Dedos de Prosa I

Dheyne de Souza

 

Ilustração: Ana Matsusaki

 

Ana, uma promessa

 

Eu sempre quis ter uma casa. Mentira. Na verdade sempre tive pavor de geladeiras fogões sofás essas coisas pesadas que querendo ou não atrapalham a gente a mudar. Se eu pudesse, se eu pudesse mesmo, era outra. É o que tento fazer todos os dias. Do mesmo jeito que todos os dias vejo as pessoas fazendo isso. Feliciando-se. Feliciando-se é quase que como emulando-se, estuprando-se, niilando-se, só que com a boca levemente curvada não rindo mas sorrindo. Aprendi na tv. Foi mesmo. Não vejo muito tv. Mas às vezes aprendo. Já fiz arguição sobre isso.

Eu quase nunca me apresento, não é uma falta de gentileza ou um esbanjar de arrogância, só. Odeio justificativas. Mas meu nome é Ana. Como sempre, vocês já devem estar sacando. Estou na verdade pensando que história conto ou invento sobre a minha vida. Há pontos de vista demais em mim.

Quando me pego pensando, acaricio meu lábio. Na verdade esse não é um hábito meu. Nunca fiz até então. Mas vi um dia. Um apartamento de Santos. Ela olhava o mar pela pequena fresta dos prédios. As pessoas conversando bebendo fumando rindo muito ao redor. Mas ela estava sozinha, com um ar francês. Ela de fato era da França. E eu do sofá fiquei olhando. Ela tinha as curvas bem finas dos lábios. E essa paisagem era realmente um campo no outono em algum lugar da minha memória europeia de películas. O olhar cor de nórdicos levemente parado. Quero dizer que se movia lentamente como se estivesse sugando não o mar da noite, mas subindo sorrateiramente pelas curvas das janelas. Às vezes inventava obstáculos nos lábios, acariciava-os com força e depois com leveza. Raramente o sentido anti-horário. Depois de um tempo, soltava a mão das montanhas finas. Parava no ar como se segurando entre os dedos um fio de ar. Exatamente isso porque eu podia ouvir dali seu som, um vento. Ela também levantava o pescoço. Digo, o queixo. Porque era mais belo. Às vezes alguém chamava seu nome. Ela virava a cabeça de lado, abaixava até o ombro e sorria, mas estava mais sentindo o cheiro do amaciante da roupa. Mas não me lembro como se chamava. Levemente da sua voz dizendo uma coisa que até hoje tento entender por que, e me arrependo de não ter perguntado. Nunca mais vou saber. Tinha um som de leite a voz dela.

Talvez assim funcione bem. Contando desse jeito, vocês entenderam, não foi? Posso fazer um trato, prometer a verdade, ainda que o caminho seja bem mais longo e com fissuras nas pontuações.

Esses momentos são mais tensos, não gosto. Vou pensar em uma história pra contar. Depois volto. Engraçado que quando voltei fiquei pensando um bom tempo se voltava e apagava um pouco ou se não. Idiota isso, mas sincero. Se é que se dá crédito ao mas depois de vírgula, hoje em dia. Quem é que sabe correr de justificativas.

As coisas ficaram mais difíceis. Minhas histórias das histórias diminuíram com o tempoa vidaacontaalamaoremoacamaaporradacultura.

Como as pessoas conseguem escrever fumando, me pergunto.

Eu digo, na minha cabeça mesmo. Eram mais ramificadas, digamos.

Não que eu não lembre. Assim, não muito cronológica e ordenadamente. Muitos buracos. Há espaços em branco impenetráveis. Talvez nem com a psicanálise. Aprendi muito bem como cerc(e)á-los.

Hoje, especificamente, não é um dia muito bom.

Uns dias atrás alguém buzinou e não soube se era para mim. Esse tipo de não resposta que fico guardando na memória. Não exatamente nessa proporção. Tentei ilustrar. Preciso pensar em alguma coisa rápido.

Às vezes me pego pensando que, se não fosse a Bíblia, eu teria me suicidado na adolescência.

Menos, bem menos.

Meu nome é Ana. Não tenho filhos, não tenho ninguém. Quase um aforismo.

Quem sabe na próxima tentativa eu possa ser melhor.

