Dedos de Prosa III

Marcus Vinícius Rodrigues

 

Foto: María Tudela

 

A FRESTA

 

— “O justo florescerá como a palmeira, crescerá como o cedro no Líbano”.

A voz ecoou majestosa, como se amplificada pelo vão de uma catedral gótica, a abóbada central da nave se esticando para os céus entre a devoção e a afronta. Soberba, diria Dona Antônia com a mesma voz tonitruante que tinha agora no alto da escada. Não estava em uma catedral gótica, nunca mesmo tinha entrado em uma, nem mesmo aquela no Largo dos Mares, imitação moderna e que achava vulgar. Gosta da sua. O pastor transformou um antigo galpão em templo. O teto era altíssimo. No lugar de janelas para a rua, as paredes eram pintadas como um céu azul. Quando se apagavam as luzes e se deixava apenas a iluminação nas paredes, era como se já estivessem todos no céu. Ela se sentia abençoada por estar ali. Cantava o louvor com fé e força, a voz enchendo toda a amplidão.

Mas Dona Antônia não estava no templo. A voz soava amplificada porque metia a cabeça para dentro do armário de mantimentos. Acabava de limpar quando falou.

— O cedro cresce lento, menina, mas cresce alto e forte. Tem de ter fé.

— Ah! Don’Antônia, às vezes eu desanimo. Não vou mentir. Nem sei mais o que…

— Passa as latas.

Luciana passou algumas latas de milho e extrato de tomate para a mulher, que, do alto da escada, foi incisiva.

— Mas precisa ser um rapaz da igreja. Nada de homem do mundo. Esses não dão futuro pra mulher nenhuma. O primo de Nalva?

— Quer nada comigo, não.

— O macarrão, não. Deixa aí fora. Vou fazer uma sopa pra de noite… levar pra Dona Almira.  A filha está de plantão hoje.

— Domingo? Vida de enfermeira é pesada.

— Ela não chega a ser enfermeira. É técnica. Limpa os pacientes. Ganha pouco. É outra que devia ter casado logo. A mãe viúva, doente…. se eu não ajudo, nem sei. Tem de ter caridade, minha filha… e casar bem.

— A senhora casou cedo.

— Casei. Barreto me viu no culto e falou com meu pai. Era bonito, bem vestido. A oficina era pequena, mas tinha jeito de crescer. Já tinha o dobro do tamanho quando a gente casou.

— Que bênção.

— Você sabe em que o primo da Nalva trabalha?

Luciana fez um gesto de negativa enquanto entregava o pacote de macarrão. Dona Antônia recebeu o pacote com impaciência. A menina não percebeu o olhar e continuou passado pacotes e latas.

— Luciana, você precisa prestar mais atenção. Tem de se interessar pelas pessoas, saber o que fazem, onde trabalham. Você não conversa com ninguém depois do culto. Como é que alguém vai se interessar por você?

— Fico com vergonha.

— Ter vergonha é bom… ser recatada. É uma boa qualidade numa moça, mas converse, seja mais alegre.

— Vou me esforçar.

— Bem. Aqui já acabou.

Dona Antônia desceu a escada com o pacote de macarrão na mão. Colocou na mesa e recolheu a escada para levar para o quintal.

— Vamos tomar um cafezinho agora.

— Eu preparo.

— Obrigado, minha filha. Sem barulho. Não acorda Barreto.

No quintal, colocou a escada encostada no muro e subiu a outra escada, a de concreto, para a laje. Dois lances. A casa tinha dois pavimentos e, no alto, uma área coberta onde ela estendia a roupa lavada e o marido fazia churrascos. De lá de cima podia ver todo o bairro com suas casas baixas. A torre da Igreja dos Mares aparecia de costas. Não dava pra ver a Igreja do Bonfim dali. A ostentação dos católicos, dizia o Pastor. “E destruirei do meio de ti as tuas imagens de escultura e as tuas estátuas”. Pegou as roupas na corda e desceu, desta vez, por dentro da casa. Passou pelo andar dos quartos e ouviu o ronco do marido. A porta do quarto estava aberta. Encostou um pouco, sem fechar totalmente. Fazia calor. Desceu com as roupas para a sala de estar.

— A água está esquentando.

— Obrigado. Vou dobrar essas roupas, mas não vou passar hoje, não. Fiz muito pra um domingo. Amanhã eu passo com calma.

— A senhora é tão jeitosa.

— Gosto de minha casa arrumada.

— Quero a minha assim quando casar. Aqui no bairro não tem casa mais bem cuidada.

— Você vai ter sua casa. É direita. Deus recompensa.

Luciana olhava pela janela. Apenas três crianças brincavam perto.

— Aqui é bem calmo. Lá na rua tem pagode o final de semana todo.

— Fui abençoada. A vizinhança é boa.

— E essa moça aí do lado, como é mesmo o nome dela?

Dona Antônia dobrava uma camisa do marido. Um dobrar que deveria ser displicente — ainda ia engomar —, mas começou a acertar o vinco do colarinho com a mão. Forçava o lugar da dobra com a unha.

— Deixa a vida dos outros, menina. Essa é uma ovelha perdida.

— Dizem que ela tem um monte de homem. Será?

— Eu não fico me metendo na vida dos outros, não. É policial. Anda com homens por causa disso.

— Será que já atirou em alguém?

— Mulher policial… É coisa que não concordo. Profissão de homem. Mora aí sozinha. Que futuro pode ter? Trato bem, não tenho preconceito, mas não acho que seja boa amizade.

— Mas é importante a mulher ter uma profissão, Don’Antônia. Acho a farda bonita.

Dona Antônia suspirou fundo.

— Você fica aí pensando besteira… vai acabar solteirona.

— Mas tem mulher policial casada. Tudo direitinho… Don’Antônia, espia. É ela? Esse é o namorado?  Um rapaz bem apessoado… parece direito. Vão passear.

— “Não tenha teu coração inveja dos pecadores; antes sê no temor do senhor todo o dia”.

— Oxe, Don’Antônia. Né isso não. Acho bonito passear domingo de tarde, um sorvete na Ribeira. Eles passeiam sempre?

— Deixe de ser fofoqueira. Vai ver a água do café. Anda.

Luciana sumiu para a cozinha. Dona Antônia ficou olhando para a janela. Do sofá via apenas o céu. A tarde começava a cair. Demorou-se um tempo e foi até a janela. Não chegou a olhar para fora. Apenas murmurou enquanto fechava a janela: “porque da janela da minha casa, olhando eu por minhas frestas”. Voltou às roupas. De lá de dentro, Luciana perguntou se tinha falado alguma coisa. Ela respondeu que estava relembrando uma passagem da Bíblia: “E eis que uma mulher lhe saiu ao encontro com enfeites de prostituta, e astúcia de coração.” Ela recitava provérbios 7.

— Que passagem?

Luciana voltava com o café em uma bandeja.

— Aquele salmo que eu estava lhe dizendo.

— O 92.

— Muito bem. Vejo que está estudando. “Os que estão plantados na casa do Senhor florescerão nos átrios do nosso Deus.” Lembre bem disso, Luciana. Só assim você encontra a graça. Fora da palavra só existe danação.

A moça concordou de cabeça baixa.

— Pega uns biscoitos?

A moça saiu da sala e Dona Antônia voltou à janela. Decidiu que não valia a pena passar calor e a abriu novamente. Luciana voltou com biscoitos salgados.

— Pega aqueles amanteigados. São mais gostosos. Tem uns chocolates no armário. Pega também.

— Mesmo?

— Só um pouquinho não é gula. Vai. Vou guardar a roupa no quarto.

Dona Antônia pegou as roupas e subiu as escadas. Mal chegou ao andar, já podia ouvir o ronco do marido. Abriu a porta devagar. O homem dormia de lado. Estava sem camisa. A barriga grande e peluda avançava para o lado em que ela dormia. Sobrava pouco espaço, caso ela quisesse deitar. As coisas se acomodam, respondeu para uma pessoa imaginária que lhe perguntava como ela fazia para dormir. Deixou a roupa sobre uma cômoda e foi para a janela. Abriu uma fresta e avançou o olhar para a casa vizinha. De sua janela, no alto, podia ver a janela do quarto da vizinha. Dali podia ver parte de uma televisão. Às vezes vinha ver o que a mulher gostava de assistir. Achava que policiais viam filmes policiais, mas não era verdade. A mulher via os mesmos programas de todo mundo. Nada demais. Podia ver, também, um pedaço da cama. O lado vazio. A mulher costumava dormir do outro lado.  Aquele vazio era sempre ocupado por homens. Não eram tantos como diziam as fofocas. A mulher de fato já tinha tido muitos namorados, mas com esse estava já há algum tempo. A cama estava vazia naquele instante, mas Dona Antônia tinha bem viva a memória da noite anterior. Tinha visto os dois se amando. Ficou com vergonha de ver a nudez tão franca daquele homem, a maneira como se curvava para amá-la, lento, carinhoso. Quase uma devoção. Fechou a janela pra não ver, mas não conseguiu fechar tudo. Uma fresta. Por ali entrou a imagem da mulher, o rosto de contentamento durante o gozo — “o meu amado pôs a sua mão pela fresta da porta, e as minhas entranhas estremeceram por amor dele”. Depois do gozo, vieram as risadas frouxas. A felicidade. Fechou a janela, fechou os olhos. A cama vazia ainda rescendia a amor naquela tarde de domingo. Olhou para a própria cama. O marido ocupava quase tudo. Não havia lugar para mais nada.

Desceu para a sala. A mesa para o café estava posta. Louvou a arrumação que a moça tinha feito.

— Uma casa arrumada é convite para o amor, Luciana. Parabéns.

A moça corou. Não se decidia entre a vergonha e o orgulho enquanto servia os cafés, os biscoitos e o chocolate.

— Depois do café, vamos fazer a sopa. Vou lhe ensinar uma receita muito boa.

Dona Antônia, antes mesmo de tomar um gole de café, numa ânsia disfarçada, enfiou um pedaço de chocolate na boca.

 

Marcus Vinícius Rodrigues nasceu em Ilhéus-Ba e mora em Salvador. Tem sete livros publicados, entre os quais “A eternidade da maçã” (Contos, Ed. 7Letras, 2016), vencedor do Prêmio Nacional da Academia de Letras da Bahia de 2016; “Arquivos de um corpo em viagem” (Poesia, Editora Mondrongo, 2015)  e “Cada dia sobre a terra” (Contos, Editora Caramurê, 2010). Seu oitavo livro, “Café molotov” (Contos, Ed. 7Letras, 2018) será lançado em agosto/2018.

 

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