Dedos de Prosa I

Marcus Borgón

 

Foto: Joice Kreiss

Foto: Joice Kreiss

 

UM PESADELO ENTRE OS DENTES

 

Flanar distraidamente é um tesouro. Perder-se em pensamentos. Absorto. O corpo em piloto automático. E ao voltar à tona, encontrar-se no rumo certo. Sem desvios enganosos. Mas desta vez, não. Devo ter exagerado nos devaneios. O caminho era desconhecido. Tudo me parecia estranho, remoto. Estradinha de cascalho. Lembrança distante. Não tenho certeza. Pode ser o cheiro de barro molhado. Cinzeiros de argila na escolinha. Meu pai os recebia com sorriso medido. Talvez antevendo o enfisema que lhe consumiria os pulmões. O cansaço sobrepesava minhas pernas. Não escutava nada. Nenhum rumor de humanidade. Só minhas próprias pisadas naquele chão pedregoso e escorregadio. Sequer lembrava de onde parti. O sapato deve ter sido emprestado a mim. Me escapava o calcanhar a cada passada. E estava sem meias, coisa incomum. Depois de quase uma hora andando por aquela trilha rudimentar, avistei uma luz acesa. Era um bar, vazio. Um homem de idade avançada cochilava atrás do balcão. A TV ligada mostrava o padrão em cores. Há tempos eu não via aquilo. Os canais costumam varar a madrugada exibindo programas religiosos. Pastores negociando terrenos no céu. Ou prosperidade ainda na terra. Pagamento adiantado, irmão. Glória a Deus.

Dei umas batidinhas no balcão, como fazemos à porta. O velho acordou e me olhou com espanto. Corri a mão nos bolsos, mas não os achei. Usava uma calça sem bolsos. Ele se levantou, e perguntou se eu estava com sede. Respondi que sim, mas não tinha dinheiro. Eu não queria entrar em detalhes e explicar que não sabia o que fazia ali. E além de perdido, ainda estava sem nenhum documento. Ele me serviu uma água mineral em garrafa de vidro. Olhava desconfiado, me examinando de cima a baixo.  Isso me deixou um pouco tenso. Bebi a água lentamente, aos tragos. Num giro de pescoço, corri os olhos pelo ambiente. Examinei as paredes a fim de encontrar algum indício que pudesse me localizar no mapa. Deparei com um telefone público, vermelho. Daqueles que utilizavam fichas.

“Ainda funciona?”

“Claro. Quer ligar para alguém?”

Respondi de modo afirmativo, meneando a cabeça. Temia que ele me perguntasse se eu estava perdido. Certamente eu exibia um semblante extraviado. Uma cara de quem não estava ali. Como se minha alma e meu corpo tivessem se desencontrado. E foi exatamente o que ele quis saber. Meio ressabiado, achei melhor negar. Inventei que estava numa festa. Aborrecido com a bebedeira geral, resolvi cair fora antes do fim. Precisava apenas entrar em contato com alguém que pudesse me buscar, ou chamar um táxi.

“Era uma festa à fantasia?”

Esbocei um sorriso. Julguei que fosse uma piada. Ele olhava detidamente para minhas vestes. Eu não havia me tocado. Estava usando uma espécie de farda. Cinza, semelhante a do pessoal de “serviços gerais”. Uma sigla bordada na camisa, SSP. Uma mentira nunca vem sozinha. Sempre precisa de outras para sustentá-la. E no arrepio daquele clima inamistoso, forjar uma farsa plausível não era tarefa das mais fáceis. Peguei a primeira roupa que vi pela frente, falei. Dito assim, mais parecia egresso de um grande bacanal. Arrumei uma piscina, churrasco e todo mundo em trajes de banho.  O cenário estava devidamente montado. Era só evitar os detalhes. É neles que a gente tropeça.

Ele desligou a TV e ligou o rádio numa estação AM. Pediu para que eu ficasse à vontade. Iria lá dentro e já voltava. Sua voz gutural ecoava por trás dos engradados de Crush. Conversava com alguém que, ao contrário dele, não se podia ouvir a voz. Tentei escutar a conversa, mas o rádio atrapalhava. O locutor esbravejava contra o comunismo, subversivos, terroristas. De fundo, o hino nacional. Ele voltou, expressão ainda carregada. Disse que não passava táxi àquela hora.

“Eu aceito aquela ficha que o senhor me ofereceu.”

