Dedos de Prosa II

Caio Russo

 

Ilustração: Sadrie

 

Aquário

 

Para Marceli Andressa Becker– minha terna “Beck”, neta da filha que não tive.

 

Do beiral a menina se escora na janela do décimo primeiro andar, amanhecidas desde a madrugada as pernas, dobradas sobre joelhos de sereia, como a escultura de proa num navio vertical em concreto armado, hora ou outra a ouvir nas barbatanas o trinar do elevador, chegando e saindo do andar, submergindo nas escotilhas opacas, acima, abaixo, apreende lições sonoras de mergulho.

Não nasce o dia sem uma lasca de falta trágica.

Lançar-se desde o alto ao lago de asfalto morno, desde a respiração refez incontáveis vezes o salto aquático, fecha os olhos feito Tirésias e vê-se com braços e pernas de nadadora experiente perfurando a atmosfera. Um mínimo oráculo do destino estatístico, daria no jornal numa das páginas subalternas, talvez nem nelas, em algum site lado B desses que trabalhara na época do namoro com Roberto.

Vem serpentino, de um dos tantos e tantos apartamentos sem face, aquele gesto de café recém-feito lhe acolhendo pelo olfato, como o pai quando chegava do serviço lhe dando um pequenino piparote na ponta da narina.

Não é bem o café café, esse café, é outro café, outro odor do fundo recordado, ternura feita em novelo de lã, ternura de sopro cálido sob as costas da orelha amante, ternura na espuma da quietude magra. Escondida sob indiferença urbana, como seu par de meias lilás embaixo da coberta cinza, o lírico que lhe apalpa as miúdas pestanas pisca sorrisos de querer vez outra ainda hoje.

 

Silvia Szymanowisky, 13 de março de 2010

 

 

 

***

 

 

 

Tratado sobre a velhice

 

Dos últimos anos para cá fiquei obcecada por imaginar aterros. É velhice, sei disso e não precisa avisar.

Penso naqueles mineiros, não os nascidos em Minas, claro. Homens e mulheres descendo diariamente para colher carvão. É isso que vejo diante de mim.

A velhice é uma doença, menos grave que a da juventude, mas é.

Jamais me chame de idosa, isso não aceito porque estou na idade de não aceitar nem o aceitar. Quando a menina me disse querendo ser caridosa: “mas a senhora não é velha, é idosa”, dei-lhe várias bengaladas na cabeça.

Gastei quase quatro idades daquela garota para que me chame de idosa? E esse ideograma chinês feito por um bêbado igualmente chinês na minha cara? Tente apagar essas rugas todas então, minha filha.

Não, não é isso, inveja por já ter consumido quatro idades, é por olhar a moça e pensar que somos tão parecidas, se tivesse mais quatro idades dessas guardadas na poupança faria o mesmo que fiz, pouco, muito pouco.

Talvez começasse a beber chá antes e mais nada.

Ranzinza? Claro que sou, estou no direito consuetudinário de sê-lo, amargada pelo excesso de chá de tília tomado ao longo de duas décadas!

E os homens e mulheres descendo diariamente nas minas. Logo estarei lá pra baixo sem saber subir.

Preparada para morte? Só os velhos mais idiotas dizem isso, tomando 25 comprimidos diferentes se souberem que no Camboja há uma epidemia de gripe.

Esses velhos preparados, prontos, são os mais histéricos quanto à morte, tanto medo que já levam uma lápide no lugar da cara.

Que os jovens são idiotas, todos, sem exceção, é sabido, mas dizer que velhos são sábios, oráculos que acumularam experiência, isso sim é idiotice das brabas.

Não tenho gatos, não sou nenhuma velha clássica de filme ruim. Tenho plantas porque são mudas no meu idioma, ainda bem, a presença de algo humano me dá urticárias.

Ora, para quem escrevo então? Escrevo para as paredes, e um pouco para que as dores de minhas juntas fiquem quietas lendo.

Aterros, minas de carvão, bueiros e buracos.

Medo da morte? Não tenho. Meu medo é que lá, sabe-se onde, não tenha chá.

E comecei há anos a aprender o silêncio, assim, quando não voltar de lá, ao menos irei sabendo a língua deles.

 

Clara de Almeida Corbin , 05 de setembro de 2003

 

Caio Russo é escritor, historiador e pesquisador em Estética, História da Arte e Teoria da Imagem. Nas horas vagas, passa seu tempo esculpindo ausências.

 

Silvia Szymanowisky nasceu em Frutal do Campo, num verão qualquer, perdido amarelado do céu sob terra roxa de viço. Tem 67 anos de idade e reside na capital paulista, desde sua viuvez, há 22 anos. Este é seu primeiro texto publicado.

 

Clara de Almeida Corbin nasceu numa cidade feia, feia mesmo, de dar dó, quase mais feia que enfeite de natal feito em plástico reciclado: Primeiro de Maio. Professora de filosofia aposentada que não conta a própria idade tem uns anos. Sabe fazer chá e gosta de ser velha porque a juventude é tonta – não há exceções, é um fato ontológico, diriam os filósofos, igualmente tontos.

 

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