Dedos de Prosa II

Catharina Azevedo

 

Ilustração: Drika Prates

 

O pedido

 

Ela começou a atravessar em um passo pequeno, amedrontado. Os olhos cinzentos e lacrimosos varavam a rua em uma súplica muda, procurando se deter no primeiro transeunte. Era tão velha que parecia parar a qualquer momento para dizer que havia sido testemunha da primeira pedra que colocaram na rua, quando a rua ainda era feita de pedras. Olhá-la era como ver algo capaz de tombar a qualquer momento; não, nem tombar, que haveria no tombo ainda uma violência que não combinaria com ela. Parecia mesmo era prestes a desvanecer, assumir as cores da noite antes de sumir lentamente, imperceptivelmente — ela estaria de mãos dadas com o passante que se deixasse alugar, um tipo mole demais para repeli-la: aqui (a voz trêmula), aqui era a antiga casa de um industrial, uma construção tão linda (os olhos lacrimosos), datava do período do Imperador. Não, acho que era colonial — e em um átimo, seu corpo feito de éter, um vento noturno, nada.

Do outro lado da rua, as meninas faziam ponto. Equilibravam-se em saltos imensos, desfilando os corpos repletos de lantejoulas pretas, rosas, douradas, coladas no busto ou nas saias curtas. Uma delas viu a velha e cutucou a colega com o cotovelo. Apontou para o outro lado com o queixo.

— Ó lá, alguém largou a vovó no Centro.

— Vai ver se perdeu — disse a outra moça. Não insistiu no assunto: um carro preto se aproximava, e por trás do vidro abaixado um homem musculoso fez uma gracinha. Ela se encostou no vidro, o antebraço roçando entre o do homem, as frases retardadas por um chiclete entre os dentes brancos.

A primeira moça continuou olhando. Chamava-se Daiane. Tinha outro nome, mas não importa. Tinha também uma pele branca emborrachada, como de lagartixa. Assim que chegou, disseram que era pele daquelas lá do interior mesmo, as tabaroas. Pois era mesmo do interior e possuía uma história difícil, acreditaria ser sofrida caso não fosse tão atordoada em relação aos seus próprios acontecimentos particulares — uma história dessas que empurra as mulheres pra zona, enfim. Mais do que loiros, os cabelos eram amarelos, tingidos da cor de gema de ovo, e naquele momento Daiane não acreditou que a mulher fosse atravessar a rua.

Porque, por estranho que fosse uma idosa no centro da cidade àquela hora da madrugada, caminhando seu passinho pequeno que ignorava que tudo ao redor estivesse um ermo; mais estranho ainda seria aquela velha prosseguir até o outro lado, visto que do outro lado havia a zona e mais nada. Entretanto ali estava ela, com seu passo de santa. Talvez fosse uma visão de santa.

Daiane se aproximou de outra moça.

— Tem algum velho aí hoje?

A mulher lhe lançou um olhar desconfiado.

— Que foi?

— A senhorinha tá vindo pra cá — Daiane apontou com o queixo outra vez. — Acho que está procurando o marido. Ou o filho.

— E eu com isso? Suma daqui, vá, você está me atrapalhando.

Daiane abriu caminho e voltou ao trabalho. Houve justiça no fato que, uma vez tendo ganhado a calçada, a velha procurasse seu braço para encaixar a própria mão e dizer, numa voz também tímida:

— Mocinha, onde que eu falo com o dono?

Ela deu um sorriso nervoso. Retesou o corpo. Outro carro se aproximava. Tentou afastar o braço com delicadeza, mas o aperto da velha pareceu se tornar, de repente de ferro.

— Preciso falar com o dono.

— Minha senhora, isso aqui é um puteiro.

E a velha respondeu:

— Eu sei.

Muitos pensamentos podiam ter tomado conta de Daiane ao escutar a afirmativa; prevaleceu, entretanto, o medo pelos clientes que perdia a cada segundo que demorava com a velha. Pior ainda se lhe associassem indelevelmente à figura encolhida da mulher — um dos homens nos carros que passavam já havia gritado uma piadinha obscena: é quanto com a vovó? Daiane prosseguia com seu riso nervoso, um riso que mascava o desconforto até que este se encolhesse e se disfarçasse.

Mas não houve jeito de se livrar da velha. Logo as outras moças se aproximaram sorrateiramente.

— A senhora está se sentindo bem?

— Estou, estou sim. Quero falar com o dono.

