Dedos de Prosa I

Rodrigo Melo

 

Pintura: Canato

 

SÓ ELE VOLTOU

 

Alguns dizem que ele a matou e a jogou, com carro e tudo, num dos brejos lá da serra, um daqueles que ninguém sabe direito como chegar. E, acredite, tem uma porção de brejos assim por lá. Mas a maioria acha que tudo realmente aconteceu: que eles foram levados para algum tipo de experiência e que, por algum motivo indecifrável, só ele voltou. Eu mesmo não sei dizer o que é verdade. Cada um tem a sua opinião e a depender do jeito que falam, acabo acreditando em quase tudo.

A história que todos conhecem é que eles tinham saído para jantar. Era uma quinta-feira como outra qualquer, sem nenhuma data comemorativa ou algo assim. Alguém lembrou depois que eles quase nunca saíam juntos, mas há muitas coincidências na vida e essa pode ter sido apenas mais uma. De qualquer modo, foram até uma pizzaria, aquela que fica na esquina do cinema, e se sentaram em uma das mesas da varanda. Ele deixou Norma escolher o tamanho, família, e os sabores, e ela pediu metade de calabresa e a outra metade de manjericão roxo. Comeram sem conversar, como muitos outros casais, cada um sentado em um lado da mesa. Ela bebeu refrigerante e ele, uma lata de cerveja. A garçonete disse que Norma perguntou se era possível embrulhar os dois pedaços que haviam sobrado e que ele, ao descer o batente da pizzaria, disse:

– Cuidado, querida, para não tropeçar.

Entraram no carro e partiram. E, depois disso, tudo o que a gente sabe foi o que ele contou.

Ele disse que seguiram pela estrada que leva aos brejos. Era o caminho mais longo, mas ela gostava de ir por ali. Escutavam música francesa: Allan Barriere e Charles Aznavour. Conversavam sobre o desabamento de um prédio que tinham visto na tv. Tudo ia bem, quando, depois de passar pelas velhas fábricas, ao entrar à direita para pegar a grande reta que os levaria para casa, o carro de um segundo para o outro parou – não havia desligado, assim como não parecia haver qualquer problema mecânico. Apenas deixou de ir para a frente, de seguir a linha que vinha seguindo. E o mais estranho daquilo era que, mesmo acelerando e quase afundando o pé no assoalho do carro, continuavam sem sair do lugar. Era como se um enorme ímã os segurasse. E então, abruptamente, o carro ficou suspenso no ar e começou a se afastar do chão. Ele disse que não demorou a deduzir que estavam sendo abduzidos por alguma nave espacial, pois era a única coisa que poderia estar acontecendo. E ela, a nave, era enorme e muito clara, tão clara a ponto de quase cegá-lo, por isso teve que fechar os seus olhos. E apagou. Quando despertou, horas ou dias depois, se deparou com aquelas duas criaturas curvadas sobre si. Eram bem diferentes das que vira em qualquer filme sobre aliens, pois tinham o corpo gelatinoso e andavam sem esforço algum, como se flutuassem a dois palmos do chão. Curiosamente, ao invés de lhe causarem medo ou asco, lhe davam uma surpreendente sensação de paz e segurança. Elas o colocaram numa espécie de redoma de vidro, que chacoalhou por algum tempo e depois parou.  Nesse tempo, ele acabou apagando mais uma vez.

Na manhã seguinte, encontrava-se completamente nu, deitado sobre o asfalto, quando um cachorro veio e lhe lambeu o rosto. Não havia nenhum sinal do carro, muito menos de Norma. E ele, sem ter mais o que fazer, simplesmente se levantou e correu para casa, de onde ligou imediatamente para a polícia.

Tem cinco anos que isso aconteceu. O caso continua em aberto, pois nunca acharam o corpo, mas a bem verdade é que quase todo mundo acreditou na história que ele contou. Às vezes, até eu. Nos finais de semana, quando o tempo está bom, alguns turistas aparecem e vão até a estrada que leva aos brejos, hoje tão movimentada quanto qualquer rua comercial. Procuram por uma queimadura no asfalto ou qualquer coisa que os convença de que tudo de fato aconteceu, e por vezes até encontram algo, e, alvoroçados, começam a falar alto e a sorrir, como se dependesse daquilo atestar que tudo tinha sido mesmo verdade. Em seguida, rumam em caravana até a frente da casa em que o casal morava, onde hoje há uma lojinha na garagem. Em alguns dias, ele aparece, acompanhado da nova esposa, uma loira, quinze anos mais jovem, e tira fotos, conta para todos como foi a louca e maravilhosa experiência que teve a sorte de vivenciar. E aquelas pessoas então o abraçam, lhe pedem autógrafos, e, ao seu modo, o reverenciam, porque, apesar de tudo, ele conseguiu sobreviver.

Parece que na semana que vem, lá na praça em frente à pizzaria, vão inaugurar uma estátua dele montado em um disco voador.

 

Rodrigo Melo é prosador e vive em Ilhéus, Sul da Bahia. Publicará, no início de 2020, o romance Riviera.

 

 

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