Dedos de Prosa II

Rodolfo Guimarães Neves

 

Foto: Yuri Bittar

 

O CONCÍLIO

 

Telepaticamente, um filho se dirigiu a um dos pais, ambos diante de um grande visor, pelo qual se observava o esplendoroso planeta Terra em sua contínua rotação. Há milênios os Ankers aboliram a fala.

— Pai, as chances são de 0,3366%.

A Estatística e a Probabilidade dessa civilização eram infinitamente mais avançadas que a dos humanos, aos quais mais pareceriam pura precognição.

— Em quanto tempo? — retrucou o pai.

— Menos de um século, na contagem de tempo deles. Eles estão no ano 2126 D.C.

Uma lágrima rolou do olho esquerdo do Pai, que continuou:

— Sabemos quem viemos resgatar.

O filho fez uma súplica:

— Nossa facção acredita neles, Pai. Dê-nos uma chance. Convoque o concílio.

O Pai olhou para seu filho. Ainda tinha muito que aprender. A compaixão, entretanto, era algo caro demais à sua civilização e devia ser respeitada. Entendia a imaturidade dele e de todos de sua facção.

No coração da gigantesca nave à órbita da Terra, cuja civilização humana sequer suspeitava de sua presença, apesar de todo o seu avanço tecnológico, com seus satélites e estações espaciais, um concílio que decidiria a sorte da Humanidade foi aberto em uma grande assembleia. Ao centro, os pais, à esquerda destes, os filhos da facção humanista e, à direita, os filhos da facção legalista, a grande maioria.

Na abertura dos trabalhos, os pais telepaticamente lembraram a todos os filhos:

— Vocês sabem de nosso propósito neste sistema solar. Não precisamos lembrar que o tempo é escasso e nossa energia, ao momento, também.

A viagem tinha sido muito longa.

Ao centro da assembleia, imagens mentais compartilhadas eram geradas pelo poder das mentes de todos.

O advogado, representante de toda a facção humanista, tomou a frente:

—  Pais e irmãos, a epopeia humana na Terra corre o risco de chegar ao fim em pouco tempo. É algo precioso demais para ser ignorado.

Imagens em sequência de todos os fatos humanos mais notórios foram projetadas ao centro do grande anfiteatro. O líder da facção legalista deu um passo à frente e respondeu:

— Pois a culpa é toda dessa civilização. Eles causaram as mudanças climáticas, ofendendo nossa grande Mãe Natureza, impuseram a si próprios o risco nuclear iminente, perderam gradativamente seus valores e se tornaram vis e malignos. Como disseram nossos pais, aqui presentes, não nos esqueçamos de nosso propósito. Catalogaremos suas conquistas em nossa enciclopédia, assim como fizemos com outros seres.

Os pais assistiam ao debate com olhares serenos e muita atenção.

— Mas eles têm chances de sobreviver e reflorescer! — disse o advogado.

— Ínfimas, nada que possa justificar nosso colossal empreendimento, que tanto demanda tempo e energia.

As imagens ao centro converteram-se em cenas de destruição e guerra.

— Tenham compaixão, meus irmãos legalistas…

— Ora, meus irmãos humanistas, a nossa lei é justamente o Amor. Há diversas espécies mais empáticas que os humanos. Não há como salvar todas do mal que essa espécie que vocês defendem causou.

As imagens ao centro do anfiteatro alternavam-se em representações de cavalos, elefantes, cachorros, pinguins, baleias e outras mais.

O advogado humanista disse:

— Eles são mais inteligentes, têm engenharia, sabem coisas da matemática, colonizaram seu planeta vizinho…

— Não nos faça rir, meu irmão — disse o líder legalista — suas construções, para nós, que estamos a milhões de anos à frente, não se diferenciam muito de uma casa de um pássaro joão-de-barro. A questão aqui é moral, e vocês, humanistas, sabem disso!

Os pais intervieram em uníssono em sua telepatia:

— Lembramos que precisamos de todo o amor possível para vencermos as forças entrópicas do Grande Nada.

O líder legalista lançou um olhar compreensivo aos pais e, logo após, desafiador ao irmão, advogado daquela causa perdida. Este, com lágrimas nos olhos, implorou por compaixão:

— As artes, não nos esqueçamos de sua bela arte.

Cenas de arquiteturas, pinturas, filmes, peças de teatro, esculturas e todas as formas de artes humanas, em sua maior expressão, surgiram no centro da grande assembleia.

