Dedos de Prosa I

Wellington Amâncio da Silva

 

Foto: Gilucci Augusto

 

O homem invisível

 

Mas Onã, que sabia que essa posteridade não seria dele, maculava-se por terra cada vez que se unia à mulher do seu irmão, para não dar a ele posteridade. — Gênesis 38:9

O beijo de um tempo frio em minha testa/ Alguma luz na água/ O reflexo do meu rosto/ A poesia é meu único amor sincero/ A poesia é meu último amor sincero... — João Maceno

 

Estive envolvido profundamente com a literatura. Li muitas obras importantes e também escrevi umas coisas, por influência dessas obras, como quase todo mundo. O que fiz com tudo isso eu ainda não sei. Confesso que não me importo muito pelos resultados, porque os processos, os métodos, me envolvem sem que deles possa sair; estes me levam para longe, e qualquer trabalho finalizado se perde no horizonte distante. Sobre o ofício? Ah, dia após dia, sentava-me para escrever, até anoitecer; não saía de casa sequer para comprar um pão. Com esse exercício medonho aprendi a fazer umas coisas. Todavia, logo que me aperfeiçoei um tanto me deparei com aqueles velhos problemas inerentes à ficção. Minha terrível agrura: as personagens se misturavam muito às minhas histórias pessoais e com boa parte do meu caráter — o que é péssimo… porque verdadeiramente, no final das contas, eu não sabia em quem bater primeiro, se neles ou em mim mesmo. Com o tempo, me especializei nesta arte de me perder no universo das personagens, de modo que eu não pude nunca mais desvencilhar uns dos outros, isto é, eu deles. Como escritor eu trabalhava demais, digo, no sentido de não parar nem para comer um brioche de geladeira! Neste universo, a minha imersão era tamanha, eu trabalhava tanto! que estive sempre indiferente às demandas fisiológicas do meu corpo e à família — era o espírito da literatura que regia minha existência para não sei onde, noite e dia —, todavia, depois me apareceram sérios problemas… Não posso me culpar, eu já me perdoei, hoje eu pago por isso e assumo minhas culpas, estou quite com meus personagens e comigo mesmo. Porque para alguns escritores, sua relação com a literatura se configurava tal a uma condição de “aprofundamento singular” — este termo é de Ludwig Vaander-Stelmmer — porque a literatura, devo dizer, é o grande culto! Em outras palavras, eu nunca me preocupei com o tempo do meu corpo, enquanto estive convicto da importância do tempo do espírito. A realidade exterior apenas tem sentido quando incorporada sem pretensões, quando a deixamos perambular pelo labirinto da memória, para em seguida reescrevê-la, não em busca dos “fatos”, mas em busca do “como se” — esta é a nossa salvação… Eles disseram, depois do ciclo de palestras: “Vai com calma, João!”. Eu retruquei (muito embora não estivesse de todo convicto): “Eu sei o que faço, meus colegas… eu sei o que faço…”. Escrevi uns versos e quase os publiquei em livros, a experiência de escrevê-los ficou para sempre, mas a obra se perdeu. Eu vivo tentando… Vivi um tempo de livro quase concluídos, em eternas revisões — é isto o escritor, não se engane! No final das contas eu carregava sempre alguma dúvida se os publicaria ou não, visto que daí em diante eu poderia ser elogiado ou difamado; não me animava a possibilidade de tornar-me reconhecido enquanto houvesse o precedente da difamação, que é aquele estigma que mesmo após a morte perduraria (meus filhos teriam vergonha de mim). Eu escrevia, mas carregava as minhas dúvidas — e por causa destas eu não parava de escrever. Porém, dúvida boa é aquela que possui uma cratera tão grande em seu arcabouço, que pensamento incomodado infla, e se torna maior que a cratera. Hoje, gostaria demasiadamente de precisar alguns pormenores sobre a minha vida — se é que interessa.