Eu não conseguia completar a chamada. Tornei a perguntar se aquele aparelho funcionava. Até o início da noite haviam feito várias ligações nele, me respondeu. Após dezenas de tentativas, eu desisti. Meu dedo estava doendo de tanto de discar. Agradeci e deixei a ficha sobre o balcão. Ele continuava a me fitar de modo inquisidor. Eu mal conseguia disfarçar o incômodo que aquela situação estava me causando. O céu estava apagado. Nenhuma estrela ousava cintilar. O tempo se arrastava. Há quem acredite que universo conspira a seu favor. Ou a seu revés. A segunda opção parecia se anunciar. Tudo estava harmoniosamente combinado contra mim. “Fique atento aos sinais” – me disse minha mãe, poucos dias antes de atear fogo ao próprio corpo.

“Tem certeza que discava o número certo? Parecia ter número demais…”

“Tenho sim. O senhor não teria um celular para me emprestar?”

Ele apertou os olhos, como se não tivesse entendido o que eu havia perguntado. Um telefone celular, o senhor não tem? Voltei a dizer, frisando bem cada palavra. Continuou me encarando, cenho franzido. Olhou para o relógio e, de forma um pouco áspera, respondeu peremptoriamente: “não”.

Eu cogitei sair dali. Continuar andando, ver se encontrava alguma rodovia, pista, canal, o diabo que fosse. O embaraço das mentiras me corroía. Não conseguia mais encará-lo. De repente, um barulho de motor. O dono do bar saiu de trás do balcão. Ficou perto de mim, em posição ostensiva. Apesar de bastante nervoso, me recostei no balcão. Queria aparentar tranquilidade. Tomei mais um gole de água. Quem sabe, alguém que pudesse me dar uma carona.

Dois policiais entraram. Sem falar nada, vieram em minha direção. Coloquei as mãos na cabeça e perguntei o que estava acontecendo. Me mandaram virar de costas. Fui revistado. Em seguida, me algemaram braços e pernas. Conduzido ao camburão, percebi que era inútil fazer qualquer questionamento. Nem eu mesmo sabia o que fazia naquele lugar, àquela hora. Ir a uma delegacia não era mau negócio. Assim eu saberia onde me encontrava. Poderia ligar para um conhecido, me identificar. Estaria tudo resolvido. Do fundo da Veraneio, ouvi o dono do bar falando com os policiais:

“É do São Pedro, com certeza. Procurei saber se era funcionário, mas ele inventou um monte de coisa. Falou que tinha saído de uma festa numa piscina, ligou para um número inexistente e perguntou se eu tinha telefone celular.”

“Telefone o quê?” – indagou um dos guardas.

“Telefone celular”.

Caíram na gargalhada. Um dos policiais disse que não haviam recebido nenhum telefonema de “lá”. Mas tudo indicava que era mesmo um “fugido” do São Pedro.

Sim, a sigla bordada na minha camisa. SSP. Era óbvia a constatação: as duas últimas letras significavam São Pedro. Mas, e o primeiro “S”? O que significava aquele primeiro “S”? O carro arrancou em alta. Comecei conjecturar as possibilidades. Salão? Sindicato? Simpósio? Seminário? Com assombro, a incógnita se desvelou. Um portão imponente se abriu. Acima dele, a inscrição em ferro trabalhado formando um arco. Entrei em pânico só de pensar. Injeções, choques, camisa-de-força. Huxley falou em abrir as portas da percepção. Eu tive a percepção das portas abertas. Deram um enorme vacilo. Certas oportunidades não cruzam duas vezes o nosso caminho. Haviam me tirado as algemas. Deixaram o fundo do camburão aberto. O portão, escancarado. A liberdade gritou meu nome. Saí em disparada. Pela frente, um blecaute absoluto. Nem sei se havia algum caminho pronto. O breu não oferece alternativas, é a ausência delas. Correr de olhos fechados era mais seguro. Eu podia vislumbrar o trajeto. Dar lume à fantasia é a melhor forma de evitar as armadilhas da escuridão.

Não sei dizer por quanto tempo corri. Só parei quando estava esgotado. No limite das minhas forças. Ao abrir os olhos, uma estradinha de cascalho. Cheiro de barro molhado. Aula de artes no primário, trabalhos em argila. Meu pai carcomido pelo vício. Tudo me era incrivelmente familiar. Aquela claridade lá adiante. Uma espelunca metida a vintage, bar 24 horas. Atrás do balcão vou encontrar um velhote de cara amarrada, tenho certeza. Enfim, posso respirar aliviado. Achei o caminho de casa.

 

Marcus Borgón colaborou com a revista de cultura e literatura Verbo21. Publicou textos em jornais, sites especializados em literatura, e coletâneas de contos. É autor da novela juvenil O Pênalti Perdido (P55 edições, 2016).

 

 

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2 Comentários

  1. Bárbaro! Adorei a sua construção, Borgón! Dei umas boas gargalhadas, senti dor, empatia com a personagem. Bela escrita! Quero mais! Parabéns!

  2. Valeu, Rita! Mais uma vez, te agradeço pela leitura e pelo retorno.

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