Dedos de Prosa I

Márcia Barbieri

 

Ilustração: Marjorie Duarte

 

O voo silencioso das corujas

Para E.T.

 

Assim começava minha autobiografia: Eu gosto das aves de rapina. Eu herdei da minha mãe esse gosto um tanto funesto. Mas, só há pouco tempo descobri que corujas são aves de rapina. Às vezes, na infância, durante a catástrofe, e naquele tempo quase tudo era catástrofe, frequentemente me pegava observando o voo das corujas. Não me lembro das coisas que passavam naquele corpo de criança, sem músculos e com tetas invisíveis, porque não sabia nomear e sentimento sem nome perde o rumo, os adultos se referiam àquelas horas como a época das tragédias. Não sabia o que aquilo significava até o meu corpo espichar e eu soar tão trágica quanto todos os adultos da minha infância. De repente me dei conta que os relógios não contavam horas, contavam desastres.

Mãe quando voltou de uma de suas internações recorrentes sentou ao meu lado e disse: eu também gosto do voo silencioso das corujas. Nesse dia tive minha primeira epifania (o nome descobri muito depois), percebi que não eram as corujas que me fascinavam, mas o silêncio das suas asas. Mais tarde percebi que não eram os homens que me despertavam paixões, era a escassez de suas bocas e uma certa convicção que saia delas. Mais tarde ainda percebi que o amor também chegava silencioso antes de abocanhar suas presas… Embora, de fato, talvez nunca tenha encontrado o amor. Contudo, um dia quase trombei com ele…

– Quando te vi chegar fui assaltada por um espanto.

– Eu gosto da palavra espanto, pode ser tanta coisa e não sendo nada ainda nos faz boquiabertos.

– Sim, essa palavra parece nome de animal selvagem.

– Quer uma carona? Talvez possamos fazer desaparecer o espanto, conversaríamos e nada mais nos espantaria.

– Vai em qual sentido?

– Para o norte e você?

– Para o sul.

– Sendo assim, já que iremos em direções opostas, podemos ir juntos.

– Não nos perderemos ou desviaremos do nosso caminho?

– Acredito que não.

– Tem certeza?

– Como poderia?

– Você fala com um tanto de firmeza.

– Na vida precisamos certa entonação, fingir alguma convicção, mesmo que nunca tenhamos esbarrado com ela.

– Não te parece muita arrogância seguirmos juntos se procuramos lados opostos?

– Nascer já não é uma arrogância?

– Quem sabe? Há um fantasma encarnado no ventre de cada mulher, por vezes, nos assombra.

– Se desenvolver dentro da segurança do ventre da mãe não te parece pura arrogância?

– Talvez um espanto…

– Os pássaros não te soam bem menos pretensiosos? Afinal, eles se desenvolvem na fragilidade do ovo…

– Também não há alguma arrogância no prenúncio do voo?

– Estamos numa bifurcação, acho que agora não é mais possível seguirmos juntos…

– Tem certeza? Não há nada a fazer?

– O que acha de dobrarmos o mapa?

– Dobremos o mapa.

 

Márcia Barbieri nasceu em Indaiatuba, São Paulo, em 1979.  Formou-se em Letras pela Unesp e é mestra em Filosofia pela Unifesp. Foi uma das idealizadoras do Coletivo Púcaro, do canal Pílulas Contemporâneas e do projeto Pinot Noir Literatura. Publicou os livros de contos “Anéis de Saturno” (ed. independente, 2009), “As mãos mirradas de Deus” (Multifoco, 2011) e “O exílio do eu ou a revolução das coisas mortas” (Appaloosa, 2018). Entre os romances figuram “Mosaico de rancores” (Terracota, 2013) lançado no Brasil e na Alemanha (Clandestino Publikationen, 2016), “A Puta” (Terracota, 2014/Reformatório, 2020), “O enterro do lobo branco” (Patuá, 2017), finalista como melhor romance de 2017 pelo Prêmio São Paulo de Literatura 2018 e “A casa das aranhas” (Reformatório, 2019), finalista do Prêmio Guarulhos e semifinalista do Prêmio Oceanos.

 

 

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