Nasci na cidade de Penedo, nas Alagoas, em 12 de janeiro de 1962, sob o nome de Roberto Rabocha dos Santos, e não de João Maceno, meu pseudônimo.  Aos 22 anos resolvi enfrentar o destino em São Paulo, e por lá, em alguns aspectos, me dei bem. Aos 32 anos tornei-me profissional da comunicação, redator de uma revista considerada e arrisquei-me pela literário da mesma revista. Neste ambiente de papel e de letras encontrei a mulher que me tolerava e que enxergava alguma beleza em mim — não vi nenhum feito em seu caráter. Casamos em 1996, e em 14 anos de casados e tivemos duas filhas — Clarisse, 05 anos; Alice, 11 anos. Vivemos como num sonho bom, porém, de súbito, aos 48 anos eu estava sozinho num quarto meio mofado de casa alugada a pouco dinheiro; sim, eu fiquei sozinho, porque sem a esposa as filhas escolheram, obviamente, morar com a mãe ou com a avó… (não quero tratar de detalhes do fim do meu casamento, mas adianto que há uma temática trágica, sobretudo “patética” envolvida, e da minha parte…). Ora, sinceramente não tenho ódio ou mágoas contra ninguém. O ódio sem destinatário é arte. Mas, deixa eu te dizer uma coisa: por outro lado, nós amamos e sabemos que amamos, examinamos nossos pensamentos e atos sobre a pessoa amada e cremos que amamos, todavia ela pensa que ainda é pouco, ou desconfia que é bobagem ou enganação. O que nós sentimos é tudo o que temos para aquela pessoa, e ela acha pouco ou inútil…

Após o divórcio, desvencilhei-me da maioria dos compromissos domésticos, ainda bem. Resolvi me debruçar, com o devido empenho sobre o que me restou de fato, aos meus textos. Certo dia, ao acordar disposto, explorei o velho armário cheio de papéis, de algumas traças e ácaros; tentei dar ordem ao que reencontrei. Seis sacolas de supermercado contendo manuscritos velhos, seis possíveis livros que eu abandonara. Muitos papéis, e ao folheá-los, de imediato retomei ao fio da meada daqueles anos passados; eram quase livros, ali, e somente eu estava ciente de que sabia o que escrevera, porque quando se diz a verdade ninguém acredita. Mas, não eram ainda livros, antes de reuni-los, sob a ordem de temas correspondentes. Havia certa desconexão (mesmo as melhoras frases, as que soavam bem, ainda não continham uma verdade). Grandes obstáculos enfrentados, num trabalho interminável, tentei encontrar ou inventar liames. Para alguns textos escrevi coisas que depois chamei de “emendas” e lutei em vão contra outros tantos. Às vezes temos frases aparentemente perfeitas, mas que não passam, no final, de um engodo. Os manuscritos “não aproveitáveis”, aqueles que por si só não forneciam saídas, eu os comi, os umedeci com água ou refrigerante, pus pimenta calabresa e os comi; o texto impossível não me dava outra saída senão trazê-lo para dentro de mim por simbiose, incorporá-lo pelo estômago, já que não sedia ao intelecto.

No final de 2013, eu os tinha organizado todos e atribuído títulos chamativos, tais como, “Diurnos”, “O Caso 64”, “As Aspirações de um Equilibrista”, “Âmago Translucido”, “A Paixão Segundo Margarete”, “Manto Frondoso” e “Piramundo”.  Editar tudo me custou muito caro. Trabalhar pelas madrugadas me adoeceu. Emagreci em demasia, houve queda de cabelo e tornei ainda mais impotente. Cara caveirosa e olhos fundos, os lábios descorados, sem brilho. As calças caiam um tanto, as camisas folgaram-se. Neste período, eu pensava ter desenvolvido diabetes.  A sorte é que depois de um tempo de folga e de paz — digo, não pensar em nada, não fazer nada — melhorei sobremaneira. A saúde se restabeleceu e se estabilizou. Eu estava grato pela saúde aparente. Pensei em me casar novamente, mas desde sempre fora casado com a literatura; na verdade, fiquei sozinho, ainda bem; eu não queria dar trabalheira a mais ninguém. Eu quis resolver de uma vez por todas, aquela tendência incômoda à vida a dois. Me lembrei de Kant, solteirão, quem sabe apaixonado pela Filosofia. Me lembrei do padre Simão, solteiro, quem sabe apaixonado pela fé. E eu, talvez pudesse estar solteiro, quem sabe, para escrever, porque escrever toma tempo e é a boa solidão.

