Dedos de Prosa I

André Mitidieri

 

Ilustração: Paula de Aguiar

 

CINCO EPISÓDIOS À PROCURA DE UM NORTE

 

NA ANTIGA FRONTEIRA OESTE

 

As inscrições quadrangulares de uma incomum calçada e a conhecida placa luminosa da Rua Vinte de Setembro confirmam o endereço: número 1991, Edifício Coronel Cabrita, apartamentos SS/T/01. Após dois lances da escada em mármore verde, a porta de mogno. Entalhes de anjos, querubins, cavalos alados, centauros e cenas da vida campestre.

No meio de tudo, uma guirlanda, flores artificiais e ramos de trigo, pintalgados dum esmaecido brocal na cor do cobre. No seu interior, discreto cartão em letras góticas, douradíssimas, gravadas em baixo-relevo: “Bem-vindos a este humilde rancho, onde não falta o mate amargo e o ombro amigo”.

Ao centro da moldura de prata, contendo arabescos, a campainha. Dois toques, e soa um mugido de vaca, bovinos ou similares. Ao ruído de uma chave na fechadura, segue-se o movimento circular da maçaneta alaranjada, fosforescente.

Em cima da porta, o arranjo metálico tilinta, pequenos sinos dobram. No saguão de entrada, multiplica-se em biombo de espelhos a pequena bailarina. Dança o Tema de Lara sobre círculos imantados de um vistoso porta-joias.

Entre as duas portas no velho estilo faroeste, da cozinha e da sala de jantar, o corredor em cotovelo, onde se enfileiram as fotografias. Retocadas por tintas de coloração primária, imagens unidas de um casal em close-up. Amarelados instantâneos da casa de campo avarandada e do homem de enormes bigode e chapéu. Em preto-e-branco, um retrato de casamento: a mão da noiva sob a do noivo segura a faca de serra, acima do segundo andar do bolo. No terceiro, um par de açucarados pombinhos.

Num verde-oliva destingido, e à frente do esquadrão em continência, o militar bronzeado, com óculos de sol, exibe medalhas no peito a estufar-se. Em tons pouco definidos, a dupla de meninos sorri, sem os dentes da frente, atrás do globo terrestre. Como pano de fundo, a bandeira nacional e o estandarte azul-anil, “Lembrança da Escola do Divino Espírito Santo”.

Lustrosamente coloridos, rapazes em trajes menores, e a dezoito por vinte e cinco, circundam o pôster da Cleópatra seminua. Pernas roliças, escadinhas no abdômen e bronzeado reluzente, no meio de um mar de plumas e tecidos bordados a lantejoulas, em degradês de verde.

Ao fundo do corredor, na grande sala de móveis brancos, laqueados, destaca-se a lareira, de rosáceo granito. Sobre ela, cabeças de cavalos em puxadores de brasa, tubos de vitaminas e a Vênus em bronze. Seus braços amputados, sem pés nem cabeça, mas com o triângulo, entre as pernas, bem definido. Raros pelos crespos, a descerem do ventre liso, rumo à orquídea entreaberta, pronta para estremecer e abrir-se ao primeiro toque.

Impaciente, meto a boca na flor da deusa. Por meio desse pitoresco interfone, comunico-me com a dona da casa e espero. Batendo a cinza do quinto cigarro no cu de ferro de um Hermes grego.

 

 

***

 

 

UM TESOURO TODO SEU

 

Se a minha anfitriã não existisse, de qualquer forma, seria inventada por algum oficineiro em busca de protagonista. Ou de protagonismo.

Importa que existe. De fato, seu guarda-roupa não delata uma perua a rigor. Modelitos mais casuais, no âmbito cotidiano: flanelas e camisetas tamanho L, uma que outra estampa xadrez, jeans e jardineiras, nem amassam. Do outro lado, à espera do ferro de passar, as golas plissadas, pantalonas com vinco, saias mini rodadas, de cintura alta.

Sempre de classe, mas sem os excessos da década anterior, revisita blusas de seda, lã e linha, jaquetas e casaquinhas bem cortadas. Todas em cabides individuais. As cotidianas, bem à frente; as festivas, mais ao fundo.

