Dedos de Prosa I

Dênisson Padilha Filho

 

Foto: Ricardo Stuckert

 

Nada disso eu vi

 

Papear com ele com a cabeça em seu ombro no quarto escuro. Jogar pega-varetas com ele, botão, dominó no chão do quarto, enquanto minha mãe chorava pelo draminha da tela ou sei lá por quê. Chovesse lá fora à noite e eu tinindo de febre e ele me empurrando limão quente com mel e alho. Nada disso eu vi. Devia ser um tigre e não se assustaria com qualquer gripe. Veio um tio de longe uma vez, irmão dele, ver minha mãe e me ver; trazer um dinheiro pra folgar as despesas. Não sei, não sei, era o que ele falava. A testa apoiada nas mãos juntas, como se rezasse. Não posso falar pela cabeça dele – ele dizia –; o que posso é vir aqui às vezes, trazer uma ajuda e passar o olho no menino.

Aquela droga de sábado de competições no colégio. Todo ano a legião de barrigudos atrás da bola, saltando, correndo pra vomitar no banheiro da quadra. Menos o meu. Nada disso eu vi. Até os 10 anos eu sofria a semana inteira antes do Sábado do Papai. Minha mãe corria dias antes até a diretoria; não sei pra quê. Uma professora tentou aliviar as coisas pra mim. O pai dele nunca participa porque trabalha viajando, viaja muito, crianças. Uma mentira que salvasse meu couro pra sempre.

Mas o que importava mesmo era na classe, ali na conversinha paralela. Quando no recreio o assunto era o sábado de competições, eu ia olhar as plantas, ou me encostava nas rodas de figurinhas. Eu morria uma vez por dia, cada dia da Semana do Papai, até que o sábado passasse e os meninos com pai e sem pai voltassem a ser uma coisa só.

Dividendo, divisor, quociente e resto. Minha mãe não entendia bulhufas de contas. Ele devia manjar disso e até me daria uma força na interpretação de textos. Mas nada disso eu vi.

Eu e seu pai lá na roça, quando a gente era pequeno, a gente armava arapuca e alçapão pra pegar passarinho. Aquele meu tio irmão dele chegou uma vez já contando isso com uma gaiola na mão. O azulão morreu em dois dias. Acho que minha mãe o envenenou.

Abrir no chão da sala na sexta à noite os pacotinhos de chumbada e anzol, colocar linha nas varas, cortar isca pra sábado bem cedo a gente ir pescar na Lagoa dos Patos, bem ali no bairro. Passar de volta antes do meio-dia com a cordinha de traíra e acará. Eu e ele desfilando na frente dos prédios. Mas nada disso eu vi.

A gente bem que podia se rivalizar entre Zorro e Lone Ranger, ou entre Silver e Escoteiro, mas eu almoçava com o prato no colo vendo Zorro e de noite – antes de descer as pálpebras – não dava pra recontar o episódio no vazio, pra ninguém.

Lá em meus 4, 5 anos, minha mãe tinha que responder nervosa e sem graça a tudo que eu quisesse saber dele. Agora tá perto de ele voltar, mãe? Quando não aguentou mais, ela escondeu um porta-retrato em que ele me segurava no colo ainda de fraldas. E assim ela me explicou tudo sem abrir a boca. O resto foi silêncio e choro.

 

Dênisson Padilha Filho (1971) é escritor e roteirista de audiovisual. É Mestre em Cultura e Sociedade pela UFBA. Recentemente lançou “Um Chevette girando no meio da tarde” (Mondrongo, 2019, contos). É autor de “Eram olhos enfeitados de Sol” (Penalux, 2017, novela), “Trilogia do asfalto” (Editora P55, 2016, contos), “O herói está de folga” (Kalango, 2014, contos), “Menelau e os homens” (Casarão do Verbo, 2012, contos e novelas), “Carmina e os vaqueiros do pequi” (2003, romance) e “Aboios celestes” (1999, contos). Participou de algumas antologias e tem textos publicados em diversas revistas literárias.  Foi vencedor do Prêmio Internacional Cataratas de Contos- 2015.

 

 

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