Dedos de Prosa II

Wellington Amâncio da Silva

 

Ilustração: Viola Sellerino

 

Entre as penas, samambaias

 

“[...] a maldade dos homens não teve outra origem senão nas suas 
calamidades.”.  
Giacomo Leopardi

“Você testemunha injustiça, mas segue adiante em silêncio. 
Que falta de sorte a sua, nesta noite estrelada, 
presenciar certas coisas e agora ser culpado de passividade.”.  
Neguinho Dantas

“Eu quando saio/Pelo mar afora/Faço de conta/Que já vou embora...”. 
Antônio Marcos, Gaivotas


“Filho da pólis [1], como é fruto das tuas ausências a comichão da procura. O tédio é uma dor aveludada. Por isso, não se foi ainda o que havia de brutal no homem primevo (nos sufoca, nos toma em demasia e nos leva às obscuridades) — essa violência que engole a palavra, que faz calar, há o pó na garganta, as alimárias e as iras nas entrelinhas da vida, quando o diálogo falha e os homens latem, por isso o Coliseum de cada dia como paliativo. Nesta mesa de bar, olho ao redor da multidão e quase não vejo vivalma, exceto dentro do meu copo americano. Um menino noturno estende a mão para mim e me pede uma moeda para um suposto pão, um suposto pão também noturno, porque também não conhece Chopin; resta ao filho da pólis as migalhas noturnas. Eu não nego uma moeda a ninguém. Os homens são filhos das circunstâncias, porque em algum momento de suas vidas alguma coisa externa os toma de surpresa fazendo-os comuns, trêmulos, seus semblantes como de palhaços falhos. E o dia lhes é indiferente e o filho da pólis boceja muito, porque não encontra convívio entre os filhos da esculhambação, e ninguém entende uma palavra dita, neste estado febril em que se encontram as coisas; seu corpo é invertido, não haverá redenção. E se Jesus disse “Filho do homem”, eu digo hoje “filho da pólis, porque a vez de falar agora é minha! E Priscila Richardson, amicíssima, pintadíssima, descolada, num sempre salto alto, questiona: “Que porra é o filho da pólis?”; eu digo que não sei ao certo que porra é o filho da pólis, que talvez deva ser, quem sabe, alguma coisa lá para as bandas da Grécia Antiga, que no fundo acho bonito dizer “filho da pólis”, porque eu leio filosofia nas horas vagas, porque eu tenho graduação em História, porque eu não odeio este corpo onde habito, porque eu gosto de falar difícil. Priscila Richardson pula à janela, salta e voa anu-preto ao firmamento, novas paragens e tal. O caso é muito sério, nosso Homo sapiens é nascido em berço de tumulto, como não sabe nada do Começo é um desencontrado — Homo sapiens sapiens humanitas, ou Homo sapiens sapiens bestialis. Eu disse que olhe para as próprias mãos e me diga a que pertence. Vejam adiante, no chão, o sobejo da civilização muito apreciada pelos roedores, e para aqueles que não suportam seus caprichos, hão de lascarem-se, ao final da reta! Ao meu redor, bandeiras variegadas, ferros em múltiplos formatos, fumo e fogo e cinzas, muitos dedos em ristes, muitos espadachins e espadados… é a vida que temos hoje. Aqui mesmo, neste bar, vejo o universal, uma repetição de gestos, de sensos de causas e efeitos, e os melhores homens dentre os outros, aqui dentro, são como seres héteros a desfilarem sisudos com o archote de Prometeu dentro do orifício monossilábico, dentro do rabo. Na beirada da calçada, à sombra profunda de uma frondosa árvore, comporta-se dócil o corpo inerte de um bebum. Tal imagem deveria ser posta no centro da bandeira nacional. Em sua boca dócil e aberta uma mosca é acolhida, por isso ainda há alguma bondade neste município de coronéis analfabetos; ele parece indiferente à visitante, assim como um porteiro de edifício, que apenas quer cumprir o seu dever. Será que o bebum sonha, ou há dentro dele apenas um branco vácuo? E se há este espaço zerado dentro dele, então, como poucos neste mundo, encontrou Jeová. Tão imóvel e tão desnudado de humanidade, não sei se é ainda um homem ou tornou-se uma pedra, ou um anjo mesopotâmico. Nunca vi no rosto dos que dormem um sono bom e profundo tamanho desprendimento e abandono de tudo. O seu rosto não é o de um morto, nem de um vivo, aliás. O seu rosto é puro como o de um santo. Em seu semblante eu vejo aquela absoluta ausência de expressão, típica das coisas que não têm rosto, como uma nuvem ou uma cachoeira. Imediatamente, ao observar o bebum inerte, um jovem que passa se contorce numa rajada de gargalhadas — a trágica música de Antônio Marcos roda na radiola, e me parece que tal gargalhada acentua uma espécie de dor que soa sob as notas graves do violão. Não percebi (porque o inconsciente rege nossos interesses) o fundo rascado da calça do bebum em que se via as nádegas, seu Manifesto. Apesar de tudo, escrevo. Eu escrevo como quem mostra assentado o rego do rabo. Por sorte, o melhor de perder tempo sempre arrasta junto um pouco de paixão. Escrevo para não me transformar em uma pedra e não perdoar meus clichês. Não tenho muitas ferramentas, não posso ter muitos livros. Às vezes eu os roubo. A moça da biblioteca da Universidade me olhou de cara feia quando passei por ela sentada e um aparelho emitiu um som estridente; eu não sabia que colado à orelha do livro que eu trazia dentro da calça jeans havia um dispositivo que acionava aquele aparelho sonoro; não houve consequências para aquele meu primeiro roubo, além de olhares desconfiados; aprendi a retirar as etiquetas com o dispositivo atrás da orelha dos livros, como fazia a nossa Josete Londa, e nunca mais fui incomodada pelo som estridente do aparelho à mesa da bibliotecária. Roubar, todavia, apenas para matar o tempo (dos poucos que abro para sondar as páginas, dentre os livros roubados, há muitos que não entendo uma vírgula, nem quero). Exceto a minha casa, há somente dois tipos de lugares onde estive todos esses meses: este bar e as pequenas bibliotecas, a deste município, a de Pariconha e a de Água Branca. E aqui, nesta mesa, minhas pequenas leituras, impregnadas da música de Antônio Marcos, se misturam aos vultos caóticos de bêbados que adentram à minha retina. Se leio um verso de Byron percebo que cada frase está impregnada deste suor etílico, deste cambalear sem norte, sem sorte, destas mãos ensebadas de fumo, destas faces de olhos confusos. Isto ocorre porque sempre o leitor coloca suas asneiras dentro do texto do autor. E arrisco-me demais para não escrever. E o escritor