Dedos de Prosa I

Sérgio Tavares

 

Foto: Luiz Bhering

 

O discurso presidencial

 

Um minuto, anuncia o secretário de Imprensa. O operador de câmera confere o visor e calibra o foco. A meia altura do tripé, o plano americano enquadra o tampo amadeirado do que parece ser uma mesa de uso doméstico. No canto inferior esquerdo do vídeo, tem um exemplar da Constituição de 88. No canto inferior direito, um volume da Bíblia Sagrada. Em escala de profundidade, vê-se o recosto chumbo de uma cadeira office e, mais atrás, a bandeira do Brasil presa, com fita crepe, na parede nua.

O presidente, então, entra em cena. A princípio, apenas o recorte do corpo que dá das coxas até meio do abdome. Trinta segundos, acusa a voz do secretário. O presidente acomoda-se. Usa uma camisa social azul turquesa, sem gravata, sobreposta por um blazer azul marinho. O assistente de som lhe prende o microfone na lapela: Alô, alô, testando… Ato contínuo, a maquiadora polvilha base na cara papuda e acerta, com um pente fino, o pega rapaz do penteado montado a gel.

Ok, todo mundo fora de cena! Silêncio agora, pessoal! No centro do vídeo, o presidente assume uma postura ereta e encara fixamente a câmera. O secretário de Imprensa corre para detrás do tripé e informa: Cinco segundos, iniciando uma contagem regressiva com os dedos, que é sucedida por uma voz feminina em OFF, escutada num pequeno monitor ao lado. “Forma-se, neste momento, a rede nacional de rádio e televisão, para o pronunciamento do presidente da República”.

É a deixa. O secretário de Imprensa sinaliza, mas, ao contrário do ensaiado, o presidente não começa a falar. Ainda com a coluna reta, as mãos pousadas sobre a mesa, faz um movimento sutil, porém firme, com a musculatura do pescoço, como se tentasse se livrar de algo preso na garganta.

O tempo passa, está ao vivo para todo território nacional, e o silêncio começa a provocar tensão. O presidente meneia a cabeça, empina o queixo, demonstra agora sinais de incômodo. Ninguém entende o que está acontecendo. Ele está engasgado?…, sussurra o operador de câmera para o assistente de som, que dá de ombros.

O presidente está mais alterado. Pressiona o pomo-de-adão, repete um esgar, perde a compostura. Debruça-se sobre a mesa e, num movimento forçoso semelhante ao da expectoração, contrai os lábios e, de sua boca, sai uma roliça tripa marrom malcheirosa.

Todos, no ambiente, se espantam. Ressoa um abafado de exclamação. O presidente, com os olhos arregalados, encara aquele montinho pastoso à sua frente, olha de volta para a câmera e retrai os músculos da face como se não soubesse o que fazer. Tenta falar outra vez, e um novo arremesso de bolo fecal bate contra o tampo amadeirado da mesa.

Minutos depois, o vídeo tinha viralizado em todo o mundo. Com igualável rapidez, apoiadores se manifestaram nas redes sociais, em blogs e em vídeos no Youtube, alertando de que se tratava de deepfake, uma montagem grosseira, feita por opositores, com o propósito de atacar a imagem do presidente.

Mas não era o caso. Toda a vez que o presidente tentava se expressar, um rolo de fezes era regurgitado inevitavelmente. Falava sobre o meio ambiente, defecava pela boca. Falava sobre a ditadura, defecava pela boca. Falava sobre a diversidade de gênero, defecava pela boca. Falava sobre cultura, defecava com mais ímpeto pela boca.

Em protocolo de emergência, o presidente foi levado para um centro médico, no entanto, depois de uma bateria de exames, proctologistas e otorrinolaringologistas não puderam determinar qual era a causa do fenômeno. Políticos da base, apavorados, davam como certa a renúncia. O estafe partidário se preocupava em blindar a Comunicação do Planalto do assédio da mídia nacional e internacional, ao mesmo tempo que articulava a posse do vice.

O problema era o fogo amigo de alguns aliados políticos que vazavam notícias, alimentando uma série de especulações que pressionavam o porta-voz do Governo a se pronunciar, muito por conta também de uma ansiedade perigosa que começava a ganhar forma nas ruas.

Dois dias depois, o vídeo tinha alcançado a marca histórica de dois bilhões de visualizações, e parlamentares da oposição começavam a colher votos para dar início a um processo de impeachment. Com o presidente ainda internado, ninguém sabia o que fazer e tudo parecia realmente perdido.

Até que, das profundezas de um porão situado num grotão morno dos Estados Unidos, um guru de extrema-direita faz uma live que muda todo o quadro. Defende que, na história do mundo, nunca existiu um líder com a capacidade de executar um ato que transcendia a fisiologia normal do ser humano. Que era um homem único, um mito. Que, por estar um degrau acima na evolução da espécie, todos deveriam idolatrá-lo e segui-lo. Que em função da impossibilidade dos outros mortais repetirem seu ato, os seguidores deveriam ingerir fezes, de modo a condicionar o corpo a expulsá-la pela boca. Que ele próprio, desde aquela manhã, tinha iniciado uma dieta no qual ingeriria três porções de fezes frescas por dia, de maneira a se tornar, oxalá!, tão evoluído quanto o presidente. Que mostrariam para o mundo que a fome, no Brasil, era uma mentira.

