Dedos de Prosa I

Susana Fuentes

 

Ilustração: Bianca Grassi

 

Redenção (à luz de Tarkovski e Bach)

 

A água escorre sem pressa de correr o mundo. O rio respinga gotas no vestido e quero tornar-me rio para dar petelecos na água. Vejo o céu e quero ser assim, tão azul (e garboso e tranquilo). Mas, quando chove, passo a achar que o mais belo é a chuva e aí despenco do céu (e visto-me de branco pérola). Embrenhada no verde, quero ser pedra, árvore, e servir de anteparo a esta chuva que tomba. Acaricio a chuva porque ali vejo seu rosto. As lágrimas de seus olhos serpenteiam frouxas nas bochechas enxutas. Gostaria de impedi-las em seu percurso, para lhe conservar a face seca. Gostaria que meus afagos a fizessem sorrir, para ver um riso frouxo traído na boca. Ao invés, sua língua escapa pelos lábios entreabertos e de lado colhe uma gota, e outra, aparando os pingos já em ritmo de enxurrada.

Quando estou no seu jardim, aí quero tornar-me chuva. E, como chuva, devolver à sua pele a festa de suas mãos segurando a minha, quando um dia estive doente e você me trouxe o conforto absoluto de um afago nos dedos tristes sem pouso. Você colheu estes dedos no ar, sua mão em concha inventou-lhes um abrigo já que iam em sua direção. E eu caberia inteira ali, por toda a noite, por toda uma vida, vida tão longa como a noite não dormida quando senti a ausência desta mão. Tão doce como a noite em que você esteve em meu sonho. Noite inventada para que eu coubesse na vida mesmo sem ter você por perto.

Como você ama lírios, flor-de-lis, açucena, para sempre estarei à sua mesa. E você, longe, olhar habitado por uma chama, me fará sorrir – a cada vez que a vela brilhar contra a tampa da panela. Tampa que serve de anteparo à concha e sobrevoa a mesa… para não desperdiçar nada sobre a toalha. A tampa em suas mãos recolherá os pingos e guiará a concha – com pedaços de maxixe, inhame, batata doce, baroa e aipo – em segurança ao colorido dos pratos. Como uma flor no jarro sobre a mesa, eu escutarei as conversas. Uma só mesa para o avô e para o neto. Como era você?, a criança perguntará então. E eu apontarei, com as palavras, para a chama veloz de seus olhos despertos.

 

 

 

***

 

 

 

Suíte

 

Numa Suíte, a Sarabande desliza sem pressa… e ocupa o centro
do poema. É como se dissesse: Não vou suprimir os floreios,
só encurtá-los.

 

A beleza de Sarabande: Beleza que cresce com o Tempo. Sarabande se entrega ao Tempo e ele a toma pelas mãos e diz: você será minha eleita. Gentil, ela se inclina como dama e aproveita o instante para admirar as margaridas – como são belas nesta época do ano, como são queridas!

 

*

 

Sarabande, no esforço de ocupações singelas: trocar a água dos colibris, limpar o cantinho do espelho, varrer a soleira da porta. A pele salpicada de suor sob os olhos. Femina, com um paninho, chega até bem perto e a conforta.

Intermezzo dá de ombros, fita Sarabande… e desfaz de Femina o encanto, em zombaria: veja esta, que mimos inventados para chegar até você.

 

*

 

Zorina olha Sarabande de perto. Tomada de recato, nem se atreve a tocá-la: olha, tão transtornada, que se esquece ali, perdida. E esquece tudo que pensou quando não estava tão perto. Quando podia respirar.

 

 *

 

Sarabande fala e não para de falar. Todas escutam, atentas: Zorina, Apogée, Intermezzo e Femina. Do que fala Sarabande? De meninices. De matreirices. E ela só faz lembrar e deslembrar.

 

*

 

Sarabande, a curva dos seus dedos aponta para fora, para o alto. O que caberá em seus pensamentos, os que desconheço, e os de que faço parte? De pé, junto ao portão, vejo partir suas lembranças. Levam-me até a menina radiante de vida. Sarabande ainda pequena. Menina que já passou pelos caminhos que percorri (e muitos, muitos outros) tantos passos à frente, será que entrei por algum atalho, para agora lhe encontrar na mesma estrada? Quero apresentá-la à Noite, mas ela já conhece seus olhos, seu nome. O Sol, a Chuva, o Dia, chamo para que eles a conheçam, mas eles me respondem: quem, aquela? Já a temos entre nós faz dias. Anos. Você nem tinha nascido. Falo de Sarabande com susto de perdê-la, e chamo a Vida para que a conserve a meu lado. A Razão manda que eu me cale, mas o Amor, que olha tudo com bons olhos, acha natural que eu esteja deste lado do portão e me convida ao jardim onde vivem, então, as cinco rosas: Zorina, Apogée, Femina, Intermezzo e Sarabande.