Em grande medida, meu casamento acabou porque vivia para o trabalho e para a escrita autoral, e foi por causa destes dois universos que me lasquei. O primeiro, abandonei, já que perdera algo mais importante: a presença da minha esposa e filho. Acabei aposentado por invalidez. E o segundo? Não tive forças para abandoná-lo, devido “ao tamanho absurdo e a densidade insustentável da sua inerência dentro em mim” — tal frase parece clichê, mas na verdade eu nunca quis deixar a literatura; a violência sem destinatário é arte… Literatura, deste ofício não se despede; vive-o até o fim, e quem sabe, depois (mas não sou religioso, não penso o “depois” para além de um gracejo). Diante deste quadro, resolvi radicalizar alguns aspectos da minha vida; havia algo dentro de mim que me “roubava” certa parcela da minha concentração. Disse a minha mãe que iria morar sozinho e que cuidasse das meninas com o auxílio da maior parte do meu dinheiro (o que não era suficiente); as meninas gostam mais dela do que de mim e da mãe — digo isto sem mágoas pela opção delas; também não acho oportuna tal opção. Por conseguinte, comprei uma bela chácara em Araçoiaba da Serra (por sinal, mal-assombrada, mas eu ignorava visitantes de toda sorte). Por lá me aperfeiçoei ao meu gosto. Escrevi novos sonetos, escrevi odes, sáficos, gaitas galegas, e outras dezenas de decassílabo; escrevi alexandrinos e bárbaros, enquanto os pardais tentavam chamar minha atenção à janela; reinventei a métrica e a diluí em anarquias criativas que me faziam gargalhar pelas altas madrugadas, sem que as corujas noturnas, pousadas num galho à janela, me compreendessem. Mas percebi, com o tempo, haver em meu corpo uma demanda, que mesmo sendo menos indômita que a fome e a sede, e estando ao largo, ainda me incomodava; era uma ansiedade genital, a maldita libido: ora, eu a sentira muito sutilmente e difusa, muito de longe, muito de leve, porque estava enceguecido pelos versos; mesmo pela manhã, ao acordar eu notava sua presença e a sentia tal a um leve incômodo, que mobilizava dentro de mim certos pensamentos luxuriosos (e eu nem escrevia sobre o tema…). Antes, aquela coisa volátil, sem nome e sem nexo, reverbera vapor dentro, no calor cego da virilha, sem diretamente percebê-la, até que uma noite, devo dizer, depois de algumas perscrutações, me incomodou, porque eu me alegrei com a lembrança voluptuosa de antiga amiga da universidade. Imaginei-nos em mil e uma manobras sensuais, e por causa de pensamentos persistentes enfrentei duas semanas sem escrever um verso, até me libertar razoavelmente. Desde muito cedo, entre outras pulsões medianas, a sexualidade me era enfadonha; casei-me porque me vi obrigado, coitada…; eu muito jovem quis experimentar, me apaixonei e amei, todavia, acabou…. Para o sexo, nunca uma mulher me atraiu, nem homem, nem quaisquer outras das variantes… sempre tive medo desse calor exótico e testicular, desse exercício medonho sobre superfícies macias, colchões sofredores. A libido sem destinatário é arte, eu sei, mas eu não tenho este dom, nunca quis arriscar de fato, na cama fui um fingidor. Para mim, o sexo era a prática dos bichos que espumam pela boca, dos cães e das aves, em oposição à escrita, algo muito lento e calmo e que se faz sobre superfícies duras, escrivaninhas felizes. Quando casado, me cansava muito deste exercício — seus jogos, as caras e bocas, as mãos bobas, os sons monossilábicos incompreensíveis, os lábios derreados, as convulsões momentâneas, a dedicação ao gosto do outro, às frustrações das precocidades, minhas insuficiências, e a traição que ignorava, porque, como disse, o sexo e suas variantes me eram enfadonhas — na verdade, eu gostava quando minha esposa voltava feliz, porque ela sinalizava discretamente que somente neste aspecto eu não me tornara um suficiente. Sei que mesmo a pequena relação se constitui numa dívida de monta, e as asas daquele que voava sozinho se desfaz pelo caminho do matrimônio — me perdoem por usar esta metáfora tão felpuda. Ah, só mais uma coisa: a cama é tudo! Não é à toa que falam tanto da cama quando se fala de relacionamento. Na cama ocorre o “efeito da presença”, eu já disse uma vez, de quando dormindo ou acordado a gente sente a presença forte do outro, a gente acorda para olhar o outro dormindo, ouvir sua voz e sua respiração, olhar seu rosto sempre inédito, dormindo… isto é o amor. Porém, quando o outro desaparece na cama, se torna parte da cama, tal a uma almofada grande com pés e mãos, e nos sentimos como quem dorme só, acabou o amor.

