Dedos de Prosa II

Luan Bonini

 

Foto: Almir Bindilatti

 

Entre escorpiões pt. I

 

– E ae, nene.

– Olha, achou alguma coisa?

– Nada. E você?

– Porra nenhuma. Mas foda-se. Que se foda essa merda.

– Tem café?

– Tem sim, vou fazer. E a pequena cozinha se encheu com o cheiro de café.

Depois de uma semana eu estava sentado de novo naquela cozinha. Um ovo, três kilos de arroz e quatro batatas. Tudo encaixado estrategicamente em dois potes. Microondas. Talheres dentro de um

copo. A prateleira encardida suportava tudo aquilo com elegância. Os produtos de limpeza ficavam embaixo, questão de facilidade. “Melhor que nada”, pensei. Até o fim do mês era aquilo. Acendi o último cigarro e espantei a fome com ele. Hora de dormir que amanhã é outro dia.

Dois dias depois arrumei um trampo no porto de Peruíbe. Meus dedos ficavam fodidos, carne viva. Conheci ela na praia, caiçara e escorpiana. Nicole. Morena, queimada de sol e lábios grossos. Pouco

conhecia das coisas da cidade grande. Vendedores ambulantes que disputavam calçadas, mendigos e putas, buzinas e carros. Pouco sabia. Alugamos dois cômodos. Tudo deu certo por dois meses, é o tempo médio para até paranoias individuais aparecerem. Depois tudo vem à tona.

Três meses depois já estávamos um querendo matar o outro.

– Ae, bola um beck?

– Podepa, bolo sim.

Fumei e fui pra casa. Sabia que Nicole estaria em lá e aquilo me desanimava. Sofria por antecedência. As mesmas merdas de sempre. Dinheiro, pai morto e mãe desempregada, quem foi no programa de quem, artistas, yoga e medicamentos contra o peso. Eu aguentava tudo aquilo.

Relacionamentos são assim. O problema era quando estávamos juntos e usando drogas. E começou a ficar constante. As mudanças de humor, agressivas por parte de ambos, nos desgastavam. Dia a dia. Bebida e cocaína, eu preferia a bebida e ela o pó. Nos dávamos bem enquanto tinha sobrando. Depois vinha a merda. Certo dia dei uma rasteira num maninho só porque olhou a bunda dela. E o trampo

continuava. Peixes, camarões, merdas marinhas. Certo dia eu e Nicole tivemos a pior briga. Saiu por uns quatro dias, voltou, como se nada tivesse acontecido. O cheiro de sexo e cerveja ainda impregnava seu corpo. No dia seguinte que voltou quis arrumar outra briga. Algo se quebrou em mim e foda-se. Taquei suas merdas no chão e mandei se foder. Ela gritava e eu também, ela me machucava enquanto tentava se machucar. A merda tava completa. E eu tava no meio. Os dias seguintes foram de silêncio profundo entre os dois. Estávamos imersos nas nossas merdas internas. Depois ela sumiu. E o trampo continuou. Preguiça. Sabia que meus dias naquele trampo estavam contados. Não suportava o cheiro de peixe impregnado nas mãos, roupas e cabelos. O odor piorava conforme o dia passava. Os dedos encaroçados, fruto das cabeças de camarões descascadas. Cabeças e mais cabeças. Bolhas e cortes. Sabia que a merda do camarão fica na cabeça? Arranca-se a cabeça pra tirar a merda. Literalmente o filho da puta tem merda na mente. Barata do mar. Aquela merda preta percorre quase metade do corpo dele. Pelo menos todo dia tinha peixe na mesa. Arrastei por mais três meses o serviço. Peguei o dinheiro, um bucado de peixe e fui pra São Paulo. Trampar de flanelinha não dava tanto, mas os dedos pararam de encaroçar. Pelo menos minhas mãos melhoraram.

Três semanas depois cansei das ruas. Queria um gabinete, algo com ar condicionado. Começo de ano era sempre uma merda, o calor fodia tudo. Ainda possuía dez reais e um maço de eigth. O mundo era

indiferente aos meus problemas e eu sabia disso. Fumei um cigarro e fui entregar currículos. Não deu certo, pelo menos não hoje. Mas amanhã é outro dia. Fechei os olhos e dormi. Bem suave.

No dia seguinte fui no ônibus conversando com um parceiro, trombei por coincidência, tinha acabado de sair da cadeia. Conheci ele em Peruíbe e agora lá estava ele. Vendendo uns halls em São Paulo. Ideia vai, ideia vem, me aparece com uma foto no celular e pergunta:

– Ta vendo essa foto?

– Que foto?

– Essa porra, olha aqui.

