Dedos de Prosa II

Caio Russo

 

Foto: Hermes Polycarpo

 

Lógica da imobilidade

 
Para Priscila Faccini, viragem do meu ponto sem volta

 

[…]

 

é muito diferente de cadeiras, não, o sofá é a expressão, a encarnação mesma da solidão, no sofá, deitada sob sua superfície sendo eu mesma o sofá, o que eu posso ser, o que eu posso fazer, eu me concentro, eu me concentro no ponto fixo da parede e deixo que a ausência tome conta de mim como se eu fosse eu mesma um tipo muito particular de necrotério de mim mesma, uma cidade subterrânea de tudo aquilo que não fui e não chegarei a ser. E ali, bem ali no sofá, nesse lugar, nessa terra, nesse plano, nessa superfície de que é feita para o pensar e do pensar, o que eu podia fazer, o que eu podia verdadeiramente fazer? Eu podia me perder, me perder um instante, me desmanchar um tantinho que fosse, eu podia seguir ali deitada e continuar deitada, fazer parte da atmosfera, me condensar no pequeno vento que vinha da fresta de uma janela aberta num dos lugares da casa, essa casa, essa mesma casa, a casa de todos os dias, a casa que antes não tinha asfalto mas agora tem, uma casa asfaltada há muito tempo

 

[…]

 

mas deitada no sofá, olhando esse ponto fixo, talvez uma mosca, talvez um qualquer coisa, talvez eu mesma, olhando esse ponto, me permanecendo nele, dançando ao redor dele, gritando em rituais da qual sou a única inventora na separação dele como parte dele mesmo, o que vem, o que vem de um lugar que eu não sei mas que existe em mim, vem um tipo de instinto, um tipo de cheiro, um tipo de radar performático que me faz perceber e notar o que eu sou sem ter de fato sido mas ainda por restar, mas quando estou sendo isso me dói, isso me dói sobremaneira nas articulações

 

[…]

 

isso me dói também no próprio estase de me encontrar completamente extática sobre o sofá, o sofá me dói um pouco, posso dizer que o sofá também me dói um pouco, posso dizer assim e só, no entanto, há um problema, há um problema maior que me demanda no sofá, pois o sofá é o lugar em que eu posso não estar, em que eu posso escapar, num pequeno buraco da parede, para o lado de lá do real, plainando num vaporoso continente de espera em vias de balbuciar um algo ainda

 

[…]

 

mas confesso, a simplicidade da cadeira me faz navegar no naufrágio de não saber me manter sentada, só deitada, amarrada ao mastro o canto da sereia me fascina de morbidez adolescente, por isso serei sempre a criança perdida no mercado sem mão que lhe conduza os sentidos, uma tautológica menina numa extensa sessão de enlatados, circulando entre gôndolas num repetitivo pendular desde o medo sufocante, perdi muito, perdi o que não deveria ter perdido, o que não poderia, perdi o fundamento do perder, mas algo se passa sem que eu saiba, um anonimato de rosto escondido, um deixar-se descer até ao fundo sem roteiro de mapa no retorno, como um mergulhador das superfícies estriadas, um rasgo no tecido do lembrar, uma farpa de memória a sustentar meu imenso edifício de lamentos, tenho vocação para carpideira, conheço a marcenaria da lágrima desde o abaulado da gota, esculpo as paredes do choro no burilar que me faz faiscar, como um enxame de vaga-lumes noturnos, o cobre da minha desesperança

 

[…]

 

mas há um algo, há aquilo que se passa e que chamo de dor porque a criatividade de nominalista sempre me fez tamanha falta, denomino dor o momento exato em que ela se interrompe, o clima de alívio é sintetizado nesse hesitar cinzento de que logo volte, de que logo as ruínas se ergam nos confins de um pouco de lama presa na sola, de que minha banalidade não atravesse o odor de café no insólito da manhã vindoura, aí eu me preocupo, me inicio na escuta do que em mim há de estanque, o que há de destituído em ídolos a não ser no vazio do templo, sou a barragem de mim mesma, o empecilho sem caminho sedimentado, a imobilidade na pedagogia das pedras

 

Caio Russo é escritor, historiador e pesquisador em Estética Contemporânea, Teoria Literária e História da Arte. 

 

 

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