Dedos de Prosa I

Jonatan Magella

 

“Amor seguro”: Claudio Parreira

 

Luz e cheiro

 

O amor deles fedia. Fedia porque depois de nascer, crescer e reproduzir-se (tinham uma filha), o amor morreu. Mas não houve coragem para o sepultamento e o amor deles tornou-se um cadáver jogado em cima do sofá.

Nascera aquele amor num ponto de ônibus, em um desses insuportáveis fins de tarde de primavera no subúrbio carioca, quando voam os mosquitinhos ao redor das luzes.

Ele viu Lucília toda atrapalhada, entre pernas de trabalhadores exaustos que esperavam a condução da volta pra casa. Eram jovens e não havia nem sinal do que se tornariam com o tempo. Lucília abanava-se e às vezes batia em si mesma, por causa dos insetos sobre a cabeça.

– Você deve ser uma pessoa muito iluminada.

– Por quê? – Lucília deu um tapa rente ao próprio rosto.

– Porque esses mosquitos ficam quietinhos no inverno. Mas no calor voam, se guiando pela lua. O problema é que quando encontram outra fonte de luz, se confundem.

– Tipo uma lâmpada?

– Ou um rosto luminoso.

A partir desse dia, Lucília cingiu aquele homem – que entrou no mesmo ônibus que ela dizendo, sim, esta é a minha condução, mas depois pegou mais dois para chegar ao seu verdadeiro itinerário, não sem antes conseguir um beijo e o número de telefone.

O amor cresceu rápido. Não à toa. Eles o alimentaram à base de pipoca e cinema, de chocolate e bolo, de pizza e cerveja. Mas o erro do amor foi ter se considerado autossuficiente. Se amigos convidavam um ou outro para sair, em vez de ir e apresentar o namorado novo, eles diziam em uníssono, não, melhor ficar. E assim foram ficando. Cada vez mais solitários. O amor deles se trancou no quarto e ficou antissocial. O amor ficou mimado, o amor ficou narcísico, o amor perdeu a noção de mundo. O amor deitou na cama e ficou olhando o teto. (O amor ficou um chato!).

Foi assim que o amor deles cresceu mais do que deveria (relacionamentos acabam por amor de menos, também por amor demais). E ficou gordo. A ponto de Lucília, vinte e poucos anos, não aguentar mais carregá-lo em si, de modo que seu marido (casaram-se no civil, depois de algum tempo) teve que conduzir sozinho aquele sentimento morbidamente obeso.

Nessa disparidade de esforços, o tempo passou. Ele começou a se olhar no espelho e sentir-se velho, sozinho, a despeito de ter trinta e cinco anos. O mesmo não ocorria com Lucília. Ela – que até gostava da solidão – ainda sentia-se jovem, uma jovem mãe (o rebento veio logo após o casamento), e essa diferença geracional os distanciou. O que um queria, o outro não estava a fim. Sempre.

Foi a essa altura que o amor morreu e ficou jogado em cima do sofá. Mas o casal não reconheceu o corpo. Não assinou atestado de óbito. Não fez um enterro digno. Ambos empurraram a situação com a barriga (talvez por isso, perto dos quarenta, tenham começado a fazer crossfit – mas cada um numa academia). Enquanto isso, a filha (já uma adolescente) chorava pelos cantos num luto que não acabava nunca. O mau cheiro do cadáver dentro de casa a fazia lacrimejar.

Foi num dia de tristeza extrema da filha (a menina cortara os pulsos com lâmina de barbear), que o homem decidiu ir embora. Não tinha uma amante. Só estava exausto. Lucília também estava, mas feito um mosquito de luz depois do voo, perdeu asas.

– Vamos pensar uma última vez – ela propôs.

Era inverno e ambos se convenceram a recolherem-se em suas solidões e olharem-se sem automatismos. Foram dias de silêncio naquela casa-área-de-desova.

Dias depois, eles se reencontraram e, olhando-se nos olhos, souberam que finalmente era hora da cerimônia fúnebre.

Primeiro ele se abriu. Até as entranhas. Depois foi a vez de Lucília se abrir. Eram as palavras voando depois de semanas em hibernação.

E foi assim, abertos, que tiraram aquele corpo podre de dentro de si; era o amor em putrefação. Havia uma porção de ossos entulhados. (Com o tempo e a serenidade, poderiam remontar o esqueleto do que fora aquele sentimento, e deixá-lo à exposição numa das salas da memória).

Quando saíram do quarto, a filha finalmente conseguiu respirar. O cheiro funesto tinha desaparecido e a adolescente se alegrou genuinamente ao ver a rara alegria nos olhos de seu pai e sua mãe. Abraçou-os, como um padre a benzê-los:

– Eu abençoo essa separação, desde que nunca se separem de mim.

Os dois passaram as últimas semanas de inverno quietos. Cada um em sua nova casa, trabalhando, vendo televisão, olhando a rua sem coragem de ir lá fora. Mas no primeiro fim de semana quente da primavera, como se a separação tivesse acendido uma luz, ambos saíram dispostos a encontrar nova companhia (a filha incentivou a aventura). Meio desorientados, avançaram sobre a noite feito mosquitos avançando nas lâmpadas. Ele encontrou uma jovem num bar. Lucília encontrou um colega de trabalho. Voaram ao redor de suas novas lâmpadas, com a leveza de quem encontra a lua, até se cansarem e caírem nas camas exaustos, sentindo ao redor a lascívia da perda de asas depois do voo e a vontade de estar no casulo de um toque novo.

Foi assim que fertilizaram a terra onde nascem os afetos novos: com prazer. E só prazer.

De amor, por enquanto, nem o cheiro.

 

 

 

***

 

 

 

Substituição

 

Há meia hora atrás eu era criança, um menino pensando em como melhorar o time da Internazionale para vencer o Milan do meu vizinho, após quatro meses de derrotas humilhantes, no Play Station da lan house do Nino. E agora, deitada no braço do sofá com a saia erguida, a amiga da minha prima me pergunta, você tem camisinha?

Notei que ficou maior a sombra do meu corpo que pedalava com pressa – mais pressa que o Kaká quando puxava um contra-ataque no vídeo-game. Na verdade, até minha bicicleta pareceu uma CG 125 cilindradas; e eu, um homem feito e habilitado a pilotar rumo à farmácia, onde estacionei e perguntei, moça, tem preservativo?

A balconista estranhou. Não que alguém aos catorze anos não possa fazer sexo, mas ir à farmácia comprar camisinha, ainda mais sem constrangimento algum, lhe pareceu demais; meio a contragosto, ela apontou a prateleira, aquela ali, ó. As camisinhas pareciam guloseimas – descobri posteriormente que algumas são. Voltei com três. Era para o que dava meu dinheiro, que iria para a lan house do Nino, mas foi para o sexo.

No caminho, porém, entrei em colapso, como se meus pensamentos não coubessem na cabeça que os pensava. Me perdi pelas ruas que conhecia e, parado numa encruzilhada, sem saber pra onde ir, eu disse a mim mesmo, pensa, pensa cara, a garota tá à sua espera. Na dúvida optei pela esquerda – ainda opto hoje em dia. Então eu reencontrei a amiga da minha prima, e ela ainda estava de saia erguida sobre o braço do sofá.

Tentei ser romântico, passar o dorso da mão no rosto dela, coisas que eu tinha visto na Malhação. Mas logo a mão se perdeu em outras tramas. Se foi rápido ou devagar eu não sei. Quando temos prazer não nos preocupamos com o tempo. Sobretudo esse prazer primicial: a sensação da primeira penetração da vida é algo tão drástico quanto nascer, quando você sai de um corpo familiar; a diferença é que, sobre o braço do sofá, eu entrava num corpo estranho. Depois que saí pela última vez, nos abraçamos e ela disse, amanhã a gente faz mais, pode ser?

Sem saber que esse amanhã nunca chegaria, guardei as outras duas camisinhas como Maldini guardava a zaga do Milan, o time do meu vizinho. Vizinho que, quando me viu na rua andando a esmo – eu ainda revivia as lembranças recentes – me propôs: vamos jogar?

Respondi que estava sem dinheiro. Eu pago, ele disse, e já fez um gol rápido com Seedorf, porque eu ainda pensava no corpo da amiga da minha prima. Empatei com a classe de Figo; Pirlo fez de falta pra ele e logo em seguida meu Recoba provocou um alvoroço em sua zaga e colocou 2 x 2 no placar. Meu vizinho assustou-se: hoje você tá inspirado, não sei o porquê, mas calma que ainda tá no primeiro tempo. Só eu sabia por quê. Inexplicavelmente, consegui segurar o resultado. Eu mal pude acreditar que o jogo já estava no final (quando temos prazer não nos preocupamos com o tempo). Mas eu ousei, queria o improvável! Substituí Figo, o mais velho do time, e coloquei o jovem Adriano, o mais novo; tão novo que parecia uma criança perto dos outros. E foi Adriano que, após um chutão despretensioso, ficou sozinho contra o goleiro adversário. Meu vizinho e eu nos levantamos. De pé na frente da televisão 29 polegadas, parecíamos dois fiéis reverenciando um altar. Seu semblante era de desespero, porque eu finalmente poderia vencê-lo após quatro meses. Ainda há pouco eu era um adulto, pensando em como dar prazer a uma garota, e agora a vida se resumia a fazer valer a substituição do mais velho pelo mais novo, e, com os pensamentos novamente confortáveis dentro da cabeça, vencer aquele clássico italiano do Play Station, na lan house do Nino.

 

Jonatan Magella nasceu em 1990 e vive em Nova Iguaçu/RJ. Publicou Vidas irrisórias (contos, 2018) e Desculpe o transtorno (dramaturgia, 2019). Tem dezenas de contos em revistas e coletâneas nacionais. Organiza o evento literário Aleatórios.

 

 

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2 Comentários

  1. Ah! Sempre,Lucílias e o amor, inexistente e teórico na impaciente busca no alvorecer da vida. Parabéns, belíssimos textos e gozados gols…

  2. Bom demais!!1

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