Ainda separa roupas citadinas da indumentária agreste. Subdivide-as entre as seções matinal, diurna e noturna. Sem contar com o nicho das ocasiões mais assim: o baile das debutantes, carnavais binacionais, o sarau das prendas, as exposições agropecuárias, de Esteio e Palermo (de Buenos Aires, não da Sicília).

As vestes de gala nem serão descritas, congêneres encontram-se nos catálogos de JP Gaultier e do Alexandre, aquele, que tem o mesmo sobrenome da romancista polaca. Sete fantasias, por sua vez, de grega ou de egípcia, devido a alguma crendice, talvez, e com os brilhos cabidos, ornamentam uma arara de aço inox, que fica no canto bem do fundo.

Na fileira anterior, tem que ver, os panos da campeira: ponchos de lã crua e palas de seda pura; as bombachas com casinha de abelha nas laterais. E os cintos de todas as cores, no couro ou no tecido, com fivela ou sem fivela, guaiacas, inclusive.

Tampouco faltariam peças do chiripá, uma grande tira que se amarra na cintura, como saiote ou fralda, a canga dos gaúchos. Quem não tem praia, lagarteia ao sol nas coxilhas, nem fica com areiazinha entrando nas partes.

Caso à parte, um outro quarto inteiro, onde guarda, praticamente, só as bolsas e os calçados. Não vou me debater, porém, no meio de cabides, sapateiras, cobertores, sob os trinta e tantos graus do verão fronteiriço, para expor a sua incontável e mais particular coleção.

Nada nosso, tudo dela. Como os armários embutidos, outros aposentos, o big apartamento, a laje, os ladrilhos, pedrinhas; falsos brilhantes, brincos iguais ao colar do anjo, um bosque, a piscininha; Amor, bombons finos. Dona do carnaval, da coisa toda, menos da voz que narra. Por enquanto.

 

 

***

 

 

UMA FIGURAÇA EM BUSCA DE BIÓGRAFO

 

Desvela-se um fantástico show ao vivo; a vida como ela é. Nada fútil segundo pressupunha. Nem uma existencialista com toda razão, nem a rebelde dos anos dourados. Não queimaria sutiãs, tampouco haveria de pintar a cara e se vestir de preto, tipo carola andaluza.

No lado inverso, como visto pelo closet e se verá pelas melenas, tende para o arco-íris, multicor. Nada mais, nada menos, do que uma fábula. Em carne e osso — que figura! — as curvas sinuosas, o traseiro empinado, as pernas sólidas, meio arruivada.

Os prontuários do doutor Resende, segue à risca, paciente. Toma uma canja revigorante, ou caldo, ou ambos, talvez, ou suco, ou os três, quando acorda, lá pelas dez da matina. E o chá [?] verde num coité que ronca, sorve pelo canudo de metal, durante o resto da manhã, os pauzinhos boiando ao final de mais um conto, se é que há.

Às vezes, acrescenta tília ou erva-cidreira, anda doente dos nervos, mexeram na sua poupança. Congelada pelo governo, pense aí, quadro depressivo, crises de ansiedade. Mesmo com a dieta rica em antioxidantes, betacarotenos, gafanhotos, acha-se meio desmemoriada.

Não sendo chata para comer, nunca passa fome, ainda fica longeva. Prescreve o médico ortomolecular, lá de Resende, como dito, e papa lindo, a figurona, lesmas hermafroditas, lagartas de cartucho, o chá de cavalinha, a tanajura que cai, cai, na panela de gordura insaturada.

Caramujos da maçã, caracoles do café, com sal rosa do Himalaia, caralhinhos de licor, os caracóis dos seus cabelos, até o louva-a-deus morto no pós-coito. Tudo mastiga devagar, mas em refeições ligeiras, entre o desjejum e a comida do meio-dia. O cardápio todinho na ponta da língua, porém se cala quanto aos homens com os quais se enrolou.

