Dedos de Prosa II

Ana Blue

 

Foto: Luiz Bhering

 

no chuveiro

 

eu passo tanto tempo debaixo do chuveiro que eu já bolei um filme inteiro sobre uma mulher que passa muito tempo embaixo do chuveiro. as crianças vêm e se despedem para a escola, a empregada pergunta o menu do almoço, o marido vem atormentar com as contas, mas o tempo todo ela está ali debaixo do chuveiro, com uma cara de quem já desistiu. o chuveiro é o confessionário dos céticos. eu passo tanto tempo debaixo do chuveiro que eu acordei às 7h30 e de alguma maneira já são 9h55. o chuveiro é um abraço

 

 

 

***

 

 

 

o bicho

 

quando o bicho pega, eu lanço mão das minhas estratégias. eu pinto a unha, pinto o cabelo. às vezes tiro até a cutícula. ouço umas músicas fundamentais, que eu elejo de tempos em tempos. tomo um banho muito quente. faço bolo. faço bolo mais de uma vez. quando o bicho pega eu tento não olhar pra ele. eu varro a casa tantos dias não varrida e reprogramo o ciclo da máquina outra vez. se o bicho pegou muito mesmo, eu lavo o chão da cozinha de fora a fora esfregando cif desengordurante nas paredes. minhas vitórias têm cheiro de cif desengordurante. porque quando o bicho pega eu sei que ou é viver ou é desistir, dormir pra sempre. mães não podem dormir pra sempre, nem filhos. a busca nunca foi, nunca será o caminho da dor. será o do riso, o da carícia, o dos corações que se conectam, se conhecem, se falam. o dos filhos protegidos. e a gente enfrenta um zilhão de coisas todo dia por um pouquinho de amor. o peito não pode doer. nada do que dói é normal. a dor, na poesia e na ciência médica, é pra sinalizar doença. quando o bicho pega, tudo dói. dói minhas costas, dói o pescoço, o ciático, eu nem tenho idade pra saber o que um ciático em crise representa. quando o bicho pega, e eu tenho que decidir viver, e não me deixar ficar doente, ele me pega frágil, na cama, sem fome, não me deixa comer. não me deixa levantar, não me deixa dormir. mas me pega mãe, mulher e resistente. eu lanço mão das minhas estratégias. é hora de vencê-lo, porque quem escolhe viver não entra no caminho da dor. o que dói é doença. quem escolhe viver tem estratégias permanentes pra se fazer funcionar. mesmo as mais bestas. eu tiro os pelos da cara, eu pinto o cabelo. estou em milhares de praças, eu estou toda de preto e vermelho. eu passo batom. eu visto roupa bonita. quando o bicho pega eu sei que é hora de ficar limpa, tomar banho e almoçar e tirar roupa do varal, lavar banheiro. é hora de pensar em ganhar dinheiro e viver de cabeça erguida, pagando limpo. esse bicho me pega e me bota doente, tristinha, magrela. mas eu saio heroína, querendo casa limpa, vida decente, comprar da vitrine sem perguntar preço. se a gente souber dominar e viver com o bicho da gente, a gente vive. a gente sai da merda. eu garanto. eu conheço o meu bicho. ouço o que ele me diz. ele tem razão, a maioria das vezes

 

 

 

***

 

 

 

doida varrida

 

não sei muito bem com qual intuito, mas minha mãe me contava histórias escabrosas da roça, às vezes até mostrando o local do fato trágico – e, muitas vezes, sobrenatural – ocorrido. tinha a história do menino do rio, torturado e escravizado, e da volta morena. tinha a história da noiva na igrejinha e a da criança que morreu afogada no poço porque a mãe não deu mortadela. todas envolvendo morte jovem e trágica, mas a única que me assustava mesmo era a da simpatia da bananeira. nem tinha morte, mas tinha loucura. perder para a morte é menos cruel que perder para a loucura

minha mãe jurava de pés juntos que há muito tempo uma moça muito ingênua e pobre foi convencida por outras moças, um pouco mais cruéis e abastadas, a fazer uma simpatia para arranjar marido. o ritual envolvia cravar uma faca no coração de uma bananeira à meia-noite

e lá foi a menina, esperançosa, na hora determinada, apunhalar a verde amiga que nada fazia da vida além de parir bananas – ao que as outras aparecem gritando, gargalhando sinistramente na mata escura, jogando ovos nela, fazendo sons animalescos, vestindo máscaras terríveis na cara. dizem que a moça, coitada, nem bem aos quinze anos, ficou doida, doida varrida, traumatizada

a moral da história, pelo que eu entendia da minha mãe, é que no fim das contas, se a gente não abre olho, a gente fica doida varrida por causa de homem

 

 

 

***

 

 

 

amor pra mim

 

amor pra mim é parar em qualquer barraquinha de comida e agradar a barriga com qualquer dinheiro. amor pra mim é oferecer o casaco quando o meu eu esqueci. amor pra mim é comprar presente besta só porque saiu o fgts inativo. amor pra mim é suportar parente embriagado e farofeiro. amor pra mim é lembrar que se levar coca diet pode dar morte. amor pra mim é caminhar do mesmo lado na rua e ouvir a minha voz entre outras milhares de outras vozes. amor pra mim é fazer cofrinho junto com moeda de um real. amor pra mim é buscar sempre o mesmo alvo com o mesmo olho. e mais que com o mesmo olho, o mesmo olhar. amor pra mim é não deixar de ser o que era antes, mas deixar de ser também, pra ser melhor. amor pra mim é levantar antes e passar o café, buscar pão. amor pra mim é nem brincar com a ideia, deus me livre, de ver amor chorar. amor pra mim é nem brincar com a ideia da falta, da fome, de não ter em quê acreditar. amor pra mim é passear o cachorro. amor pra mim é lembrar que prefiro queijo prato. amor pra mim é jogar o lixo lá fora. amor pra mim é uma eterna adaptação de dois lados, perfeitamente opostos mas equilibrados. amor pra mim é um mundo onde uma pessoa vai ligar e a outra vai atender. e se uma não ligar, a outra liga. e tudo bem. amor pra mim é uma conversa que não termina mesmo se ninguém ligar. amor pra mim é um lugar de respostas, não de perguntar. amor pra mim é não precisar passar pela terrível espera do desconhecido. amor pra mim é comprar chocolate. é saber ganhar também. amor pra mim é uma barriga quentinha

 

 

 

***

 

 

 

pose antipática

 

eu tive um casal de tios que brigava à beça. ela queria passear com as crianças e comer coisas gostosas, mas ele queria só dormir. não gostava de nada na vida. ela queria exibir as roupas novas e os batons da avon, mas ele nem bem olhava pra ela. não gostava de nada da vida

não gostava do flerte nem das coisas das crianças, não gostava do trabalho que o casamento dá. o tempo todo enfiado no sofá da sala com um ar de quem nem estava ali. vai ver nem estava. era um holograma tradicional brasileiro. várias vezes me assustei de entrar na casa deles e ver ele lá, o espectro de um pai, de um marido, de um homem cansado que não quer nada da vida além de uns tantos maços de derby

separaram, claro, muito bem separadinhos, a separação é o destino inevitável dos homens que não gostam de nada da vida. mas ainda hoje eu lembro que, depois das discussões, eu o flagrei várias vezes deitado no chão, na frente da porta do banheiro, se esgueirando naquele um centímetro e meio de abertura pra ver minha tia pelada tomando banho

ele podia ter a mulher inteira, qualquer hora, se a ouvisse, mas achava melhor perder a mulher que a pose antipática

 

 

 

***

 

 

 

algoritmo

 

se trombam na rua, do nada

– oi fulane!

– oi cicrane!

– como tão as crianças?

– eu te liguei a semana inteira e só deu caixa postal

– fiquei sem carregador. e bertrane, tudo bem?

– liguei domingo de manhã, domingo de tarde, segunda e ontem

– sei… celular desligado. seu cabelo tá bonito, cortou?

– impossível falar com você, se precisar numa emergência não consegue

– eu não sou muito assim de celular não… e o emprego novo lá, tá curtindo?

– botei crédito só pra ligar pra você

– bom te ver… eu vou andando pra casa, vamo marcar alguma coisa?

– só ontem eu liguei três vezes

 

 

 

***

 

 

 

pote de memórias

 

doce de leite pastoso. um vício escroto, um vício triste. meto a colher uma, duas, três vezes no pote, absorta. chupo lentamente a colher, fazendo bicos e tudo o mais, de modo que o doce forma um pequeno bolo em cima, um bolo redondo, lambido pelo céu da boca. tem graça assim, comer devagar, sentindo bem o sabor. criança, era obrigada a comer depressa. eram muitas bocas sôfregas em casa

meu vício em doce de leite pastoso me levou a crimes. a assaltar muitas vezes a geladeira da rose, com a colher em punho. e enfiar o produto roubado todo de uma só vez na boca. pobre rose, que morreu dando à luz ao terceiro filho. minha tia levava as sobremesas todas da filó pra gente, um bando de criança esfomeada, eu lembro. comia rápido, pra ninguém tirar o que era meu. eu tenho pressa do gosto. enfio a colher no pote, terceira, quarta vez. doce de leite pastoso é um pote de memórias

 

ana blue, 32 anos, brasileira, tico-tico no fubá, nascida e domiciliada em nova friburgo, rio de janeiro, brasil, registrada no cpf sob um número de onze dígitos que nem todo mundo, jornalista, cronista e poeta há trocentos anos, mãe de três garotos maravilhosos, declara, para os devidos fins, que qualquer semelhança com a sua vida nesses textos não é mera coincidência, porque sofridos e esperançosos somos todos nós

 

Clique para imprimir.

Comente

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *