Dedos de Prosa II

Rodolfo Guimarães Neves

 

Foto: Magali Abreu

 

O DIA DO SACI

 

Mais um 31 de outubro havia chegado. Dias antes, na reunião de condomínio, os moradores do edifício Porto do Sol, à beira-mar de Boa Viagem, haviam decidido em maioria, por mais um ano, comemorar o Halloween, o famigerado Dia das Bruxas. Não sem antes ouvirem o costumeiro e veemente protesto de Patrícia, que insistira que a festa deveria ser em homenagem ao Saci, conhecida figura do folclore pátrio. Voto vencido, por mais um ano.

— Pois que encham este prédio com essas abóboras ridículas. O verdadeiro homenageado do dia é o nosso querido Saci!

Filha do falecido Major Vital, do glorioso Exército Brasileiro, Patrícia havia aprendido com o pai o amor à pátria e a valorização da cultura nacional. Contudo, dividia o andar com Cláudia, que considerava uma dondoca americanófila imbecilizada, entusiasta da festa estrangeira. Detestavam-se há anos, sobretudo nessas ocasiões. Aliás, o Quatro de Julho era outra data insuportável para Patrícia.

Pois muito bem, o Dia das Bruxas, digo, do Saci, havia chegado e as crianças perambulavam fantasiadas de andar em andar, pedindo doces ou ameaçando com travessuras.

A primeira leva de crianças do condomínio apareceu no andar do conflito “americano-brasileiro” e tocaram a campainha das duas portas opostas do hall. Ambas as adversárias ideológicas as abriram ao mesmo tempo e, de relance, encaram-se, para logo desviarem os olhares para as crianças.

— Doces ou travessuras! — gritaram em uníssono, estendendo sacolas.

A patriota, com uma grande sacola cheia de bonecos de sacis de pelúcia, distribuía os brinquedos, sempre lembrando: “hoje também é o dia dele, garotada.”

Cláudia, fantasiada de bruxa e com enfeite de uma assustadora abóbora na porta, distribuía doces dos mais variados à criançada. Não tardou para que estas corressem ao elevador. Cláudia não pôde deixar de censurar Patrícia:

— Você vai ficar dando esses bonecos ridículos a noite toda, vizinha?

— E você é bruxa de verdade para andar com essa roupa patética, querida? — retrucou Patrícia.

Fecharam as portas ao mesmo tempo.

E foi assim por toda aquela assombrada noite, as crianças ganhavam bonecos e doces e as duas trocavam ofensas das mais estapafúrdias.

— Você é uma alienada!

— Você não sabe brincar. São crianças, sua metida!

E por aí foi.

— Não sei como seu marido tolera você vestida assim na sua idade!

— E você só se manteve solteira por causa da pensão militar deixada por seu pai! Ou então porque é sem graça mesmo e nenhum homem a quer!

Essa tinha sido demais, mexeu com os brios de nossa patriota. Bateram as portas.

E passou aquele dia para o sossego de Patrícia. Rancorosa, guardou as palavras da vizinha como ofensa pessoal e à cultura nacional.

Passou-se um ano, nova reunião de condomínio, nova derrota de Patrícia, que, além disso, pelas normas estabelecidas para a ocasião, deveria dar apenas doces, em vez de bonecos de saci. Inclusive, foi uma insistente proposta de sua rival.

Porém, Cláudia não sabia com quem estava mexendo. Patrícia era filha de militar e, pior, realmente versada nos mistérios das ciências ocultas, cujos segredos, ecleticamente abrangendo desde a Wicca a magias de matrizes de diversas regiões do mundo, foram-lhe ensinados por sua mãe, que a iniciou numa secreta instituição mística feminina, durante a faculdade.

As crianças começaram a perambular nos andares de baixo. Até chegarem ao nono, onde moravam, Patrícia iria praticar sua travessura com aquela alienada fútil!