não é outra coisa senão um ostentador da própria sujidade interna, destas mãos ensebadas, destes olhos que olham sem querer curar o mundo; o escritor de ficção hoje no Brasil é um incendiário sem isqueiros, seu fogo é imaginário, porque se ele escrever críticas verdadeiras e não tendenciosas as pessoas vão dizer: “Ah, que escritor triste e problemático!” (e se ele escreve boas mentiras ele se acha Deus). Há um bálsamo na transparência sorridente de uma garrafa de vinho — do seu contrário, não haveria força que pudesse carregar-me, de um bar a outro, de uma estante de livros a outra, de um sonho a outro, de uma leitura muito superficial a outra. Eu mesma não sei se de fato devo estar… [2] Eu sei que todos os sentimentos arcaicos são perturbadores, porta de saída de si, um descontrole que explode na cara e no final, perde as estribeiras nas imersões alcoólicas; chora a musa que não se pode possuir, e eles pensam que suas próprias as lágrimas soam em fá sustenido, sibilando como cobra carente à vulva atônita e encrespada e até o âmago extático da alma da musa imaginária. É por isso que estes filhos da pólis se embebedam e morrem, mas não antes de chorarem tanto para as garrafas, até ao rés do chão do patético, até chorarem dez vezes mais os litros de pinga que bebem todos os dias; esses bêbados todos nunca deram no couro de verdade, sempre brocharam ou desconversaram em tolices após suas ejaculações precoces, por isso foram abandonados ou traídos, porque brochões verde-amarelos, os murmuradores durante o coito, se justificam acusando a parceira de frigidez, e transam ligeiramente e em viés, clamando em pensamento por Stalin, Adam Smith, Marx e Jeová. Este lugar fede a esperma frustrado. A estes filhos da pólis, assim como Onã [3], o capado, nunca será possível lembrar seus rostos — isso porque desaparecem, enquanto ainda pensamos neles. A vida é bela tal como o cio, um bocejo, um surto, tal e qual a descoberta por demais passageira de que Darwin estava certo! Quem não entende a vida se fode, se lasca, se arromba. Logo o afoito acha que sabe das coisas e bebe. E se há alguma beleza nessas vidas de boteco, esta se esconde fundo nos recantos de uma vida aos farrapos, quando o bebum, sempre dramaticamente machista, se lembra do seu amor impossível, da imaginária traição da amada, da falsa castidade desvelada em trágica lua de mel, no ciúme que o corroeu por dentro, da fixação a estas coisas todas tolas, e de somente poder enfrentar, enfim, o seu destino quando a pinga ofusca este destino. Por isso, numa metáfora, todo bêbado que se preze tem o cu à mostra. Não me embriago às quedas, ainda que eu mostre o rabo; qualquer coisa bela dentro de mim somente funciona quando escrevo, eu já disse, e a escrita é o ópio dos vaidosos, o pior dos vícios, porque aí a gente mostra toda a nossa intimidade a partir do buraco em que Jeová nos empalou. Veja aquele homem, ali, num recanto. Parece-me não ter ainda quarenta anos. Mas, já o rosto lavado de lágrimas, desde que começou a tocar Gaivotas, de Antônio Marcos. Todo mundo o conhece: é o filho do pastor, aquele, você sabe, que me visitou duas ou três vezes no passado. Nos primeiros acordes o bar se transforma — ali um moço tenso balançando a perna esquerda, uns abaixam a cabeça em reverência, talvez, e outros respiram fundo, mas, aquele filho de pastor, soluça sozinho, ali, num canto, e ele sabe que seu soluço é fingido, mas precisa deste soluço, porque é tudo o que ele tem; é por meio de tal soluço que se lhe ativa um fogo e toda uma arte de se emocionar; soluçando fingidamente lhe advém um transe e estando em transe consegue chorar de verdade, tendo como tema do seu choro a mulher que tanto ele mesmo traiu e maltratou e que depois foi por ela abandonado. Flagro um jovem apontar dizendo: “Olha o corno chorão…”. Na multidão que agora se choca, ombro contra ombro, há um apagamento de veredas com os próprios pés, porque ninguém mais ali sabendo para onde ir descobre nessas “ausências de lugar” um ombro imaginário e existencial para se recostar, enquanto anda cambaleante e pendido. São bárbaros os sentimentos. E tais são que nunca param de nos invadir. Pergunto àquele homem pelo motivo pelo qual chora? “É que a vida é tão grande, senhora, que até me sinto acuado, às vezes”. Descobrimos que fora dentista bem-sucedido, até cair no vício. Mesmo bêbado ele me confirmou: “Eu fui dentista. Altamente profissional! Já implantei molares de jegue em boca de lobisomem.”. Escrever. Na verdade, nunca entendi plenamente a palavra, quando igual aquilo mesmo que ela diz e que não pode se tornar o que ela diz (são os bárbaros!). “Eu fui dentista.” — ele disse —“Hoje, diante das circunstâncias, elegi este modo existencial”. Vinte anos de casado, dois filhos; o divórcio. Não quero me debruçar sobre a sua vida — eu pensei —, ou escutá-lo se rememorar da sua convivência familiar. Não haveria explicação a certas coisas. Elas acontecem, apenas (e por não poderem falar acerca do impossível muitos deles escolhem chorar, ouvindo Antônio Marcos). Ora, querer dizer mil coisas sobre um acontecimento pretérito é o mesmo que não ter o que dizer. Ofereço-lhe meu ombro para recostar. Ele relaxa por um momento e soluça, talvez para pensar com dificuldade acerca da ideia de pegar em minhas coxas, o que de fato acontece; eu lhe nego e ele insiste; um bêbado total não merece o toque da pele suave de uma coxa feminina, por isso deixo-o subir um pouco mais por minha coxa depilada e ele apalpa num susto os meus testículos. O susto! Sai às pressas cambaleando, os olhos redondos; eis mais um bêbado do interior, típico dos pequenos vilarejos sertanejos — ainda que esteja péssimo, discerne bem com o tato o que no fundo eu sou em parte. Acho que este velho dentista não acredita mais no feminino. Talvez, a condição de alcoólatra não lhe permita pensar que hoje uma mulher como eu pode ter testículos. Não tenho preconceitos contra bêbados, ou ojerizas. De qualquer forma, a gente roda e roda sem jamais poder entender e explicar o turbilhão de acontecimentos desta vida — por causa disso, talvez, ele escolhesse chorar ouvindo Gaivotas, de Antônio Marcos. “Eu fui dentista! Me respeite, seu viado!” — apontando o dedo para mim ele braveja do outro lado da mesa. A sua cara tem a dignidade confusa de um capitão num naufrágio.