De todo modo, tomei uma decisão definitiva, porque a literatura era a minha vida. Era o ofício! Sim! Até o final da minha vida, como dizia o pessoal do Romantismo europeu. E, um tipo de prescrição para a existência — e eu achava melhor considerar coisas do tipo do que a vida doméstica. Na verdade, a literatura é um modo de existir, é um horizonte, um portal em aberto, um plano existencial cujo alcance é infinito e maior do que a mente. “A literatura é mais extensa do que a natureza” — uma vez nos disse Eleanor Mannoir. A literatura é um plano extensivo, enorme, onde o mundo recosta a cabeça em busca de algum alívio. E é aí, neste orbe imenso, que eu queria viver e morrer. Deste modo, decidi conversar sobre o assunto com o meu médico; já a minha psiquiatra concordou de imediato. Como é de imaginar, o assunto demandou muitas outras reuniões (e a psiquiatra fartava a sua curiosidade…), porque aí, no âmbito de uma longa confrontação, que se enredou entre eu e o médico, havia um aspecto ético que ele denegou por um tempo; somente a muito custo consegui convencê-lo. Ora, é bom saber que em todo tempo da minha existência eu me reconhecia não sendo heterossexual ou homossexual, ou qualquer outra condição sexual. Na verdade, relativamente ao sexo, como prática eu não tinha gênero, eu nunca tomei gosto pelo ato em si, embora de quando em quando meu corpo “se aquecesse”…, e, íntegro desta minha apatia por mim conhecida e compreendida, ainda que no meio desse “fogo”, perseverei; tempos depois, consegui do médico o que queria — a castração, que é parecida à vasectomia, porém, com extração testicular; eu não queria ficar simplesmente infértil, eu queria ser como um Castrato italiano ou um Eunuco judeu e me libertar da libido, ter paz de espírito, enfim. Tal escolha seria para mim um gesto de violência? O que é a violência? A violência sem destinatário é arte. Aliás, meu pai falava que a natureza nos acha uns idiotas: para manter o ciclo da espécie, pela fecundação, ela nos obriga a copular a preço de esmola, o gozo. Mas eu não quero falar sobre isto.

Ora, pesquisando, eu não encontrei nada sobre castração humana nos dias atuais; num dicionário comum, está escrito que “A ‘castração’ no Brasil é um dos procedimentos mais realizados em pequenos animais. Evita diversos problemas de saúde, melhora o comportamento, e é das medidas mais importantes para controle populacional de cães e gatos. O procedimento não costuma ser complicado, porém exige certos cuidados antes e após a cirurgia”. Apresentei este pequeno texto ao meu médico e ele riu; disse que precisava pesquisar… confessou que nunca realizara tal cirurgia. Duas semanas depois, estava eu em seu consultório; me despi ali mesmo e vesti uma camisola hospitalar aberta nas costas. Numa sala pequena e branca, cerâmica até o final da parede, deitaram-me numa maca estreita. Uma enfermeira aplicou Clonazepan na entrada de um cateter na venosa do braço, porque eu estava um pouco hipertenso e nervoso. Um homem grande me pediu para sentar, ordenando que não me mexesse e aplicou a anestesia raquidiana em algum lugar da minha coluna serviçal. Logo eu estava paralisado da cintura para baixo. O doutor Aristóteles, meu médico, estirou uma pequena cortina, lado a lado à minha cintura e eu não vi mais meus pés, até ele erguer as minhas pernas sobre dois pedestais. Os três começaram a conversar sobre coisas banais, ou seja, era o sinal, a cirurgia havia iniciado. Em vinte minutos ele me mostrou meus testículos na palma da sua mão, e eu não pude segurar as lágrimas, num choro copioso, porque me senti como se houvesse perdido o elemento ancestral da minha existência e que me fez ver ali os rostos saudosos do meu pai e do meu avô. O médico disse que eu deveria parar de chorar, porque aquelas convulsões em meu ventre poderiam desencadear uma hemorragia no local da cirurgia, durante o processo. Ele me costurou por baixo, enquanto eu enxugava minhas lágrimas; realizou seu último ponto e me disse: “Missão cumprida, meu caro… De hoje em diante você será para sempre um homem indiferente ao sexo”. A enfermeira me olhava triste. Por questões éticas talvez o médico mantivesse segredo quanto ao meu caso, por isso ela me olhava triste. Se manteve segredo eu ainda não saberia entender aquela expressão de tristeza nos olhos impecáveis da enfermeira. Nos dias seguintes acordei taciturno demais, de modo que levantava tarde da cama e não conseguia realizar a menor tarefa em meu cotidiano. Meu consolo foi ouvir Pink Floyd e os álbuns Zeit e Alpha Centauri do Tangerine Dream, o dia inteiro, semanas a fio, até sarar. Nos quinze dias seguintes à cirurgia, eu não pude beber vinho e isto me foi aterrador, torturante, porque a embriaguez em momentos decisivos sempre me foi uma grande salvação, quase uma salvação escatológica. Eu sentia uma tristeza persistente e difusa, que estava não somente dentro de mim, mas em tudo ao meu redor, como quando se perde um ente querido; a minha tristeza estava nas paredes, nos móveis, na voz dos transeuntes, na réstia empoeirada que riscava o chão, no chilrear dos pardais, no cinzeiro de latão, nas cuecas sujas dentro do cesto de plástico, na reprodução de um nu artístico de Toulouse-Lautrec em minha parede, na forma quadrada da janela, sobretudo no encarnado soturno do arrebol de fim de tarde. Eu pensei que ia morrer de tristeza. Não havia ombro amigo nem outro consolo, porque ninguém sabia do meu caso, e o médico não me ligou nem para desejar boa sorte. Somente Deus sabia da minha situação, mas Ele talvez não gostasse da minha literatura.

