Dedos de Prosa I

Lorena Grisi

 

Ilustração: Drika Prates

 

Exercícios físicos

 

Faz atividade física? Faço, longe de mim ser sedentária. Não fumo, bebo pouco e carrego comigo este carma de gerações, estes genes, o peso dos dias, esta cabeça que não vem sobre os ombros, vem sobre o pescoço, porque os ombros, é o mundo o que eles suportam e por isso tenho hipercifose. Não sou preguiçosa, ando a pé por essas ruas levando tudo o que é desnecessário em minhas costas, só para ter certeza de que não vou utilizar, mas está tudo ali, são coisas minhas, é tudo o que tenho, pode-se dizer que configura um patrimônio. Juntei cada uma dessas peças como quem guarda pedaços de quebra-cabeças distintos na esperança criativa de montar paisagem própria, forçando encaixes e aceitando que buracos são também composição de destinos. Portando sempre meus objetos, sou meu meio de transporte, meu caminhão de mudança para cada apartamento semimobiliado alugado e, no percurso, perco bibelôs e memórias, o que deixa mais leves as caixas de papelão e é por essa razão, ademais, que eu sempre fui bem magra, embora nunca, nunca mesmo, tivesse sentido medo de que uma ventania me levasse consigo. Tudo ótimo enquanto estiver perdendo bibelôs, o que não dá é para perder as chaves, a cabeça ou o prumo. Eu sou muito ativa, me exercito, escrevo, apago, escrevo, reviso; no ano seguinte, eu abro o mesmo texto e reviso, apago, escrevo, guardo, esqueço. Esse exercício fortalece a mente e os ossos, explico, ele recomenda musculação três vezes por semana, no mínimo. Pergunto se ele já experimentou um teto desabando sobre si e tendo de levantá-lo com as mãos, no sentido oposto à gravidade, e isso na hipótese boa, que é a de ter um teto; ele me diz academia, corrida, pilates, eu digo meu querido, você não faz a menor ideia do que é ser uma mulher.

 

 

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Língua morta

 

Fizessem uma perícia a cada vez que morre uma língua, constatariam males que incluem assassínios, genocídios, catástrofes naturais e outros desastres que geram órfãos, herdeiros de um inventário volátil e invisível. Onde o cemitério das línguas não mais ditas ou escritas, usadas, um dia, para dividir a terra em que se plantou o primeiro grão, onde se fincou a primeira bandeira, onde se construiu a primeira cerca em madeira e então se disse é meu? Em que língua uma mulher foi originalmente ofendida e deu seu grito inaugural de horror? Os despojos conhecemos até hoje, os despojos da guerra são do vencedor e a língua mantida viva também, em sua glória. Como se diz meu na primeira língua morta? Como se diz eu? Como se diz não cante essa canção em voz alta, não narre esta fábula? Fato é que hoje e em qualquer raio de futuro, mesmo antes do café da manhã, conviveremos com restos mortais de línguas por todos os cantos da casa e do corpo, no pensamento, no olho do outro, nas plantas no vaso sobre a mesa, perpétuas (ou Gomphrena globosa). Há uma língua que não diz mais e não se entende, mas se sabe, exatamente como a conversão do dinossauro em galinha. A língua de carne, essa também pode morrer, mordida ou queimada, ardendo, dizendo três vezes palavra de maldição, cortada a faca para aprender que alguns vocábulos talvez devessem estar mortos também. Sepulta-se uma língua e ela jaz num túmulo em que se busca desvendar a pequena fotografia preta e branca, sem data ou epitáfio. Uma língua, hoje, é algo que existe primordialmente para dizer fique aqui, em dez minutos poderemos enxergar o satélite, e é a partir dessa fala que todo o mundo se recompõe e gira. Uma língua morta é um fantasma triste que corre de medo de crianças. É uma sobra nas sombras, a cápsula do tempo enterrada, acidente de trabalho de escavação.

 

 

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Pretérito imperfeito

 

Acabou-se o que era doce e os nostálgicos garantem que ontem foi melhor que hoje, que os anos 80 não retornam mais, que nos anos 70 não havia Aids e eu concluo que a Guerra do Golfo foi muito pior do que a Guerra do Vietnã, porque a do Vietnã veio antes e tudo o que vem antes é melhor do que o que vem depois. Era doce. Poderiam ter conservado com sal ou com gelo, os nostálgicos, os saudosos, mas isso interferiria na doçura, que não voltaria mais e teríamos um passado salgado, ou aguado, nada condizente com nossa delicada história de afetos e ternura, mesmo que mais de um milhão de pessoas tenham morrido na Guerra do Vietnã. Era tudo muito doce, embora ensinem nas aulas de Ciências que são quatro as possibilidades de sabores – o doce, o salgado, o azedo e o amargo. Era tudo doce, mas acabou-se e agora usamos toda uma gama de açúcares ou de adoçantes artificiais que tornam a vida diária mais palatável e porque o doce, desses quatro, é o único sabor que tem conotação positiva e precisamos dele em nosso cotidiano cada dia mais insípido. Precisamos acreditar na doçura, mas os adoçantes artificiais são cancerígenos e o açúcar refinado dizem que é um perigo também. Os nostálgicos, os saudosos, vazios de um período em que o buraco na camada de ozônio era menor, e de quando não havia alimentos transgênicos, e de quando havia menos arranha-céus fazendo sombra nas areias das praias brasileiras, os nostálgicos se embrenhariam em pequenas fazendas produtoras de mel, caso as abelhas hoje não estivessem enlouquecendo com tanta mudança no ecossistema. Porque as abelhas também estão nostálgicas, saudosas e vazias, deu até no noticiário mês passado. Era doce, todos juram que era doce, mesmo que o Vesúvio tenha destruído Pompéia no primeiro século de nossa era, quando o Vietnã não era uma questão. Era doce, tinha até uma cereja em cima. Não salgaram os corpos de homens enforcados e de bruxas queimadas vivas, de modo que só a doçura se preservou na memória. De modo que neste atual século de nossa era teses estejam sendo escritas sobre afetos, músicas sobre a delicadeza sejam compostas e uma estética da suavidade esteja muito em voga nesse mês de outubro, hoje mesmo, quando não é mais doce como já foi, constatam os nostálgicos, os saudosos, os vazios e os perdidos. Era doce, foi doce. O pretérito imperfeito, dizem os gramáticos, exprime uma ação habitual no passado, enquanto o pretérito perfeito exprime uma ação que não era habitual. Acabou-se o que era doce, ser doce era habitual. Era uma vez. Desde o primeiro século de nossa era e mesmo antes. O anel que tu me deste era de vidro. Era doce, mas agora as abelhas enlouqueceram.