— Já está em nossa enciclopédia, irmão, não será esquecida. Além disso, todas as formas de arte humanas estão em declínio há décadas.

— As grandes personalidades dessa civilização e seus grandes mestres benfeitores, seus ensinamentos…

Imagens de Shakespeare, Buda, Gandhi, Jesus, Madre Tereza de Calcutá, Gilberto Gil, Martin Luther King, Mandela, Leonardo da Vinci, Michelangelo e muitos outros grandes nomes da Humanidade foram se desenhando alternadamente.

O líder legalista, com olhar de certa indignação, respondeu em tom grave:

— E o que fizeram com o seu maior mestre? Crucificaram-no!

O advogado humanista retrucou de imediato:

— Eles podem aprender, nós podemos ensiná-los!

Todos os pais, ao centro, voltaram seus olhares reprovadores ao advogado e disseram telepaticamente em tom elevado:

— Não podemos violar a Lei!

O líder legalista engrossou o coro:

— A Lei e nosso empreendimento! Viemos atrás da espécie mais amorosa para salvá-la do perigo iminente. Precisamos de todo o amor no Universo para completarmos nossa missão. Não há necessidade em lembrar que a questão não é inteligência e, sim, empatia.

— Pais, imploramos, eles podem evoluir…

O líder legalista interveio de imediato:

— Assim?

Logo, as imagens ao centro se converteram em perversões, guerras, assassinatos, crimes de todas as espécies, corrupções, vilanias etc.

Os pais, em bloco, abaixaram as cabeças e fecharam os olhos, recusando-se a verem coisas tão baixas, há milhões de anos esquecidas em sua própria civilização.

Em uma última cartada, o advogado converteu as imagens em demonstrações, de afeto, atos de honra, atos heroicos, cenas de nobreza de espírito, cenas de amor familiar, com os dizeres telepáticos:

— Para nós, humanistas, essas pessoas que mostramos agora têm um valor inestimável de amor que supera o conjunto de todas as demais espécies. Deem-lhes uma oportunidade! — disse em retumbante apelo sentido por todos em seus corações.

O líder legalista se voltou aos pais e finalizou seu discurso:

— Estamos aqui pela espécie e não por indivíduos. Lembramos: 0,3366%. Não merecem tamanho risco e consideração. Não podemos encher nossa nave de monstros. Não temos tempo e energia.

O advogado apenas se restou a falar:

— Pais, esperança e compaixão!

Os pais, encerrando o debate em ordem telepática, após breve meditação, obtiveram o consentimento de todos, que restaram em silêncio mental. E deram a ordem final:

— Mapeiem o DNA de todas as espécies amorosas e façam o resgate da espécie mais nobre deste planeta. Não temos muito tempo.

E assim foi feito. Um grande arrebatamento foi efetuado e a nave partiu para outro sistema solar.

Um representante dos pais foi receber, em um imenso salão, os membros da espécie escolhida. Sentiu em seus corações o amor familiar, a caridade, a compaixão, o senso de proteção mútua. Toda aquela boa energia que captou, retribuiu gentilmente.

Com seus passinhos desengonçados, um dos pinguins se desgarrou do grupo e caminhou para mais próximo daquele pai. Nunca tinha sentido tanto amor. Girou a cabecinha para o lado, num misto de curiosidade e alegria, e o olhou com gratidão. O pai retribuiu aquele olhar feliz, que era a própria felicidade da Mãe Natureza, e sorriu.

 

Rodolfo Guimarães Neves. Nascido em 01/11/1979, em Olinda, Pernambuco. Teve poemas e contos selecionados em diversas antologias. Seu conto “O Mal Iluminado” compõe a antologia de contos “23 Formas de Morrer”, da Editora Amélie. É autor da ficção científica “A Dinâmica Orgânica”, da Editora Paradoxo, e roteirista da HQ homônima, nela baseada, juntamente com o quadrinista Pedro Ponzo. É também autor da antologia de contos e poemas intitulada “Eles, Outros Contos e Poemas” e da peça teatral “Ressentimento”, estas últimas da editora IGP. Foi selecionado no concurso de contos “KosmoKontos” da Editora Ventura com seu conto “A Invocação” (2022). Por fim, é autor do frevo de bloco “Cidades Irmãs” e do frevo canção “Aurora das Festa”, cujos arranjos foram elaborados pelo Maestro Parrô Mello e encontram-se devidamente registrados na Biblioteca Nacional. 

 

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