Nos meses seguintes me sucedeu uma calmaria. Meu lar tornou-se mais claro, no espelho meus olhos tornaram-se mais inocentes, meu rosto rejuvenesceu-se uns dez anos, e minhas mãos tornaram-se mais dignas. Minha concentração nas coisas era precisa, meus pensamentos tornaram-se irrepreensíveis, minha autoestima subiu, as ideias fluíam em enxurradas (e eu anotava tudo!); eu conseguia articular pensamentos e conceitos complexos com grande coerência, e mesmo um ser de luz, um homem vestido de branco, rosto luminoso, olhos esfogueados, de uns dois metros e meio de altura, conversou comigo a noite inteira, em minha sala, sentado em meu sofá, e até tomou um chá de boldo comigo — disse-me coisas inefáveis que deveras não é lícito narrar agora. Meu corpo tornou-se como corpo de menino; meus ombros se encolheram, minhas pernas afinaram-se, meus pelos caíram, minha testa ampliou-se para cima e para os lados, minhas rugas desapareceram, meu maxilar tornou-se harmonioso e gracioso, meus incisivos retraíram-se dentro da minha boca, e brotou uma flor em meu peito, deixei de ser carnívoro. Meu pênis tornou-se ainda mais “sanfonado”, de modo que encolheu até quase desaparecer abaixo do umbigo, sobretudo nos dias frios (e como não me restaram testículos, minha virilha era tal a virilha lisa, sem protuberâncias, de um inocente boneco de brinquedo, ou de um andrógino). Passei a realizar enemas em mim mesmo, com o intuito de me libertar um pouco mais dos processos mais baixos do metabolismo animal inerentes a este corpo. São arte os empenhos sem destinatário.