 

*

 

Zorina, para Sarabande: se eu pudesse alcançar suas folhas…
Apogée, bem prosa: afasto suas mechas curtas, Sarabande, porque aí chego até seus olhos.
Intermezzo: sopro a brisa que passa, Sarabande – porque aí beijo as suas pálpebras.
E Femina, num susto, embola o cobertor: não se resfrie no sono, Sarabande, está bem?

 

 *

 

Femina se espanta quando Sarabande conta uma história. Se fala da menina de cabelos de vento, seus braços (de Sarabande) escapam pela camiseta, longos, finos, dançantes, e os cabelos sem rumo é como se dançassem também.

 

 *

 

Sarabande tem velhas amigas. Quando as encontra, ela tem pena de que estejam tão velhinhas. E pensa se não está assim também. Zorina a acha linda, e nada diz, porque nem sabe o que dizer. Apogée, absolutamente da mesma opinião que Zorina, sorri de lado e silencia, pois imagina que nem lhe darão crédito. Intermezzo, galante, com protestos da mais alta estima, discursa sobre a Beleza e a Força. Mas logo vem Femina com um espelho e cobre Sarabande de beijos. E Sarabande ri e fica feliz assim.

 

 *

 

Altas horas, Zorina não quer ir embora. Sarabande leva todos até o portão e se despede: Intermezzo lhe acena com medida, Apogée palpita que já é chegada a Noite, e Femina discretamente plantou-se de mala e cuia num canto do jardim. Zorina morde-se de inveja de Femina mas não fala nada. Aí Sarabande se aproxima e lhe dá um abraço. Zorina sente o corpo na altura do ventre e então se desmancha e se derrete. E Intermezzo a carrega dentro da bolsa até a Noite que chegou.

 

*

Carta de Zorina, que fugiu, foi-se embora: Adieu.

 

*

 

* * *

 

*

 

Sarabande, de menina atrevida. Descabriolada, descaraminholada. Cabelos revoltos, ombros descobertos, braços pendem para o lado, esquecidos da vida, Sarabande vendo estrelas, bichos, árvores, cheirando o céu e descobrindo o rosto sem pressa de abandonar o dia. De repente, Sarabande diz: estou cega. Não vejo nada. Estou cega. Zorina: não é nada, não se assuste. Apogée: olhe para frente e faça um exercício de olhos. Intermezzo: que invenção, você anda muito impressionada. Aí, vem Femina. E, com jeito, lhe ajeita um cacho que bandeirolava nas bochechas. E Sarabande volta a si com a maior discrição.

 

*

 

Chamo a Noite, minha amiga azulada, com seu rosto de lobo celeste, cintilante e gelada. Ou a Tarde morna e rubra, com seus olhos de cobre, essa dama que escurece. Cada uma já sabe de longa data quem é Sarabande. Já lhe renderam os dias quando a carregavam pequena, pernas ligeiras correndo entre as casas e entre arbustos das rosas. Dos arbustos deslizavam pétalas que o vento pousava em seus cabelos. Que sua mãe escovava intermitente, com a paciência de não atropelar os fios.

Quando apresento Sarabande à Chuva, os pingos riem que já conhecem seu rosto. Vou lhe ensinar a Chuva, e Sarabande nem tem pressa em dizer que o Trovão foi ela que pintou de azul. E deixa molhar seus cabelos, ainda soltos sem rumo. Vou lhe ensinar o Trigo, e Sarabande já dançou horas seguidas quando eu nem tinha nascido e os pés de Sarabande eram redondos de rodopios. Quando falo: Pedra, quero que conheça este rosto, a Pedra me mostra as curvas que copiou de suas costas, de sua nuca, quando você, Sarabande, suspendia os cabelos e revelava os brincos de princesa escorrendo de dois fios. Mas vejo que me despeço do jardim, Sarabande, a cada vez que repito seu nome, porque aí me revelo e você se encolhe de medo, ou de espanto, e se volta para a Noite (que é a sua Noite) e para a Tarde (que é a sua Tarde), e se pergunta o que esta menina tola (que sou eu) está fazendo lá, em seu jardim. Só me resta cruzar o portão em despedida, o que faço inconsolável, mas, antes, fecho-me silenciosa atrás de um pequeno arbusto e ouço as conversas. Em torno de Sarabande, com homenagens, dengos e soluços, minuetam Zorina, Apogée, Intermezzo e Femina. (Será que num descuido deixo-me ficar no jardim?)

 

 

 

***

 

 

 

Salve

 

 

Saaalve. Mestre Tinhô, preso ficô, Ai …tem dó, indoné
sete meninos à toa deixô, Ai… tem dó, indoné

 

As palavras saíam, obedientes mas borradas na borda lisa da pequena folha. O lápis que usava era feito de cera, por isso sua ponta grossa e espiralada ia cedendo ao calor. E a extremidade de um lápis assim se derretendo era a coisa mais descabida para quem, em inspiração súbita, estava tão decidida a criar sobre o papel. A-la-me-das rá-pi-das desenham a estrada con-tra as va-ran-das de portas aber-tas a le-var a ren-da das toalhas e as pé-ta-las se-cas de seu lei-to de pa-lha.