O “dono” era um homem negro do pescoço de touro que se chamava Cláudio. Se não era bom, também não era de todo ruim. O fato é que nenhuma das moças tinha vontade de chamar por ele — o que seria um sinal de desordem, e não havia, entre elas, nenhuma que quisesse admitir uma desordem. Desconheciam se Cláudio estava de bom humor ou não: a mesma mão capaz de matar um cliente violento, daqueles que obrigam coisas nojentas e substâncias; essa mesma mão poderia lhes marcar a pele caso se sentisse no direito. Especialmente os assuntos relacionados a dinheiro o transformavam em um bruto.

Foi, por fim, Soraia, uma das mais antigas, que resolveu explicar:

— Dona, aqui a gente não tem chefe, chefe é o cafetão.

— Mas é com ele que eu quero falar, mesmo.

E, porque nenhuma delas se moveu um centímetro sequer, a velha ajeitou o casaco de lã e avançou para a construção.

Uma luz vermelha brilhava ali dentro. Dois quartos tinham as portas fechadas; em um se entrevia uma cama de solteiro, encostada na parede, um espelho, uma cadeira e o que pareciam ser revistas pornográficas em uma cômoda. A velha avançou muito cândida pela sala até dar com um homem calvo, de uns cinquenta anos, que ria de um vídeo qualquer no celular.

Ele levou um solavanco. À sua frente, a velha toda tremia. Usava um casaquinho de lã com um único botão grande, fechado sobre o colo.

— Como posso ajudar a senhora? — perguntou, desconcertado, em uma incerteza entre enxotá-la ou apresentar-se mais polido.

— Estou procurando um homem — disse a velha muito claramente.

Atrás, as moças — cinco das quais não tinham medo de aborrecer Cláudio, ou sentiam que dinheiro algum daquela noite pagava serem testemunha dos acontecimentos — suspenderam a respiração.

A velha prosseguiu, como se aquilo se tratasse de uma entrevista de emprego:

— Me chamo Dita. De Benedita, mas todo mundo sempre chamou assim.

— Como que a senhora chegou aqui?

— De condução.

— E tá procurando homem pra que? — perguntou Cláudio, abobadamente.

— Pra fazer amor.

Restou o silêncio. Uma das moças começou então a rir — tentou esconder o riso entre as lantejoulas da roupa, mas este lhe ultrapassou a boca, transformando-se em uma gargalhada que contagiou as outras pouco a pouco. Dita continuava, entretanto, impassível.

— Meu marido morreu faz tempo, estou cansada de ficar sozinha. E, Deus que me perdoe, não era assim tão bom.

— O amor não era bom? — uma das prostitutas perguntou.

— Assim, assim. Mas Deus que dê paz a ele, era um homem justo. Nunca me faltou nada, não.

— Tô vendo que faltou — Soraia respondeu com malícia.

Cláudio fez uma cara feia — estava gostando cada vez menos daquela situação. Bateu as mãos, virando-se ríspido para as moças:

— Bora, circulando. Chega de corpo mole.

A seguir tornou à velha e acrescentou de mau humor:

— Aqui não tem homem nenhum, só mulher.

Esperava com aquilo — não sabia o que esperava. Era inimaginável que a velha fizesse o caminho de volta pelo bairro semi-abandonado àquela hora. Sequer sabiam como ela tinha sido capaz de chegar até ali.

Ficaram assim por um momento, Dita alisando a saia, aprumando o cabelo ralo penteado e perfumado. Estudou as moças uma por uma.

— E mulher? — perguntou, por fim.

Mulheres, haviam; impossível negar. Dita atravessou a todas com o olhar cinzento que lacrimejava. As moças deixaram de enxergar a velha, passaram a ver apenas um corpo nu.

Do centro do grupo, saiu Daiane. Pôs as mãos na cintura.

— A senhora trouxe dinheiro?

Dita agarrou uma bolsinha minúscula.

— Trouxe, tudo aqui.

— Olha que é caro.

Virando-se para Cláudio, acrescentou:

— Acho melhor ela ficar pra dormir, não quero me meter com caso de morte de velha nessa rua.

Tomou Dita pela mão e a levou ao quarto. As moças puderam ouvir a velha falar, antes que a porta se fechasse:

— Deus te abençoe, filha.

Catharina Azevedo é natural de Salvador, Bahia. Em 2020, publicou o conto No Intervalo, presente na antologia “Soteropolitanos” (org. Matheus Peleteiro, edição independente). Seu primeiro livro de poesias, “deixe o bando correr selvagem”, está em pré-venda pela Editora Mormaço.

 

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