Abotoaram o paletó, alguns. O primeiro, na hora do bem-bom/bem-tudo que, com ele, poucos minutos, nada bons. Esta mulher daqui pra frente dá uma pausa no seu relato de cunho biográfico, mas não quer voltar atrás, não é carangueja na enchente da maré. Está mais para uma louva-deusa.

 

 

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IN MEDIA RES

 

Meia rês, manda carnear, para os filés a cavalo, que costuma oferecer nos almoços sempre tardios, com batatas fritas mais legumes frugais. Ao revezar o menu, carreteiro de arroz vermelho, feijão mexido na pimenta da braba e as bananas da terra baiana.

Já na sobremesa, pode nem alcançar a metade do assunto de grave urgência para cuja resolução convocou-nos a opinar durante o aperitivo. Se bater um soninho, ou aquela fome mais tarde, ceva outra vez o verde mate, serve mix de nuts, os chips de coco, uns chocolates lá de Uruçuca.

O lauto jantar traduz-se num caranguejo inteiro acompanhado de vinho tinto, ervilhas poás e cenouras baby ao molho campanha. Na ceia da madrugada, o espumante nosso de cada dia, para alternar entre a salada de pepino com frango assado e o quefir de mamão cassis na baguete de aveia. Talvez por isso, não enrugue, é o que aparenta, colagenosa.

Adepta do fogo baixo e da comida lenta, busca não se estressar muito, eu que o diga. Altas horas pelo Beco dos Ricos, até agora no Bar Pirâmide, a biografada discute comigo os pormenores desta narrativa por fazer. E havia proposto só uma espichadinha nas redondezas, perto das doze do meio-dia, para uns três chopes, no máximo, com intuitos de encerrar o papo. Mas esse, como a saideira, nunca chega ao fim, pletórica que só!

 

 

***

 

 

ABRE A JANELA, FORMOSA MULHER

 

Vinha direto da balada. Belíssima como ela só, e uma novela brasileira. Quem não soubesse, presumiria que, de tão nos trinques, recém saísse do cabeleireiro. Após umas vinte e quatro horas na rua, mal tomou uma ducha, o suco de couve, e mate quente até ficar verde, umas duas garrafas térmicas.

A mochilinha das costas, trocou pela bolsa-baguete; do coque, fez um rabo de cavalo. Sente-se meio sufocada, quando sufocado, deveria estar eu, ainda que já fora do armário.

Para respirar melhor, aproxima-se da veneziana pintada de amarelo-ouro, com vista para a Via Pirandello. Rápido, rapidíssimo, escancara dois postigos. Iluminada e policromática, faz fusquinha para uns guapos de bom-porte, passantes. Quanto à plena modernidade que ostenta na cabeça, dá as tintas: Anjo-Caramelo de tonalizantes temporários, mais Cereja do Peloponeso, às custas de Casting 3.1, tintura sem amônia.

Em um ponto, indomável, suas posições modernas orientam-se por determinados limites. Causam-lhe nojo quaisquer clones, inclusive uma telenovela com esse nome. Para que não a confundam com uma cópia mal feita, a personagem em busca de si-mesma como uma outra quis porque quis deixar um pouco da vida para virar páginas impressas.

Nem bem escolho novo ângulo a fim de melhor observá-la, espicha o olho para a tela do computador, que acabou de inicializar-se. E ri de gaiata ao ver um dos seus mimosos apelidos a luzir na mais recente das pastas que vou abrindo neste Word for Windows.

 

André Mitidieri: Pobre bicha na estrangeiridade do lugar e do momento. Professa e pesquisa a nebulosa biográfica, as literaturas transviadas, mas nem tão só. Nasceu na terra do Quintana, mas ama a Baía de Todos os Santos. Oferece em primeira mão, nesta edição de aniversário, super agradecendo à Diversos Afins, os textos que integram a trilogia Eterna miss, a ser lançada em outubro, após 25 anos de engavetamentos, extravios, miles de disciplinas, artigos publicados, ressacas, recomposições, ejós & etc.

 

 

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1 comentário

  1. Parabéns

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