Dedos de Prosa I

Helena Terra

 

Foto: Fátima Soll

 

Eu nunca sonhei com você

 

Eu estava no lado de dentro. Ele estava no de fora. E entre nós havia a vitrine estreita e com muitos livros.  Quase todos cinzas e do mesmo tamanho, encaixados uns nos outros como se fossem pedras de uma calçada. Uma ideia, em um certo sentido, interessante e poética: no meio do caminho tinha uma história e mais outra e mais outra. E talvez, em algum lugar do futuro, no meio do caminho, poderia haver uma única para nós dois. A história de A e de A. De Ana e de André. Vamos fazer de conta de que são esses os nossos nomes. Juntos. Não separados como estávamos. E separados, assim tão perto, nos chamávamos de Lígia e de Gilberto e nos conhecíamos vagamente de uma rede social. E, na rede social, ele não estava com ela, não como ali do outro lado da vitrine. Se bem que ali, apesar da proximidade física, havia também algum tipo de espaço divisor entre os dois, e eles pareciam mais uma dupla de irmãos do que um casal.

Lígia estava no lado de dentro da livraria, sozinha, com o mesmo enigma e beleza que em suas fotografias, folheando um livro. Três novelas femininas, do Zweig. Eu estava no lado de fora, parado em frente à vitrine, fingindo grande interesse por alguns títulos porque eu queria vê-la, porque eu estava fascinado por vê-la ao vivo e em cores e queria que ela me visse. Se ela me visse, eu poderia sorrir e acenar e, quem sabe, dizer: ei, Lígia, sou eu, o Gilberto, da internet, vamos tomar um café? Mas em uma outra ocasião, infelizmente, porque, naquele final de tarde, a minha mulher, que há semanas, meses, anos me beijava como se eu não tivesse língua, dentes e um céu na boca e, noite após noite, desencorajava o meu corpo, estava comigo. Não deveria. De acordo com suas próprias palavras, fazia o enorme favor de me acompanhar para ver mais um desses filmes cabeça quando ela poderia estar em casa, de pantufas e de pijamas, bordando mais uma almofada.

Eu vi o exato instante, não foi impressão, em que os olhos do Gilberto não conseguiram mais se focar nos livros para se fixar em mim. E com tanta força e cobiça que eu poderia dizer, como a protagonista de uma das poucas séries de TV que tive paciência de ver: eu ouvi sua mente me observando. E eu, em vez de sair de seu campo de visão ou de apontar o dedo e de falar, o que é isso, abusado, você está acompanhado, como eu faria, já fiz tantas vezes por sororidade às outras mulheres, mexi nos meus cabelos, acariciei o meu pescoço e sorri. Sim, sorri, oferecida, fêmea, ignorando à minha falta de ética e os riscos do jogo em que eu estava entrando. E ele viu que eu o vi e que entendi o seu desejo. E, talvez, ela tenha visto e entendido também. Ou pressentido o perigo, porque parou de fuxicar no celular e o puxou pelo braço. Vamos, Gilberto, ela pareceu ter dito. Fique, não vá, venha, eu pensei.

“Eu nunca sonhei com você, nunca fui ao cinema, não gosto de samba”, cantarolei sem me mover um centímetro antes de responder a minha mulher: não, ainda não está na hora, vá indo na frente pegar uma água, eu vou passar no banheiro e depois quero comprar um livro. Dois, três, cinco, na verdade, quantos fossem necessários para que Lígia tivesse tempo de vir falar comigo ou para que eu pudesse me aproximar dela. Ou, sei lá, que o destino nos desse um empurrão maior do que já estava nos dando, porque as chances de nos encontrarmos, de novo, eu sabia, sempre soube, eram mínimas, ainda mais assim, com Lígia sem ninguém no entorno, com nenhum outro homem tentando invadi-la, transpassá-la. E foi aí que ele surgiu, do nada, pelas costas, em um bote territorialista, colocando as mãos peludas sobre os olhos delas, cheirando os seus cabelos longos e escuros e falando, em seus ouvidos, as palavras que eu não pude dizer.

 

Helena Terra mora em Porto Alegre. O seu interesse, despertado na infância, por literatura a levou a cursar a Oficina de Criação Literária, do escritor Luiz Antonio de Assis Brasil, na PUC/RS e a frequentar os grupos de produção e de leitura crítica da professora Lea Masina. Em 2013, publicou o seu primeiro romance: “A condição indestrutível de ter sido”. De lá para cá, participou de antologias e organizou,  com o escritor Luiz Ruffato, a antologia “Uns e outros”. É coautora na novela “Bem que eu gostaria de saber o que é o amor”, publicada em 2020, com o ator e escritor Heitor Schmidt. E acaba de lançar o seu segundo romance “Bonequinha de Lixo”, pela Diadorim Editora.

  

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1 comentário

  1. Amei do início ao fim.

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