 

 

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Carta

 

Se eu te dissesse – Me escreve, assim, a seco, intransitivo, o que você me enviaria? Uma carta de amor, de despedida, um cartão-postal, um e-mail, um bilhete, meu horóscopo, a foto de um recado no espelho, tua biografia? É certo que não diria diretamente que me ama, nem que acordou no meio da madrugada para não mais dormir porque não sabia onde eu estava e se eu voltaria. Me contaria do gato que trouxe para casa, da rua que mudou de sentido e agora deixa os motoristas confusos em frente ao prédio. Me diria que, mais útil que escrever uma carta, coisa que nem se usa mais, é escrever uma tese, um tratado, uma lei, algo que se imponha sobre os homens, palavras contra as quais qualquer insurgência é imputável com isolamento e castigos físicos. Teve aquela vez, na viagem ao Norte, quando eu perdi o catálogo dos lugares turísticos. Me escreve um catálogo. Me escreve um catálogo que fale se os lugares produzem arrepios, se têm cheiro, se o Sol vai queimar minha cabeça, se o caminho pode ser feito a pé, se, para chegar lá, basta fechar os olhos no chuveiro. Me escreve, mas escreve à mão, com essa letra que eu não entendo, mapa para a rua que mudou de sentido e que eu perdi, no meio da viagem.

 

 

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A casa

 

A casa, caixa de móveis desembalados e descobertos de lençóis, habitada, durante o dia, por este sofá velho, vazio e emprestado, em que alguém já se sentou para não cair no chão de desespero e dormiu, perdendo a hora. Há grades nas janelas, mas o Sol tem sua incontornável liberdade de atravessá-las e de queimar os rostos nos quais hoje se veem manchas e linhas de quem observou a paisagem atônito. Eram duas as cachorras no pátio, latindo para os outros cães que passavam por trás do muro, e o barulho dizia dessa ordem perdida em que os seres se reconhecem, se cumprimentam e estão atentos aos cheiros. Nesta casa, três famílias, em seu tempo, celebraram aniversários, receberam notícias de mortes e penduraram quadros em diferentes paredes que já foram brancas ou amarelas. Da casa de baixo, sente-se cheiro de carne sendo assada e há uma conversa, entre mãe e filha, sobre objetos perdidos nas escadas. Debaixo dela, a casa térrea, vazia e de porta fechada, hospedagem provisória de ácaros e de pequenas aranhas tranquilas, na privacidade dos cantos e das frestas. A casa, arquivo de espantos em quarto e cozinha, tem uma moradora, à noite, na hora em que se imagina que todos dormem, mas há uma verdade e é esta: há o pesadelo, o suor frio e os banhos. É tarde para se preocupar com visitas, é cedo para consultar a meteorologia. E o universo é dentro da casa e, não, fora, e isso inclui os raios, as tempestades e os objetos não identificados, dos quais fazem parte utensílios domésticos que determinam a completude de um lar: mesmo sem uso, tem-se o que é preciso, além de um fogão, de uma cafeteira e de um acendedor automático. Vê-se, na sala, uma mesa com papéis e livros que indicam as tarefas de quem reside na casa. A mesa é bússola, é rosa dos ventos, por isso está centralizada. Em cima dela, um castiçal com uma vela apagada. Dali, contam-se dez passos para a cama, dez para o aparelho de som, dez para a gaveta de facas. A casa, neste terreno argiloso e infértil. Amanhece. Na rua em frente, os cães encoleirados passeiam na hora esperada.

 

Lorena Grisi nasceu em Salvador. Publicou, em 2021, o livro de poemas “Exercícios físicos” (Editora Paralelo13S). Tem textos publicados nas coletâneas “Hilstianas vol. 1” (Editora Patuá/Instituto Hilda Hilst, 2019), “Antologia Ruínas” (Editora Patuá, 2020), “Terra, fogo, água, ar: coletânea lírica” (Edufba, 2020), “Mulherio das Letras Portugal” (Editora In-Finita, 2020), “Parem as máquinas!” (Selo Off Flip, 2020), “Cartografias vol. 1: contos de autoras brasileiras” (Editora Primata, 2022), no Jornal Relevo (set. 2021), na oitava edição da revista Felisberta, na revista Aboio, na revista Mulheres do Fim do Mundo (abr. 2021), na segunda edição da Revista Torquato (abr.-jun. 2020) e na Revista Contempo (maio 2020).

 

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