 

 

 

***

 

 

 

Cidade quente

 

A cidade quente gemia. Madrugada de final de agosto. A Avenida Goiás. Rua de sombra, de vapor, de um galho quebrado. Outro. Mais perto. O vento, ela pensava. O vento, na verdade, ia se aposentando aos poucos nessa época do ano. As folhas ao vento, dizia bem baixo. Quebrando galhos? Poderia parar, mas a possibilidade de ouvir o som mais perto, o som mais rápido, o som mais real, não. Uma moto passou tão devagar que escondeu o grito do galho. Mas foram instantes. Ela sequer olhou. Não estou com medo, tremia. O frio da madrugada na cidade quente é uma espécie de hálito móbil. Arriscou levantar os olhos do all star preto puído para uma fachada de prédio art déco. Se fosse outra cidade, todos tirariam fotos. Mas na cidade quente a gente se acostuma a olhar sapatos, anúncios, smartphones. Ela apertou a mão no bolso da calça jeans, mas desistiu das horas. Perdeu a contagem da proximidade do som do galho. Mas ele vinha. Sem certeza, atravessou a rua. Os bancos da avenida chamavam. Foi uma das primeiras avenidas que conseguiu identificar quando se mudou. Tinha 16 anos? Foram os bancos da Avenida Goiás. Os transeuntes da Rua 4 empatando os sebos. O Eixo Anhanguera cavando o sol no asfalto. Mas agora era madrugada e o asfalto urrava mudo. Tivesse coragem, molhava a mão na fonte onde tanta gente já se banhou. Mas faltavam só quatro quarteirões para subir pro apartamento, fumar um cigarro, tomar uma tequila ouro e fotografar da janela a memória do medo do som do galho na velha Avenida Goiás. Tinha o hábito de olhar o chão, o resto que fica no chão. E na cidade quente o chão é rico de história. Já descobriu pilhas, anéis, tickets, moedas, suores, seus relicários. Por isso cometeu o deslize de diminuir demais o passo. Era o braço de uma boneca. Não se abaixou para pegar porque sabia que estava muito perto tanto quanto não sabia que. O acaso? A última lembrança poderia ter sido o braço da boneca. Mas a mão no seio na calça em todos os seus buracos acordou de gritos alguns galhos que ainda não pegaram no sono no alto dos prédios cansados. Na Avenida Goiás, que lástima, logo agora que estava a dois quarteirões de casa.

Foda-se. Era só no que ele pensava enquanto andava mais rápido. Atrás da garota de blusa de alça. Poderia correr, mas. Foda-se. Uma moto quase. O cabelo dela tremia. Era bonito isso de os braços se abraçarem como se fosse frio naquela cidade de fogo atravessando a rua. A madrugada é uma solidão sem fome. Quando o braço da noite desliza. Se Deus quiser que assim seja, ela vai diminuir o passo.

Uma garota na Avenida Goiás sendo seguida, mas isso são horas. Vou devagar. Se ela estiver sem sutiã, não posso fazer nada, as pessoas precisam aprender a viver. Ela não tem a capacidade de olhar pra mim e pedir ajuda. O cara também nem me parece uma má pessoa. Agora quem procura acha. Quer saber foda-se.

Até pensei em chamar a polícia quando vi lá embaixo na Avenida Goiás aquela moça que parecia uma boneca quebrada, devia estar com um medo enorme, se fosse eu correria. Ou eu mesma vou. Mas com a dor que estou nas pernas até eu conseguir descer não vou sequer ver o que aconteceu. Ai meu deus uma moto. Hoje em dia moto é uma coisa que não dá pra aguentar nessa cidade. Se eu estou na rua à noite, mas não tão tarde, e passa uma moto, eu já mudo meu destino, sei lá. Nunca se sabe. Antes prevenir. Ela atravessou a rua, graças a deus vai dar tudo certo. Espera. Como assim, minha filha? Agiliza. Sai daí, sai. Ai meu deus do céu, misericórdia. Carlos André, acorda, me dá o remédio, corre! Esse calor do cão.

Adolescente é estuprada e morta na Avenida Goiás na madrugada desta terça-feira. Sem testemunhas no local, polícia segue investigação. Prefeito promete reformar asfalto. Os ipês-rosas estão morrendo enquanto florescem os ipês-amarelos. Bala perdida mata motociclista no centro. A temperatura continua alta na capital.

 

Dheyne de Souza está em Goiânia-GO. Tem um livro de poemas publicado (“Pequenos Mundos Caóticos”, PUC/Kelps, 2011). Em breve, lançará o livro, também de poemas, chamado “Lâmina”s (Martelo Casa Editorial). Publica poemas, prosemas e e-books no seu blog. Tem um canal no YouTube, em parceria com Helô Sanvoy, com leitura e vocalização de poesia.

 

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1 comentário

  1. Dizer o quê? Que a sua escrita é sedutora, de longas pernas e silenciosas sombras beijando cada palavra, não vou dizê-lo, até porque posso não ser entendido, você o sabe a força da sua escrita, essa confusão de assombros é que eu vejo em cada texto, que seduz inopinadamente, mas antes que me diga que estou plagiando-o descaradamente, gostei too much das velas içadas aqui. Muito bom. Excelente partilha.
    Um abraço,

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