Dedos de Prosa II

Viviane de Santana

 

Desenho: Felipe Stefani

 

Emergir

 

Creio que eu tinha vinte e dois, vinte e três ou vinte e quatro anos. Eu pulava do trampolim de cinco metros, pulava e voltava, competia com os garotos, ficava na fila e pulava de novo. Eu estava me divertindo, nunca aprendi a nadar direito, nado do meu jeito, sem controlar a respiração, mas mergulhar não é problemático pra mim.

Então, ele me disse, “se você consegue pular do trampolim de cinco metros, você também pula do de dez metros.” Ele estava deitado na toalha, em cima do gramado.

“É mesmo?! Tem certeza?”

“Claro!” Fiquei alguns minutos na dúvida e, sentada ao lado dele, mirei a prancha de dez metros.

“Então vou pular. Por favor, fique olhando, se acontecer alguma coisa, se eu demorar muito pra emergir, você já sabe, estou me afogando, e você tem que vir me salvar.” E lá fui eu pular do trampolim de dez metros. Subi as escadas, subi as escadas, subi as escadas. Esta foi a primeira diferença que eu percebi: havia bem mais escadas para subir. Cheguei lá em cima e me dei conta da segunda diferença: não havia ninguém ali. No trampolim de cinco metros eu tinha que ficar na fila esperando os moleques se jogarem. Na fila era uma algazarra, falatório, risos, e minha paciência. No trampolim de dez metros eram apenas eu, a solidão e o silêncio. Estranhei! Mas agora eu estava ali, naquele lugar alto e vazio, como se não  pertencesse à piscina, como se fosse um território proibido. Algo perigoso e ameaçador pairava no ar, mas eu não sabia identificar ao certo. O vento era mais forte e arrepiava a minha pele molhada. Ao caminhar pela prancha e chegar à ponta, olhei para baixo: tudo havia se transformado em pequeno e notei o quanto eu estava no alto, distante deles lá embaixo. Um frio suscitou no meu ventre e não era o vento. Pensei em voltar, se me recordo bem, cheguei a dar alguns passos para trás e parei. Continuei estudando a minha possibilidade e tentando captar de onde vinha aquela ameaça que pairava naquele exato ponto do planeta. Acreditei que poderia ser simplesmente porque eu estava só, lá em cima, ouvindo o silêncio. Voltei a caminhar para a ponta da prancha, meus dedos dos pés ficaram agarrados à beirada. Lá embaixo a voragem azul me mirava e eu mirava o azul da voragem. Olhei para a frente: metade do céu, alguns chumaços brancos de nuvens, as árvores verdes e a lanchonete da piscina -, pequenos e distantes. Olhei para baixo, comecei a me preparar para saltar. Pensei nas competições olímpicas, nas mulheres pulando e se rolando e virando no ar, e caindo n’água. Como elas fazem isso? Abri os braços, elas começam abrindo os braços. Me encarnei em uma nadadora olímpica. Eu mergulharia de cabeça, com os braços levantados para o alto, e ao mergulhar, eu logo faria a curva com o meu corpo para dar impulso para a subida. Mas eu ainda estava com os braços abertos me sentindo a estátua de Cristo Redentor, com a pele arrepiada do vento passando pelo meu corpo.

Levantei os braços para o alto, tomando cuidado para não tocar o céu.

Respirei fundo e me joguei.

A queda foi rápida e nada percebi do espaço, senti apenas quando meu corpo rompeu a membrana da água e a velocidade me empurrou para o fundo. Logo curvei meu corpo para o impulso. Comecei a subir sossegada. Eu tinha os olhos abertos e apreciava a luz na imensidão azul suave. E subi… e subi… e subi, mas eu não chegava. Eu nadava e nadava e não chegava lá em cima onde a membrana me separa destes dois planetas: o líquido e o gasoso. Aí, percebi qual o perigo de se pular do trampolim de dez metros: você afunda demais e precisa ter fôlego o suficiente para subir. Eu não tinha, meu ar estava acabando. Assustada, estiquei mais o meu corpo, me esforcei mais, aumentei a velocidade, me concentrei, reforcei os meus esforços e segui em direção à luz. No fundo da piscina, o silêncio continuou, como se tivesse pulado comigo, assim como a solidão. Eu movimentava as pernas e os braços o mais rápido que eu conseguia, empurrando a massa líquida pesada à minha volta e me concentrava para não perder a calma. Meus pulmões queimavam de tanto segurar o ar e por falta de ar. É assim que se afoga, pensei! É assim que se morre! A solidão e o silêncio, que me acompanhavam desde o alto do trampolim, me proporcionaram uma estranha tranquilidade azul celeste. A luz que se movia e cintilava no avesso da membrana, parecia uma entrada redonda para a salvação. Era apenas o sol distorcido pela cor e pelo movimento d‘água.

Eu movimentava as pernas e os braços me esforçando ao máximo. Quando, finalmente, consegui emergir, eu estava sem ar e sem forças, e no primeiro aspirar pensei que fosse engolir o mundo -, o reverso do trampolim solitário e mudo lá no alto, as pontas das árvores, as nuvens brancas, o azul do céu inteiro, o sol estrelado… Eu necessitava engolir ar, respirar,  simplesmente respirar, mas meu corpo amolecido pelos esforços, meus braços e pernas não podiam mais e, sem forças, eu podia afundar de novo. Boiei. Sempre que estou nervosa e prestes a naufragar, eu boio. De novo meus braços abertos, como um Cristo crucificado. Sob mim o ciano do céu.

Eu normalizava a minha respiração, apreciava o oxigênio. Se algum moleque passasse por mim nadando estabanado, eu perderia o controle e afundaria. Um recém-nascido demanda cuidados, ele é frágil e indefeso. Eu era uma recém-nascida. Mas eu não podia explicar isso aos moleques desastrados, eu precisava agora encher meus pulmões. Por sorte, nenhum deles passou por mim, rindo e espirrando água para os lados, agitando a superfície. Eu estava sozinha neste trecho da piscina, a água lisa me sustentava como no leito de um berço.

Aos poucos consegui movimentar os braços e nadar de costas quase até a margem. Com os pulmões cheios me virei e dei algumas frouxas braçadas: alcancei a beirada, me segurei e atingi a escada, subi e saí da piscina caminhando insegura e meio tonta.

Me aproximei dele e o repreendi veementemente, “que grande irresponsabilidade a sua me falar que eu podia pular da prancha de dez metros, eu quase morri!”.

Ele, que esteve o tempo todo deitado na toalha, e nem me viu pular, apenas disse: “mas você está aqui. Você conseguiu!”.

 

 

 

***

 

 

 

No meio do inferno

 

Ele e seu primo foram passear no final da tarde, nas férias de verão, na trilha à margem da floresta avacalhada porque estava sendo desmatada para construírem um balneário. A trilha fazia parte da antiga rua, agora havia a autoestrada logo mais acima e a mata tomou conta do caminho de terra. Eles gostavam de caminhar nesta parte selvagem, desabitada, onde somente alguns raros automóveis passavam na estrada de areia e terra. Andavam descalços carregando as sandálias nas mãos. À volta, os pássaros piavam, os insetos zuniam, os sapos coaxavam e o verde escuro deixava transparecer os raios de sol fraco. As árvores não eram altas e cresciam intactas em um trecho; em outros, elas tinham sido desmatadas. Na mata densa, cobras, lagartas, aranhas e borboletas podiam ser vistas escondendo-se. As formigas formavam longas fileiras na areia fofa. Outros insetos desconhecidos habitavam aquele mundo. De vez em quando eles se deparavam com um corpo no solo e interrompiam o passeio para buscar um pau e mexer no morto. Virava para cima e para baixo, observavam a estranha couraça ou a pelugem, as antenas, as asas, as patas esticadas, e seguiam. Alguns répteis faziam ruído na folhagem ao saírem correndo assustados quando eles passavam falando alto. E eles se assustavam com o susto dos bichos.

Chegaram ao trecho onde ficava a antiga ponte. Mas ela não estava mais ali, apenas o seu esqueleto. Eles acreditaram que podiam atravessá-la. Assim cortariam caminho pela praia e chegariam em casa antes da tempestade. No canto esquerdo do horizonte nuvens escuras confabulavam. Ele foi na frente. No começo da ponte a madeira estava boa, quase no meio, quando ele passou com o primo atrás de si, a madeira rompeu-se. O primo não pôde continuar e regressou. Ele ficou no meio da ponte, entre um buraco e o outro mais adiante, que ele só viu agora. Lá embaixo o rio negro passava com as tranças da correnteza veloz. Do outro lado do buraco havia uma estreita estrutura de cimento dando seguimento à ponte. Ele tinha treze anos e não sabia nadar. Estava preso no meio do esqueleto da ponte.

— Você precisa pedir ajuda! berrou para o primo parado na margem.

— É, eu vou pedir ajuda! Mas primeiro eu preciso cagar! O seu primo gritou de onde estava.

— O que? Eu estou morrendo aqui e você precisa cagar? Ele retrucou irritado.

— Eu preciso cagar! O primo repetiu agitado e se escondeu atrás da moita ali perto.

Ele ficou sozinho, e não sabia se o seu primo precisava cagar porque estava nervoso ou porque não entendeu a gravidade da situação e tanto fazia quanto tempo ele permanecesse em cima da ponte. O melhor seria não contar com o primo para sair do apuro. Olhou novamente para o outro lado da ponte. Não podia olhar para baixo, a correnteza o deixava zonzo e o sugava. A tarde findava-se, a claridade do sol diminuía rapidamente, e as nuvens escuras se intensificavam e aumentavam. Reprovou a sua coragem. Nos passeios pela mata ele sempre saía andando na frente, enfrentando os répteis e os lamaçais. Agora parado imóvel sobre a frágil madeira ele chegou à conclusão que até o primo chegar em casa e pedir ajuda, já teria escurecido. Não havia luz elétrica ali. Seria breu puro mesclado ao ruído dos insetos. Além disso, os morcegos voariam raspando em seu corpo. Ele acreditava que não sobreviveria. Ele não sabia nadar, tinha medo daquela correnteza negra, do breu da noite e dos morcegos invisíveis.

Ele imaginava o seu primo chegando esbaforido em casa: “o Daniel está lá no meio de uma ponte quebrada sem poder ir para a frente ou voltar”.

— Que ponte, menino? Explica as coisas direito! A mãe diria. E depois da explicação confusa seus pais e seus tios sairiam em seu socorro, todos dentro do carro, munidos de faroletes, e seu pai dirigindo com dificuldade no caminho de areia. Talvez tarde demais! “Não. Eu não vou morrer”, pensou. E observou novamente a construção de cimento do outro lado, cogitando pular. Seria um risco de vida, ele sabia que precisava manter a calma e se concentrar e pular antes que a noite caísse como chumbo e então ele não enxergaria mais nada. Lá embaixo a correnteza passava indiferente. Mas ele podia morrer se pulasse tanto para o lado da viga de cimento quanto para a parte de madeira fragilizada. Talvez pular fosse mais perigoso do que se concentrar para permanecer em pé algumas horas, no escuro, esperando ajuda. Quem sabe os morcegos voassem essa noite para outro lado! E os insetos em solidariedade a ele zunissem mais baixo. Mas também o silêncio seria assustador no qual somente o murmúrio das tranças negras lhe chegaria ao ouvido. Era desesperador ter que escolher entre os diferentes caminhos ruins. Por que o seu primo precisava de tanto tempo? E se fosse o contrário, se fosse seu primo parado no meio da ponte e precisasse de ajuda? Como ele reagiria? O primo não seria tão sensato como ele; desesperado, ele provavelmente já teria caído na água. Mas por um momento ele pensou que em vez dele poderia ter sido o seu primo a estar ali. Ele tinha os mesmos treze anos e sabia nadar.

— Onde você está? Ele gritou para o primo e não recebeu resposta, apenas um pássaro gralhou e levantou voo por trás da copa de uma árvore.

Passados alguns minutos o primo finalmente saiu de trás da moita gritando:

— Eu vou buscar ajuda. Espera aí!

— E para aonde você acha que eu vou? Eu estou preso aqui. Ele respondeu irritado.

— Eu sei.

— Isso é muito sério. Vai correndo pedir ajuda. Eu não posso ficar aqui por muito tempo.

— Não se preocupe, eu estou indo. E a figura do primo desapareceu por entre as árvores e o matagal da trilha. Ele ficou só, ouvindo o ruído da água negra murmurando ameaçadoramente sob seus pés. Os pássaros haviam se calado e não mais voavam. Quanto tempo ele precisaria permanecer assim?

Ele precisava pular, sabia que era esse o único caminho. Seria uma questão de concentração, pensou ele, se se concentrasse livre e profundamente, conseguiria. E fixou o olhar na extremidade da viga de cimento, calculou exatamente onde pousaria o pé.

Durante alguns longos minutos ele pensou o que poderia acontecer, imaginou todas as possibilidade: bater a cabeça e morrer com a cabeça rachada ou cair na água e morrer afogado. O rio levaria o seu corpo para desembocar no mar. Ali na desembocadura o rio era raso e seu corpo permaneceria boiando na água escura misturada com a água clara e cheia de espuma do mar.

Ao longe, no horizonte esquerdo, na retaguarda, nuvens escuras já tinham se juntado em uma manada para desabarem em tempestade. E uma tempestade naquela região litorânea, depois de um dia quente, no meio do verão, significava vento forte, trovões ensurdecedores e inúmeros relâmpagos que se iluminavam intensos e tortuosos no azul cinzento do céu e toda a nervura das nuvens poderia ser vista no plasma sobreaquecido.

Ele precisava pular e sobreviver.

Concentrou-se em alcançar a viga de cimento com um pé (ali cabia somente um pé de cada vez), de forma nenhuma podia olhar para baixo. Seu olhar se mantinha firme para a frente, onde à sua volta as árvores, a montanha adiante, o horizonte acinzentado e uma risca de mar formavam a paisagem. O vento soprava cada vez mais forte. Em pé, sem ter onde se segurar, ele fitou mais uma vez as nuvens obesas marchando em sua direção. Pensou em se sentar, assim não se cansaria tanto e não ficaria tonto com o vento lhe compelindo o corpo. Mas imaginar as suas pernas penduradas em direção àquele negro vertiginoso passando lá embaixo lhe causou aversão. A correnteza maligna poderia criar braços ofídicos e lhe puxar pelos pés. Não, não podia se sentar.

Ele precisava pular.

O rio estava cheio e alargara-se, por causa da chuva dos últimos dias. A grossa correnteza fluía rápida, assustadora. O negro da água parecia com um rio de coca-cola, e, conforme o raio de sol e a profundeza da água, ele adquiria um tom avermelhado. A sua nascente ficava nas montanhas cujas silhuetas ele podia ver de onde estava. E ele não acreditava que a cor escura originava-se das raízes das árvores. Para ele aquilo era a urina daquelas árvores na montanha.

Ele precisava pular.

Escurecia muito rápido. Ele não conseguiria permanecer ereto e imóvel na escuridão. E os morcegos vinham à noite. Quantas vezes ele sentiu as asas de um passando rente ao seu braço nu ou ao seu rosto, quando estava sentado no muro do jardim, tarde da noite quente. Ele se assustava. A mãe lhe dissera para tomar cuidado, os morcegos mordiam, podiam transmitir doenças. Ele tentaria enxotá-los com os braços levantados e perderia o equilíbrio caindo na escuridão do rio.

E a tempestade o mirava. Os primeiros pingos grossos começaram a cair e explodiam em sua pele. Mas ele não podia se desesperar, o medo atrapalharia a sua concentração. Como em um alvo, os pingos lhe acertavam, molhavam a camiseta e o short.

Um sentimento forte de arrependimento lhe enjoava o estômago. Por que ele tinha que ter pisado nesta ponte? Por que ele foi o primeiro?

E de repente os pingos cessaram, também o vento forte parou de soprar e se transformou em uma leve brisa morna. Às vezes, isso acontecia, era o intervalo antes do dilúvio.

Ele precisava pular o mais rápido possível antes que chovesse ou escurecesse. Não podia esperar mais. Enrijeceu o corpo, fixou o olhar na ponta da viga de cimento, calculou a queda de seu pé direito exatamente ali. Convenceu-se de que conseguiria e concentrou-se.

Concentrou-se novamente.

E pulou.

O pé direito pousou no cimento duro, o corpo balançou desequilibrado, ele abriu os braços para recuperar o equilíbrio, e olhou para o horizonte a sua frente. A sensação de alívio transcorreu pelo seu corpo. Mas ele ainda não estava fora de perigo. E de forma alguma poderia olhar para baixo. Estava no começo da viga estreita de cimento, com os braços abertos como um Cristo Redentor caminhando com um pé meticulosamente atrás do outro, mantendo a máxima concentração.

E no final da viga havia mais um buraco entre a margem e a ponte.

Depois de toda a coragem e o risco para chegar até ali havia mais um obstáculo, faltavam poucos passos para ele estar a salvo e de novo o perigo a sua frente. Uma moleza de desânimo abateu o seu corpo, mas ele não podia vacilar.

A margem era um barranco escorregadio cheio de plantas gosmentas, e a água estava parada, suja de lama, de pólens e restos de plantas. Ele não podia cair ali, seria fatal, as raízes das plantas embaraçariam em suas pernas e o puxariam para o fundo lamacento. Mesmo que se segurasse nas plantas escorregadias, o breu da noite o mataria de medo sob o murmúrio da correnteza no meio do rio escuro como o inferno.

Ele precisava pular.

Novamente necessitava da concentração e do sangue frio. As taboas e as folhagens sussurravam com o vento. Repensar as chances que ele já tinha refletido até ali ele não queria e também não havia mais tempo. A penumbra cobria tudo de cinza. Ele precisava pular. Era assim que podia ser morrer, concluiu, apenas ir passear em uma trilha, na natureza, nas férias, em um final de tarde quente e cair em um rio. A morte não passava de uma brincadeira de mau gosto. Ele precisava pular. A tempestade estava no seu encalço, se chovesse enquanto ele estivesse caído na margem lamacenta, a correnteza alargaria-se e o atingiria levando-o consigo. Concentrou-se, ele precisava pular. Não cairia naquela água nojenta. Não podia cair ali. Daria o máximo de impulso. Ordenaria o seu corpo a voar alguns ínfimos metros, esticaria as pernas como um sapo na hora do salto. Nada o impediria de atingir o barranco e fincar os seus pés na terra firme. Concentrou-se. Esperou mais um momento e concentrou-se mais ainda.

Concentrou-se novamente.

E pulou.

E sentiu o pé carimbar a sua marca na parte seca e segura da margem, logo fincou o outro pé mais adiante e mais um largo passo. Estava salvo, nem sequer olhou para trás. A penumbra o envolvia e uma trilha seguia em direção ao mar. Estava livre, estava vivo, pensou correndo feliz naquele trecho descampado, de braços abertos para ele. Aspirou fundo o cheiro salgado da mata mesclado ao da terra e vislumbrou a silhueta escura da imensidão do mar. Estava salvo, estava livre.

Ao chegar em casa, encontrou o primo na varanda conversando com o tio. Tudo estava na sua ordem habitual. Seu pai e seus dois tios tomavam cerveja à mesa na varanda. O calor amolecia os gestos e a noite já tinha engolido as cores e os contornos. Nada revelava que eles tinham sido avisados, ninguém se mostrou contente ou aliviado em vê-lo.

Com um olhar intimidador, ele fitou o primo e o seu primo lhe revidou o olhar com expressão indecifrável.

Ele entrou na casa. As suas irmãs e os outros primos estavam na sala. A mãe e as tias terminavam de preparar a janta, na cozinha. Ele foi para o quarto onde se deitou de costas na cama e, com as mãos cruzadas embaixo da cabeça, mirava o teto no escuro, pensando que provavelmente aquela não seria a única ponte quebrada que necessitaria atravessar ao longo de sua vida.

Neste instante a tempestade desabou derramando gotas pesadas de água, o vento soprava veloz assobiando por entre as frestas de madeira e batendo na janela fechada do quarto, os relâmpagos iluminavam seguidos dos trovões estrondosos e ensurdecedores. Dentro da casa foi uma correria para fechar as portas e as janelas. O pai, os tios e o primo entraram carregando copos, garrafas e pratos de petiscos.

Do lado de fora a tempestade uivava como um monstro feroz, soltando raios e batendo a forte cauda de ventania.

 

 

Viviane de Santana (São Paulo), poeta, tradutora e ensaísta, é autora dos livros, Viver em outra língua (romance, Solid Earth, Berlim 2017), Depois do canto do gurinhatã, (poesia, editora Multifoco, Rio de Janeiro, 2011), Estrangeiro de Mim (contos, editora Gardez! Verlag, Alemanha, 2005) e Passeio ao Longo do Reno (poesia, editora Gardez! Verlag, Alemanha, 2002). Publica poemas em revistas e jornais, entre eles, Suplemento Literário de Minas Gerais, Inimigo Rumor, Jornal Rascunho, Poesia Sempre e Coyote; assim como nas revistas Argos e Alforja (México). Atualmente, vive em Berlim.

 

 

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