Dedos de Prosa I

Priscilla Menezes

 

Ilustração: Ana Luiza Tavares

 

A mulher em casa está em uma floresta. Entre seus dedos, invisível, existe uma lança e há terra constante em seus pés. A mulher em casa está vulnerável. A mulher em casa está em estado de sítio, onde todas as quinas lhe ameaçam e ela constrói barricadas. A mulher em casa está em uma zona de guerra e os intocáveis não serão poupados. A mulher em casa tem pensamentos perigosos. A mulher em casa atravessa um deserto onde recolhe vestígios ilegíveis de uma antiga civilização que ela mesmo fundou. A mulher em casa está em uma fronteira e é, a um só tempo, agente de controle e refugiada. A mulher em casa está no fundo do mar e inventou modos próprios de praticar apneia. A mulher em casa tem guelras e está sozinha. A mulher em casa não está esperando ninguém. A mulher em casa deseja estar em outro lugar. A mulher em casa está subindo pelas paredes e começa uma volta ao mundo sem planejar o seu retorno. A mulher em casa está se olhando generosamente pela primeira vez. A mulher em casa é monstruosa. A mulher em casa é uma horda de crianças e bichos que ameaçam as estruturas da casa. A mulher em casa é a última força a evitar a separação entre duas placas tectônicas. A mulher em casa sustenta a casa e não recebe nada a mais por isso. A mulher em casa faz amor com as sombras e gesta os seus filhos na escuridão. A mulher em casa é um eixo em torno do qual o mundo rotaciona na direção oposta ao que lá fora chamam de avanço. A mulher em casa troca a resistência do chuveiro e faz a comida. A mulher em casa quer colocar fogo na casa. A mulher em casa sente culpa. A mulher em casa é um vulcão adormecido. A mulher em casa está menstruada. A mulher em casa tem amantes como quem tem uma horta. A mulher em casa finalmente tem um teto todo seu. A mulher em casa toma conta de uma horta como quem cuida de amores. A mulher em casa quer escrever, mas acha que precisa lavar os azulejos primeiros. A mulher em casa está na rua. A mulher em casa não é facilmente encontrável. A mulher em casa coloca para fora a sua animalidade latente. A mulher em casa saiu.

 

 

 

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Tales achou que era tudo água. Anaximandro inventou um nome próprio para a matéria infinita das coisas. Anaxímenes sabia que o fundamento da vida é o ar, a poeira e o espaço. Heráclito dizia que o princípio de todas as coisas está contido no fogo que a tudo destrói e refaz. Eu acho que essa cola imanente, que relaciona todas as coisas, é menos uma matéria e mais um conjunto de influências mutuamente realizadas. Seria preciso olhar o espaço entre as coisas como se olha uma ruína, um manuscrito antigo, o corpo de um animal raro. Apostar que entre nós e qualquer coisa pode haver uma relação como a que há entre a terra e o céu. Mapear analogias como mapeamos a influência dos planetas sobre os nossos modos de ser. E se percebêssemos por fim que tudo é signo?  Por exemplo: verificar como a longevidade dos meses é análoga às bases das falanges dos dedos. Cume janeiro, declive fevereiro, assim por diante até  a repetição dos ápices entre julho e agosto, que obriga a dar uma volta, passar por fora e recomeçar. Foi nesse intervalo que eu nasci. Talvez a minha existência seja regida por esse salto, por esse deslocamento pelo lado de fora. Para levar isso às últimas consequências seria preciso esquecer um pouco o que é uma mão e esquecer um pouco o que é uma vida. Para discernir como tudo incide sobre tudo talvez fosse preciso desaprender o que é matéria e desaprender o que é mundo. Nesse afrouxamento de convicções uma nova ciência poderia se estabelecer. Esquecer um pouco o que se é para conhecer a si em tudo que há, a mim isso soa como um plano.

 

 

 

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Será que quando Francis Alÿs chegou bem perto do furacão os seus alvéolos começaram a rotacionar em torno de algum centro propulsor insurgido ali, na radicalidade dessa aproximação? Fico pensando se é possível chegar tão perto de um tornado sem se tornar algo como um tornado. Certamente sou um pouco você desde que cheguei mais perto. Eu me pergunto se naquela vez em que estive em um desastre eu extraí dele alguma qualidade desastrosa. Se na passagem por terras distantes eu esgarcei as possibilidades de me distanciar de mim. Se ao caminhar nas beiradas do abismo de Moher eu me tornei um pouco mais abismal. Se quando tive entre as mãos o corpo de um pássaro machucado eu também eu me abandonei em alguma força maior. Roger Callois investigou o fenômeno da metamorfose e chegou a uma misteriosa conclusão: que o mimetismo não seria uma prática de sobrevivência, como se pensa, mas uma espécie de loucura que desestabiliza as distinções entre meio e ser. O destino mimético seria menos um esconderijo e mais uma tentação. Vamos na direção das coisas que não somos porque não resistimos a elas e nos transformamos nelas porque não resistimos à transformação. Quando olho Francis Alÿs perseguindo tornados, quando penso nos caminhos até o abismo de Moher, quando me penso diante de você entendo que não resistir, às vezes, é um longo trabalho. Não resistir pode ser uma laboriosa forma de salvação.

 

 

Priscilla Menezes é artista, poeta e professora. Em 2017, lançou o livro “Erro tácito” pela Editora Patuá. Participou da coletânea “Tertúlia” lançada em 2018 pela editora Ágrafa. Em 2019, lançou o livro “Eu vou invadir os latifúndios que cercaram a minha carne”, pela editora Nadifúndio, e integrou a publicação coletiva São nossas as notícias que daremos produzida pelo Movimento Respeita!. Seu trabalho pode ser acompanhado através de seu instagram @lotahille.

 

 

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