Primeiramente, dirigiu-se para a grande fotografia de pintura a óleo de seu pai, em trajes de major. “Não neste ano, pai.” Era bicentenário da independência do Brasil. E prestou sua reverência numa continência com semblante respeitoso e resoluto. Logo após, correu para um cômodo específico do seu apartamento, com um altar, um espelho e um monte de objetos cerimoniais misteriosos. “Mal-amada nunca, americana de araque”, pensou.

Numa cerimônia um tanto macabra, despejou um óleo perfumado, pétalas de rosas e outros ingredientes num caldeirão. Após isso, canalizou seu rancor a uma boneca de pano, em cuja perna esquerda enxertou um graveto para, em seguida, sussurrando: “quebra”, parti-lo em dois, ao tempo que se ouvia um estridente grito vindo do apartamento do outro lado do hall. Um malicioso sorriso de satisfação esboçou-se em sua bela face.

As crianças alcançaram o nono andar. As campainhas tocaram.

— Doces ou travessuras!

Patrícia, toda fantasiada de bruxinha, com direito a chapéu pontiagudo e estampa de luas e estrelas em seu vestido negro, abriu a porta com o sorriso de alegria.

— Aqui, meninos, muitos doces!

— Obrigado, tia!

Os pequenos voltaram-se para o apartamento de Cláudia e tocaram a campainha de novo, com ansiedade.

— Já vai!

Quem abriu a porta, no entanto, foi o marido de Cláudia. Esta veio mancando por trás e se apoiou nos ombros do marido. Sua perna direita estava quebrada. Escorregara durante o banho.

— Dessa vez não temos doces, minha esposa se machucou, estamos indo ao médico.

— Sem doces? —  Um garoto com máscara de Freddy Krueger, valendo-se do anonimato, foi audaz:

— Que quebre as duas pernas, velha manca e mocoronga!

E todos os meninos correram rapidamente pela escada de incêndio abaixo, aos risos.

— Essa juventude… não sei onde vamos parar… —   disse o marido da Cláudia, amparando-a no seu mancar em direção ao elevador —   a propósito, vizinha, você está linda de bruxinha.

Cláudia fuzilou os dois com os olhos. Não queria acreditar no atrevimento de seu marido e sequer imaginar qualquer coisa além de um inocente elogio.

— Obrigado, querido — disse Patrícia com sorriso nos olhos e uma piscadela — e feliz Dia do Saci para vocês! — finalizou retirando um involuntário sorriso do marido de Cláudia. Esta lhe deu um leve tapa na nuca, indicando com os olhos o elevador. Foram-se. Patrícia estava radiante, correu à sala e bateu nova continência diante da fotografia de seu saudoso pai. Missão cumprida! Doce travessura!

E nunca mais nossa bela e querida patriota foi impedida exaltar a cultura nacional no condomínio, ainda que fosse a entregar os já afamados sacis de pelúcia, seja no detestável Halloween, seja nas ocasiões de comemoração do nosso folclore. Pois bruxa que é bruxa de verdade encanta, não apenas nas vestes, como também enfeitiça em sigilo… em qualquer dia do ano.

 

Rodolfo Guimarães Neves. Nascido em 01/11/1979, em Olinda, Pernambuco. Teve poemas e contos selecionados em diversas antologias. Seu conto “O Mal Iluminado” compõe a antologia de contos “23 Formas de Morrer”, da Editora Amélie. É autor da ficção científica “A Dinâmica Orgânica”, da Editora Paradoxo, e roteirista da HQ homônima, nela baseada, juntamente com o quadrinista Pedro Ponzo. É também autor da antologia de contos e poemas intitulada “Eles, Outros Contos e Poemas” e da peça teatral “Ressentimento”, estas últimas da editora IGP. Foi selecionado no concurso de contos “KosmoKontos” da Editora Ventura com seu conto “A Invocação” (2022). Por fim, é autor do frevo de bloco “Cidades Irmãs” e do frevo canção “Aurora das Festa”, cujos arranjos foram elaborados pelo Maestro Parrô Mello e encontram-se devidamente registrados na Biblioteca Nacional.  

 

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