Foram três meses de inoperância total, após a castração; emergi lentamente na escrita e nas leituras, isto de um modo quase sobrenatural, elevando estas duas ao patamar da mais leve e pacifica religião — confesso que eu estava eufórico, excitado de espírito; nunca uma libertação física me trouxe tamanha graça espiritual. Vivi uma mística nova, para além de qualquer recalque freudiano. A um só tempo estava liberto do pudor religioso e do cio dionisíaco. Me arrebatei às nuvens do vernáculo, e era tudo que eu queria, e lá encontrei o divino, o numinoso, o plenamente suficiente, e escrevi bastante. Descobri que a maior emancipação de um homem é perder os instintos. Hoje o alvor dos versos de camões está plenamente apreendido em meu ser. Posso dizer que vivo um nível outro de existência. Estou absolutamente convencido que as pulsões do animal no corpo do humano (sexo, pavor da morte, medo do imprevisível, agressividade, excreção) são um terrível estorvo diante do alto nível de humanidade que se descortina no tempo presente, e do qual sou o primeiro e único representante. Eu sou o übermensch de Nietzsche. Amigo, é preciso elevar nossa humanidade até patamares nunca antes imaginados — e tal libertação somente se fará pela libertação das pulsões, e o sexo é a pior delas! Todas as guerras e todos os males têm sua raiz na transa, têm seu aspecto corrupto também nas pulsões diversas! É preciso elevar o logos aos planos antes inimagináveis! Libertemo-nos a nós mesmos da velha sentença aristotélica do “humano como animal”! O “bicho” no corpo é uma cifra diminuta no calcanhar da existência, e o humano é todo o cosmo! Podemos ser como os santos anjos. Um dia nos aproximaremos daquilo que os antigos orientais denominavam de deuses (e os ocidentais de Sofia)! A busca sem destinatário é arte. E, que todo homem se castre por amor a si e ao devir, e escreva belos poemas, no intuito de libertar a Natureza dos nossos equívocos milenares.

Wellington Amâncio da Silva nasceu em 1979, em Delmiro Gouveia, Alagoas. É professor graduado em Pedagogia e Filosofia, e tem mestrado em Ecologia Humana. Editor das Edições Parresia. É membro da equipe editorial da Revista Utsanga — Rivista di critica e linguaggi di ricerca. Em literatura, publicou-se: Apoteose de Dermeval Carmo-Santo (2019), O Reneval (2018), O Quasi-Haikai (2017), Epifania Amarela (2016), Distímicos e Extrusivos (2016), Diálogos com Sebastos (2015), Primeiros poemas soturnos (2009) e Elegia da Imperfeição (2001).   

 

 

Clique para imprimir.

8 Comentários

  1. Este conto é um daqueles casos a serem seriamente considerados. O negócio aqui é denso. Estou certo que não há um conto não impactante da parte e da arte deste autor emergente. Li “Apoteose de Dermeval Carmo-Santo”, “Os invisíveis” e “Vestido de Tafetá” e senti o impacto sísmico. A literatura de verdade tem que ser assim neste nível implacável, não deve deixar o leitor descansar e sair ileso. Tem que perturbar e nos fazer pensar a nossa próxima existência por muitos dias. Leitura proveitosa demais. Sou teu leitor devotado, professor Amnancio.

  2. Este conto é um daqueles casos a ser seriamente considerado. Estou certo que não há um conto não impactante da parte e da arte deste autor emergente. Li “Apoteose de Dermeval Carmo-Santo”, “Os invisíveis” e “Vestido de Tafetá” e senti o impacto sísmico. A literatura de verdade tem que ser assim neste nível implacável, não deve deixar o leitor descansar e sair ileso. Tem que perturbar e nos fazer pensar a nossa próxima existência por muitos dias. Leitura proveitosa demais.

  3. Excelente leitura do dia de hoje! Fiquei preso ao texto. Obra perturbadora. Construção caprichosa. E precisei compartilhar. Com prazer. Obrigado.

  4. Acabei de ler agorinha mesmo. Obrigado por lembrar e me enviar. Farei o mesmo a alguns amigos!!

    Texto muito rico e leitura empolgante e nada previsível.

    Gostei muito! Em alguns momentos ri, noutros fui levando a refletir sobre nossa condição como parte da Natureza!

  5. Escritor de potencia lirica elevada. Karamarron é pesado!! Parabéns! Evoé!

  6. Bom dia. Literatura e fragilidade masculina, existencial e ontológica. Faz pensar o papel do ser humano diante da sua vida inteiro e da exterior (a o mundo, a natureza, as pessoas). Como nota de fundo o narrador nos faz um manifesto das limitações do corpo em relação à Vontade, perfeito!. Sugiro que o texto se expanda a um pequeno romance de ao menos 100 páginas, por favor, porque há muitos pontos que necessariamente deveriam ser aprofundados, obviamente o presente tratou devidamente dos temas no espaço possível de um conto. Sugiro ao autor ampliação da presente obra pelo gosto de quero mais.

  7. Nas palavras do próprio autor, “uma hipérbole sobre a condição do escritor.”. Parabéns, grande trabalho.

  8. História muito massa. gostei. É ficção, mas eu não sabia que existiam homens assim. Lembrei de alguns. Massa, professor.

Comente

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *