Dedos de Prosa II

Rodrigo Melo

 

Ilustração: Ana Luiza Tavares

 

OS REINOS DA CHUVA

Era uma noite quente naquele apartamento do outro lado da cidade e eu estava deitado sobre o sofá que ela havia comprado uma semana antes – o sofá macio, de vinil preto, dividido em doze vezes no cartão. Pensava no conto que teria que escrever para uma revista. O prazo estava perto de acabar e eu ainda não tinha conseguido um único parágrafo. As coisas muitas vezes parecem mais complicadas quando se tem um prazo. Na tevê passava um faroeste. Dois sujeitos, um de frente para o outro, no meio de uma rua empoeirada, com as mãos sobre os seus coldres, à espera de um sinal. Talvez se eu fumasse o baseado que tinha no bolso as ideias começassem a vir e a história ganhasse forma e eu conseguisse finalizá-la a tempo. O problema era que ela não gostava do cheiro. Por conta disso, eu teria que ir até a praça lá embaixo, escolher um dos bancos que ficavam meio escondidos pela sombra das árvores e fazer tudo muito rápido, na esperança de que não aparecesse qualquer carro de polícia.

Um dos sujeitos na tevê era louro, alto e tinha uma estrela no peito. O outro era só um mexicano com o seu chapéu redondo e as suas roupas sujas e o seu sorriso era o sorriso de quem não tinha muito a perder. Talvez estivesse bêbado. De repente, ele puxou a arma e a apontou para o cara com a estrela no peito. Antes que conseguisse atirar, recebeu dois tirambaços e caiu estatelado no chão. E então, vinda do saloom e das casas ao redor, uma multidão começou a se formar em volta do seu corpo.

– O que é isso, Fófis? – ela perguntou, segurando uma vasilha com pipocas na mão.

– A vida – respondi.

– Não seria a morte?

– As duas. Às vezes as duas se misturam e viram uma coisa só.

Ela jogou um punhado de pipocas para dentro da boca e ficou a me olhar.

– O que ele fez para ser morto?

– Era mexicano.

– Só?

– Só… O nome desse loiro com a arma na mão é Randolph Scott. Tenho um amigo que é fã dele.

– Bonitão.

– Dizem que era gay. Mantinha um caso com outro famoso. Não lembro o nome.

– Não deve ser verdade, Fófis. Olha só pra ele, olha para o jeito dos ombros, dos braços. Posso colocar a mão no fogo por um homem assim.

– Escuta, não quero ser chato nem nada, mas não gostei desse apelido que me deu. Prefiro que me chame pelo nome, se não se importar.

– Tudo bem, eu não me importo. Tem certeza de que quer assistir isso?

– Não. Vou descer para fumar.

– Vai lá na praça?

– Sim.

Vê se não demora. Fico preocupada.

Era geóloga, mexia com pedras, matéria morta, tinha um gato que às vezes desaparecia e, tempos antes, numa noite feito aquela, foi até o quarto e voltou com uma caixa enorme, de onde tirou duas facas, uma taça de metal e uma porção de cartas com desenhos estranhos. Jogou tudo sobre a mesa, acendeu dois incensos e disse que a minha alma era velha e teimosa e que eu precisava evoluir. Disse ainda que a minha vibração tinha uma tonalidade verde escuro ou azul, o que poderia significar uma infinidade de coisas. Eu gostava dela, mas achava aquilo chato e com o passar do tempo tudo começou a soar exagerado, como se fosse uma espécie de resgate entre nós dois. Nos encontrávamos apenas para trepar, comer e assistir tevê, sendo que cada vez mais comíamos e assistíamos tevê.

Em vez de descer, fui até a cozinha e abri a geladeira. Havia uma lata de Malzebier escondida na parte dos tomates. Me sentei num banquinho ao lado do fogão e acendi um cigarro. Dei grandes goles e longos tragos. Por um instante, fechei os olhos e tentei me imaginar longe dali, talvez nadando em uma piscina aquecida, comendo profiterolis numa sacada de frente para o mar, andando de bicicleta em alguma paragem sagrada e especial. Por algum motivo, não consegui. Abri novamente os olhos e enxerguei, através do basculante na cozinha, o reflexo das luzes lá fora – as luzes de ilhéus, a cidade em que nasci e continuava a viver. Pensei que àquela hora, em alguma outro lugar, alguém talvez compreendesse tudo o que lhe acontecia e até se sentisse feliz. Alguém que não ficasse o tempo inteiro se perguntando o que cada coisa poderia significar.

Ela havia mudado de canal quando voltei. Os cabelos negros caíam sobre o sofá e suas pernas morenas se esticavam até a mesinha de centro.

– Tô indo.

– Pensei que já estivesse voltando.

– Tô indo pra casa.

Ela se virou e ficou a me olhar.

– Está chateado?

– Não. Tenho que entregar um texto até amanhã.

– Escreve ele aqui.

– Deixei o rascunho em casa. Melhor eu ir.

Caminhei até a porta e ela me seguiu. Nos beijamos. Sua boca tinha gosto de manteiga e sal. Havia qualquer coisa diferente no seu olhar. Como se soubesse que aquela seria a última vez.

Saí do prédio, caminhei até o fusca, dei a partida nele e coloquei uma música para tocar. Era Kingdons Of Rain, de Mark Lanegan. Ao meu redor, a cidade adormecia, uma e outra janela acesa, e por um momento me pus a imaginar as histórias que aquelas janelas guardavam e tornei a acreditar em belos e intermináveis amores e pensei em como tudo pode ser bonito e intocável quando a gente realmente precisa ou quer. Repentinamente, lembrei do nome do outro ator, mas já não importava mais. Tanto ele, quanto as cartas de tarô e o sofá de vinil haviam ficado para trás. Naquele instante, eu era apenas aquele sujeito a cruzar a cidade dentro do seu fusca bege, acendendo um baseado, calculando que talvez uma hora todas as coisas fizessem sentido e que bastava não desistir. Bastava peitar a fera e continuar, neblina adentro, até a vista clarear. E foi assim que segui: escutando a voz triste e rasgada de Mark Lanegan e sentindo que a cada tragada e a cada metro que o fusca vencia, eu me transformava em um homem mais livre, mais perto da verdade, e, por isso, um homem também melhor. E pensar aquilo me fez um enorme bem. E eu então comecei a sorrir.

Rodrigo Melo vive em Ilhéus, no sul da Bahia, e é autor de Riviera, romance prestes a ser lançado pela Editora Mondrongo. 

 

 

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4 Comentários

  1. Como sempre uma ótima leitura, nunca se perde tempo lendo um conto seu, man!! Nunca.

  2. Ler os contos de Rodrigo é também esperenciar toda a história contada por ele. É muito real! Parabéns!! Excelente!!

  3. Grande conto. Na pegada certa, deixando pegadas certas.

  4. Rodrigo é excelente, me vejo muito em certas situações por ele narradas. Obrigado

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