No dia seguinte, milhares de eleitores tomaram as ruas, simultaneamente em vários estados, para celebrar o presidente que defecava pela boca. Vestidos com camisas oficiais da Seleção Brasileira de Futebol, tênis e bermudões, cantavam o novo Governo, a nova Pátria, o direito de ingerir fezes. Alguns, inclusive, seguravam tupperwares com porções de bolos fecais e iam se alimentando durante a manifestação. Pais davam colheradas a seus filhos para, oxalá!, um dia alcançarem o estágio de evolução do presidente.

Com a crise controlada e o vídeo reduzindo, gradativamente, o número de visualizações, o estafe começa a botar a agenda presidencial de volta aos trilhos. Inapto a falar sem expelir um rolo fecal, o presidente tenta se comunicar por meio de libras, porém é incapaz de articular qualquer movimento com os dedos que não seja o indicador e o polegar esticados, simulando uma arminha. Passa, então, a ser acompanhado por assessores que seguram pequenas lousas e uma caneta piloto não da marca Bic. Ali escreve ordens para um grupo formado pelo vice-presidente, o chefe da Casa Civil, o ministro da Economia e um astronauta, que passam a ser a voz ativa no comando do Brasil.

Recolhido em casa, o presidente começa a usar, cada vez mais, o Twitter para se expressar. Ao fim de todo post, cola a hashtag Pátria Amada Brasil e o emoji cocozinho. Também é, através de tweets, que demite dois ministros e o chefe da Receita Federal, ao descobrir que não seguiam a ingestão regular de fezes frescas. Em 5 de setembro, Dia da Amazônia, compartilha um vídeo em que um ruralista, no centro de uma grande área desflorestada, pasto de cabeças de gado, saboreia um bolo fecal a garfadas cheias, afirmando que, a exemplo do esterco que aduba o solo, as fezes aduba (sic) o cérebro. O presidente cola, no rodapé do post, a hashtag Respeito.

Daí se avizinha a data da Assembleia-geral da ONU, na qual é praxe o chefe-maior do Estado brasileiro fazer o discurso de abertura. Com a reprovação da equipe médica circulando pelos bastidores do Planalto, o vice-presidente, durante uma coletiva, deixa escapar que o presidente não irá participar do evento. A declaração, porém, causa revolta no presidente, que ordena que o vice se dirija urgentemente à sua casa, onde ficam cara a cara e, aos berros, dispara jatos de matéria fecal por todo o rosto e terno de seu imediato. Completamente enfurecido e descontrolado, o presidente passa o resto do dia defecando em todo o assoalho da casa.

Não passa por sua cabeça (sic) faltar ao discurso de abertura. O estafe e o grupo, então, reúnem-se, de modo a bolar uma estratégia para o presidente fazer o discurso sem precisar falar. Sugerem um powerpoint; o presidente recusa. Sugerem uma dublagem sincronizada a movimentos labiais; o presidente recusa. Sugerem que fique em posição de sentido e a primeira-dama discurse por ele; o presidente recusa. O presidente quer falar. Em sua cabeça (sic), conclui que tem uma missão a cumprir. Um dia antes da viagem, publica, em sua conta no Twitter, que vai a ONU defender a soberania nacional, hashtag cocozinho. O post tem 200 mil curtidas e 40 mil compartilhamentos.

Nova Iorque, setembro. Diante de um auditório com centenas de ocupantes, entre chefes de estado, de delegações, autoridades diversas, repórteres e convidados, o presidente caminha até a oratória, levando consigo duas folhas de papel A4 escritas à mão, e se posta a centímetros do microfone. Flashes de câmeras estouram em seu rosto. O presidente arruma as folhas sobre uma pequena bancada, confere outra vez o início do discurso, limpa a garganta e, ao projetar a voz, arremessa um bolo de fezes ao pé da tribuna.

Na primeira fileira, lideres de nações europeias reagem com assombro, em seguida, com repulsa. Alguns deles, nauseados, levantam-se e abandonam o recinto. Outros, ao fundo, permanecem em seus lugares, até serem alcançados pelo futum. Mesmo para o padrão do presidente estadunidense é demais, e ele também deixa o salão.

O presidente, no entanto, não se abala e segue defecando pela boca o conteúdo redigido nas folhas de papel. Ao fim, o ar concentrado está tão poluído, que mesmo os operadores de câmera e a equipe de organização se evadiram, ficando apenas a pequena comitiva brasileira que, habituada à intensidade do cheiro, coroa a queda do último rolo fecal com uma salva de palmas e assobios. O presidente é abraçado e cumprimentado pelo sucesso, depois todos vão comer hambúrguer num fast food da esquina.

De volta ao Brasil, o presidente é recebido por uma multidão que se autointitula os toletinhos. Carregam faixas e cartazes, cantam o hino nacional e entoam frases de efeito, ingerem fezes frescas e dão tiros para o alto; no topo de um carro de som, uma dupla faz uma performance-homenagem de brown shower.

Analistas de direita tecem comentários elogiosos sobre a participação do presidente na Assembleia-geral da ONU. Exaltam como foi sensato, incisivo, mantendo a compostura diante da debandada dos chefes de nação, mesmo quando seu modelo moral, o presidente dos Estados Unidos, deixou o recinto, cobrindo o nariz.

Na imprensa internacional, porém, o discurso do presidente repercute entre a revolta e o escárnio. Um articulista do Le Monde define a participação como um acinte, pois (trad. do francês), “sabedor de que defecava pela boca no Brasil, fez questão de que o mundo tivesse ciência de seu hábito grotesco”. O editorial do Deutsche Welle defende que (trad. do alemão) “a próxima Assembleia-geral fosse realizada nos sanitários do prédio”. A capa do The Sun traz a manchete “Brazil is a sh***” (melhor não traduzir).

É o combustível para se iniciar uma guerra virtual, com memes, fake news, comentários, stories, textões e tweets. Mas, com o tempo, os efeitos ganham ressonância na política macroeconômica e acordos bilaterais e multilaterais começam a ser desfeitos. Todos os países europeus param de importar produtos e matérias-primas do Brasil. Multinacionais fecham fábricas em várias cidades, causando demissões em massa. Mesmo os Estados Unidos, um aliado platônico, cortam relações com o governo brasileiro, decretando o isolamento internacional. E assim, apesar da arrogância do presidente em garantir que o país é autossustentável, a economia caminha para a falência.

Dois anos depois, o desemprego atinge 44 milhões de brasileiros, e 88,8% das famílias estão endividadas. A violência social explode contra a inexistente política de segurança e, nos estados mais pobres, a fome mata uma criança a cada cinco minutos. Com a redução do território verde da Amazônia a 12%, epidemias tomam as cidades que, sem estoque de vacinas, empilham cadáveres em covas coletivas. Todos os planos econômicos e reformas se revelam pautas de festim. E até mesmo a Igreja, mentora e patrocinadora do Governo, fecha todas as suas sedes e seu canal de televisão, e se muda para Moçambique, alegando que Deus não é mais brasileiro.

Ainda assim, o presidente lança sua campanha de reeleição. E milhares de toletinhos o acompanham em caravanas messiânicas por todos os cantos do Brasil, reverenciando o mito, o ser incomparável que defeca pela boca, pois, apesar do caos social, dos continuados escândalos de corrupção, da livre prática de nepotismo, da volta da censura, do consolo da informalidade para ter o mínimo para sobreviver, todos podem contar com a ingestão diária de três porções de fezes frescas.

O presidente sequer se vale mais de lousas para se comunicar, arremessando, em ritmo de campanha, matéria fecal a torto e a direito, sem moderação. No corpo a corpo, eleitores disputam o espaço mais próximo do presidente, de modo a capturar um desses rolos ainda no ar e ingeri-lo imediatamente, presumindo que a fonte original possui componentes puros, capazes de agir com mais eficácia na modelagem do intelecto (sic).

O presidente não se incomoda com o empurra-empurra, os apertos e os abraços, guiando a multidão numa cauda verde-amarela de inquietos movimentos, que somente se interrompem quando o líder detém os passos para defecar, sobre os microfones e gravadores da imprensa, as mesmas malcheirosas evacuações. Até que, num desses contatos diretos com eleitores de Minas Gerais, uma repórter de uma rádio local atravessa o gravador por entre a barreira de pessoas e pergunta ao presidente o que ele teria a dizer para os brasileiros que não apoiam seu governo, que se recusam a ingerir três porções diárias de fezes. O presidente dá um sorriso debochado e se prepare para expelir um rolo robusto sobre o rosto da repórter, quando abre a boca e sai a sua voz.

O presidente se espanta em ouvir a si próprio, depois de anos. Todos congelam, e um silêncio expansivo vai ganhando forma na multidão à medida que cada pessoa transmite para a mais próxima que o presidente voltou a falar. Há uma perplexidade coletiva, um abalo mental, em seguida a ponta de uma rachadura. Com os dedos melados e os lábios sujos, as pessoas começam a se autoquestionar sobre a ingestão de fezes, construir uma reação de nojo. O presidente observa a mudança das expressões a sua volta. Processa novamente a pergunta, pensa no que falar, pensa na mais absurda e abjeta declaração para expelir um bem roliço e fedorento bolo fecal, mas se distrai, não consegue, e, atormentado, sem encontrar saída senão a mediocridade da própria voz, insinua uma resposta, quando, do nada, surge alguém e lhe acerta uma facada na barriga.

 

Sérgio Tavares nasceu em 1978. É crítico literário e escritor, autor de “Queda da própria altura”, finalista do 2º Prêmio Brasília de Literatura, e “Cavala”, vencedor do Prêmio Sesc Nacional de Literatura. Alguns de seus contos foram traduzidos para o inglês, o italiano, o japonês, o espanhol e o tâmil. Participou da edição seis da Machado de Assis Magazine, lançada no Salão do Livro de Paris. Edita o site de crítica literária A NOVA CRÍTICA.

 

 

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