No pátio da escola, última tentativa de refrescar-se. Loló agachou-se na terra molhada e afastando as pedras, desenterrou algumas folhas. Suas mãos firmes eram bem desenhadas, o talhe à galope de um grilo. Quando conseguiu separar a lama de todo o resto, mergulhou a palma em concha e trouxe uma porção para si. Colocou-a em um pano grosso, que torceu e enrolou na cintura. Andando em volta do prédio cinza e quente, de poça em poça os pés descalços se coloriam ao afundar na grama, charco que a terra, saciada e preguiçosa, resistia em absorver. A folhagem caía infinita para uma tarde tão curta que, inquieta e indecisa, quebrava-se sempre outra. E quem não acompanhasse as mudanças imaginaria a tarde constante e quieta como o som das crianças brincando na rua e o cair das flores da velha árvore roxa. Barranco acima as casas multiplicadas lajeavam a silhueta da montanha. Só as pipas surpreendiam o previsível das formas mas, quem podia notar? Ninguém viu quando Loló caiu no passo da bala contra o peito. Aviso de que os lá do morro estão à procura do irmão.

Loló ali parada, na terra quente, sua fisionomia devia estar debilmente distorcida pois dona Dita foi logo gritando que se sentasse enquanto buscava um copo d’água. Pendeu de lado a cabeça, focou a folha na mão. As letras riscadas à sua frente também já iam disformes. A claridade na folha debandava. Agora era a cera preta do lápis perdida no escuro da sala, estava ela na sala do professor talvez? Sala tão bonita, não se recorda, já tinha ali pregado as bandeirinhas? Al-a-me-das rá-pi-das. Um impulso impensado moveu a menina através do corredor. Con-tra as va-ran-das. Sobre pés pequenos demais, inspirou um ar carregado num frenesi quase alegre atravessando os ombros e o peito. A le-var a ren-da. Por instantes sentiu-se tênue chama, pronta a apagar sem mesmo precisar do empurrãozinho de um vento.

Boba essa Loló. Contam histórias, passam cantigas, mas só o que ela quer saber é daquela que a criançada canta na hora do recreio. O padre da Indonésia esbraveja que vai mandar todo mundo lavar a boca com sabão. Loló ri e canta mais alto, mais alto, com uma convicção que tem guardada, que só sentiu uma vez, quando cantou o hino da bandeira e ia bem longe da escola e via aquelas letras que nem bandeirola de São João, qual pendão colorido. Loló debulhava, escolhia as palavras. Puríssimo varonil peito amada. Sagrado? Serve. Encerra. É, bonita. Encerra varonil peito. Amada varonil encerra. E assim ia, deixando cair as bandeirinhas, apanhando as mais bonitas, mais sonoras, escondendo algumas no bolso, outras nas páginas do livro. Quando abro este livro, tem vento. Aposto que o vento já estava aí, escondido no bolso. Não. É ventania de livro mesmo, veja só: voa até palavra. Mas a poeira. Loló sacode e espirra. Espirra de boba. Dona Dita… me conta uma coisa… é verdade que mestre Tinhô tá preso? Na pia do banheiro, Loló assoa o nariz, deixa a água escorrer, faz bolhas de sabão. É, Loló. Foi se meter com o que não devia …Ó lá, dona Dita … Loló pensou nas bandeirolas. Esfregou as palmas. Sacudiu as mãos e meteu-as no bolso. As palavras guardadas a sete chaves e três botões espiavam do escuro. Faltava cozer uma casinha que estava por um fio. Volta e meia, fio e meio, um deslize, uma rajada de vento e uma danada escapulia. Volta, dona va. Aqui, seu to. Não descuida, não, ô sa. Ah, tudo de novo, não saio daqui. O recreio pela metade e mal dava para catar todas. Saaalve. Na fila do hospital ninguém viu a mão que contava palavras e colhia as lágrimas choradas sobre o corpo frio.

 

Susana Fuentes é escritora, atriz, doutora em literatura comparada pela Uerj. É autora de Escola de gigantes (7Letras, contos, 2005), Luzia (7Letras, 2011), romance finalista do Prêmio São Paulo de Literatura em 2012, Anotações de Berlim (Megamíni, 2016) e Carta ao Sol (Funarte, contos, 2020). Escreveu a peça teatral Prelúdios, em quatro caixas de lembranças e uma canção de amor desfeito, solo em que atua (selecionado para o The New York International Fringe Festival). E Olavo, le chat (Edição do autor, 2016).   Seu novo livro, A gaivota ou a vida em torno do lago [tema para uma peça curta], foi lançado pela 7Letras (poesia, 2021). Pesquisa a literatura russa e brasileira e ministrou oficinas de criação literária na Uerj, UFRJ e durante o Printemps Littéraire Brésilien na Université Paris-Sorbonne.

 

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