 

[1] Encontrei este texto num boteco. Escrito em papel de embrulho, letras miúdas, duas folhas escritas, frente e verso, dobradas em quatro partes. Assinou-se “Aline” à caneta vermelha, à esquerda e embaixo. Digitei seu texto e o modifiquei bastante, para deixá-lo mais confuso.

 

[2] Nesse trecho há uma mancha escura de “tira-gosto”, isto é, de gordura de toucinho, pelo cheiro rosado. Infelizmente não consegui transcrever toda a frase.

 

[3] “Então disse Judá a Onã: Toma a mulher do teu irmão, e casa-te com ela, e suscita descendência a teu irmão. Onã, porém, soube que esta descendência não havia de ser para ele; e aconteceu que, quando possuía a mulher de seu irmão, derramava o sêmen na terra, para não dar descendência a seu irmão. E o que fazia era mau aos olhos do Senhor, pelo que também o matou”. Gênesis 38:8-10

 

Wellington Amâncio da Silva é sertanejo nascido e criado no interior das Alagoas, Delmiro Gouveia. É formado em Filosofia e mestre em Ecologia Humana. É membro do editorial da Revista Utsanga — Rivista di critica e linguaggi di ricerca, entre outras. Publicou livros de ficção e ensaios em lugares interessantes.

 

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