– To vendo. E aí?

– Comassim?

– Que que você acha, porra.

– Eu sei lá, acho nada. Que tem?

– A mina tirou essa foto antes de se matar.

– Mas que merda! Porque você tem essas merdas? Assiste essas merdas. Coisa de doente!

– Doente nada, vi hoje numa matéria. Passou de tarde, Datena. Doidera. Procê vê como a vida é um bagulho frágil, né?

– Pode pa, é sim. Falando nisso, se viu o Luis?

– Vishe. Você é o primeiro dos moleques que eu trombo.

– Pode pa, que fita.

Descemos no mesmo ponto. Quando começou a contar sobre a cadeia, logo em seguida, escuto um barulho alto. Ecoado. Me viro e um policial dá um tapão na minha mochila que cai. Agacho pra pegar e levo uma bicuda na bunda. Caio de cara no chão. Merda! Ele começa a esparramar os pertences com o coturno enquanto faz comentários sobre meus pertences. O fardado não se deu ao trabalho de encostar nas minhas coisas com as mãos. Passava o coturno em tudo. “Que merda é essa? Pobre sabe ler agora?”, pega o livro e lê o nome do autor meio sem jeito “FEREZ?!”. “Que porra é essa?”, grita olhando ao redor. Eu sem saber o que dizer fico quieto. Ele me levanta pela blusa e pergunta de novo “Que porra é FEREZ?”. ”É F-E-R-R-E-Z, senhor”. “R de rato”. “É um escritor do capão”.

“E agora favelado sabe escrever? que porra, hein. É o que me faltava”.

Meu parsa não teve a mesma sorte. Não teve o mesmo diálogo. Foi levado não sei pra onde. Tem passagem? Tem? Então vem cá. Nunca mais o vi.

Loucura. Depois daquilo resolvi recuperar o tempo perdido. Comecei trabalhar e estudar. Os currículos finalmente deram certo. 8 horas num arquivo empoeirado e 05 horas numa cadeira de madeira. Depois de um tempo torna-se automático. Ônibus, chefe, carteira rabuda, chefe gritando, almoço, futebol do fds, chefe, ônibus, professor e salas lotadas. De repente acordei dentro do ônibus. Demorei um pouco até conseguir perder a sonolência. De repente pego uma conversa do meu lado.

– “Oi. Você é do noturno né? Faz qual aula no primeiro horário?” um bombado, do tipo de academia, pergunta pra uma morena de vestido preto e pernas grossas.

– “Ah, LP V. Mas…”

– “Aaaaaah, não, é que eu faço uma depois da sua”. O cara responde na sequência.

– “Mas o que você quer saber porra?”. A mina reage. O cara enfia o rabo entre as pernas e sai vazado. Eu dou uma risada. Ela me olha com um olhar ainda cauteloso e diz “Homem tem que ser assim senão monta”. Bem, se ela diz. E comecei a observar outras pessoas conversando. Animadas, afinal, sexta. O professor declama “fim de aula, bom final de semana a todos!”. Finalmente! Ônibus, caminhada, ônibus, caminhada e porta, xave, cheiro de mofo. Boa sexta.

Na mesma época conheci Karen. Morena de início, possui um belo nariz e pernas grossas. A cintura fina dava o toque. Me esperava em casa com uma garrafa de vinho. Aliás, suco de uva com álcool. Conversas sobre o cotidiano, comer, banho e dormir. Sexo deixávamos pro dia seguinte, antes do serviço. De repente, tá tudo no automático. A gente se torna refém da comodidade. Insensível a toda merda. Explodimos nosso cérebros com comida radioativa e propagandas medíocres, um atrás do outro. E plá! Uma arma contrabandeada por um policial gordo acaba na nossa mão. E estouramos nossos miolos. Pá! O dia a dia nos mata. Rapidin. Consome. Quando me dei conta estava na frente de casa novamente. Chave na mão, porta abrindo.

Normalmente encostava de sábado na Santa pra fumar um baseado. E de vez em quando encostava o Felipe. Playboy, branco e faixa preta em jiu jitsu. De cada dez palavras, nove sobre si. Músculos, academia e bandido bom é bandido morto. Um trago no baseado… cof! cof! Tem que matar todos esses filhos da puta. Cof! Gastei mil reais em esteróides. Tudo pelo corpo né?! Ah, eu não aguento. Foda-se, vou embora. Levanto e saio andando. Ninguém entendeu nada e no dia seguinte o neguinho perguntou “Caralho, luã! Que porra foi aquela ontem? Cê saiu do nada.” “Ah, sabe como é. Às vezes nóis passa mal… mas ae vamos fumar um?” “Vamos ae”.

Sentei com o neguinho, nome Guilherme, mas conhecido como neguinho, e acendi o baseado. Já tava bolado. Na sequência dois moleques encostaram no outro lado da praça pra fumar também. Entre um trago e outro escutei entre eles algo sobre as garotas da escola. Cê viu a Bruna? Eu vi, mó gostosa. Essas coisas. De repente um tapão! Plá! Me viro e vejo os dois moleques levando um enquadro monstruoso. Os policiais apareceram do nada. Nessa meu parsa já se ligou, pegamos o beck e vazamos na miúda. Melhor não arrastar. Fui pra casa e queimei lá mesmo.

Domingo e tudo de novo. Segunda, terça, quarta. Quinta-feira e uma japonesa, meio metro e cabelos negros, entra na sala. Começa a falar. E falar. A boca abre, fecha e mesmo assim mantém um sorriso

eterno. Dos assuntos mais alegres, como happyhour, até a crise política atual e morte de Marielle, todos os assuntos eram acompanhados daquele medonho sorriso. Talvez nunca tenha passado necessidade na vida. Um pai professor sócio em multinacional e mãe professora universitária, estabilidade financeira,

professor de dança, escola particular, férias na Europa, boas amizades e ruas arborizadas. Tudo encaminhou aquela descendente asiática pra felicidade. Tanta felicidade que nem a morte ou miséria

abalavam. Nenhum parente viciado em crack ou vizinha suicida. Talvez por isso sorria tanto.

Parei de olhar pra ela, desisti de ouvi-la e comecei a rabiscar num pedaço de papel. Eu? Tinha tudo pra dar errado. E dei. Mas às vezes coisas boas aconteciam. E o segredo é se agarrar nelas. Quando tudo

aquilo acabou fui pegar o ônibus. Acendi o cigarro e percebi. O mundo continuava lá. E amanhã era sexta. Happyhour e os mesmos bêbados de sempre. Beber com o pessoal do trampo é uma merda. Dificilmente dá certo. Os papos viram grandes debates. Ruins são os críticos, pior ainda, críticos escritores. E com essa pérola Oswald inicia aquela merda. Dizia no último domingo ter comido quase um porco inteiro, joelho, toucinho, com arroz e couve. Oswald devorou o toucinho do coitado em poucos minutos. Luisa era vegetariana e começou a discursar sobre amor aos animais e como humanos são horríveis. Antropofagia? Só dos índios. Eu limitava a acenar com a cabeça meio sem entender. Não tinha pique pra’quele falatório. Só queria ir pra casa e dormir.

Dois meses depois perdi o emprego. Justificaram com “falta de interesse” e “corpo mole”. Além de trabalhar era preciso fingir que amava trabalhar. Sem seguro desemprego fui me virando. E sabia me virar. Comprava sucos de 2 litros e fazia 4, 5. Ligava às vezes a tv e porra, que merda fazem com nosso índios? Dizimam a maioria, fodem um monte de tradição antiga, e depois ainda reclamam quando os cabeças vermelhas querem uma terra. Terra Indígena por direito. E dai que índio tem celular?! Todo mundo tem e índio também é gente, também faz parte de todo mundo. Também quer terra. Enquanto a antropofagia indígena e oswaldiana tem objetivo de assimilar qualidades, o canibalismo do dia a dia faz o mais forte comer o mais fraco. Pura devoração. Empilhados em fábricas. Pausados em gabinetes. Continuamos marchando rumo à luz. A luz. Colocamos nossas bolas no cu e saímos todas as manhãs como se usássemos fardas. Aceitamos. Sim, senhor! E voltamos pra casa. Filhos ingratos e esposas tão perdidas quantos nós. Um tiozinho do aluguel, chefe zangado. Taí o sonho brasileiro, americano, venezuelano. Taí. Olhei pro teto e decidi ir pra rua. A chuva tinha acabado e a goteira ainda continuava. Não encontraria o cara do aluguel tão cedo. Só aparecia em dia de pagamento. E tava longe.

 

Luan Bonini Bonilha de Oliveira nasceu em São Paulo, Brasil, no dia 01 de novembro de 1994. Filho de mãe solteira, durante a infância passou por muitos bairros e cidades paulistas, como São Matheus, Jd. Jaqueline, Campo Limpo, Peruíbe. Instalado no Butantã, mais tarde vai morar em Taboão da Serra, Região Metropolitana de São Paulo. Começou a escrever por volta dos 18 anos, influenciado por Ferrez, Hemingway e Celine. Em 2014, ingressou no curso de Letras na Universidade de São Paulo e atualmente tenta viver da escrita.

 

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