor. Já li tanto sobre amor. Quem tem coragem de falar o quanto ele corrói meninos e meninas?

Não há resposta. Não há perguntas. Não há menino. Apenas caixas.

Apenas caixas. Ainda que essa verdade chegue a doer, ainda que venha a vontade de gritar, melhor mesmo é lembrar que um dia houve sim um menino. E que ele queria viver e sentir. Chorar e sorrir também. E se deixar levar pelo tempo, para que no tempo certo, um dia pudesse voltar.

 

Daguito Rodrigues é escritor e roteirista. Foi repórter da Folha de S.Paulo, Diretor de Criação na agência Publicis Brasil e dirigiu e escreveu o curta O Santo Salvador e o Demônio, entre outros. Acumula prêmios nos principais festivais de criação do mundo, como Cannes Lions, Prêmio Abril e Clube de Criação. Quer muito que você leia o primeiro romance dele, “Vozes na rua” (Kazuá, 2016).

 

 

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