Dedos de Prosa II

Rodrigo Melo

 

Foto: Marcelo Leal

 

O QUE VIM FAZER AQUI

 

Urucutuques é um remanso. Não há turistas com camisas floridas e protetores solar, tampouco hipsters com tatuagens coloridas e barbas bem cultivadas, muito menos DJ’s ou headbangers. Acho que nunca vi um policial fardado, em patrulha. Na verdade, lembro de um que frequentava a praça principal, mas ele não usava arma ou colete e sua ronda se limitava a uma partida após a outra de dominó.

Era como se a cidade tivesse estacado em algum dia da década de 70 e uma parte de sua alma continuasse lá, preservada em um tipo de inocência que não serve para muita coisa, a não ser que o sujeito tenha desistido ou se esquive de grandes emoções. E era justamente desse jeito que eu andava, um bocado esquivo, e continuaria assim “ad infinitum”, não fosse uma inesperada ventura que me veio através do que lá fora chamam de wake up cool ever – acho que é isso -, que significa, basicamente, uma chamada de consciência absoluta. Um dia, de frente para o espelho, do nada dei de procurar o indivíduo que achava que era. Meia hora ali, em uma extenuante busca. Não o encontrei. Em seu lugar, um quase estranho, aquele tipo com quem cruzamos na rua e vasculhamos na memória de onde conhecemos. Sentia que passava por algum tipo de despertar e que havia algo de espiritual naquilo.

De toda maneira, lá estava eu, distraído, a caminhar pelas ruas de Urucutuques com sacolas de compras nas mãos, quando escutei a sua voz:

– Que tal uma cerveja?

Devia ter uns trinta e poucos anos, cabelos alisados e pintados num tom acaju, a alça do vestido caindo até o meio do braço. Seu rosto era bonito, mas desgastado. Estava em uma das mesas de um bar que, na fachada, tinha escrito “Supermercado Iguatemi”.

– Estou resolvendo umas coisas.

– Resolve depois.

– Não posso.

– Tá com medo?

– De quê?

– De mim.

– Ainda não deu tempo.

Ela sorriu. Não tinha um canino e um pré-molar.

– Gostei de você. Vou ficar aqui, te esperando. A vida foi feita pra se viver.

Não encontrei Lucky Strike na banquinha e acabei comprando uma carteira de Broadway, que me causava um pigarro enorme. Fui até o carro e arrumei as sacolas no banco do passageiro. Bastava ligar o motor. Meia hora de ramal. Colocaria uma música e a viagem seria rápida e agradável. Antes de girar a chave, no entanto, pensei nela. Havia qualquer coisa diferente nos seus olhos – esperança ou fé -, embora também tenha enxergado um tanto de desespero e loucura. A vida tem que ser como um rio em dia de temporal, imaginei-a dizer para alguém, ajeitando o cabelo sobre os olhos. Fechei o carro e caminhei até o bar.

Estava na mesma mesa, agora acompanhada de uma larga morena. Sentei em uma das cadeiras, tirei um Broadway da carteira e o acendi.

– Daiane, pega uma cerveja – ela disse para a morena. – O moço tá com sede.

Daiane me olhou e, em seguida, se levantou e seguiu, balançando sua enorme bunda de um lado para o outro, rumo ao balcão onde havia um velhote mal encarado usando boné.

– Isso aqui era um mercado?

– Acho que sim. Agora é bar e puteiro.

– Não imaginei.

– Ficou decepcionado?

– Não tenho problemas com bares ou puteiros.

– Que bom. Tenho um quartinho limpo lá atrás. Quer conhecer?

– Agora, não.

Daiane retornou e serviu a cerveja; primeiro, no copo delas e, depois, no meu. Dei grandes goles, a escutar aquela mulher falar. Dizia se chamar Marisa, crescera em uma área rural longe dali e tinha uma filha de oito anos que vivia com a avó. Chegara a Urucutuques há três meses. Achava a cidade parada, a não ser nos dias de sábado, quando os trabalhadores das fazendas vinham fazer compras e beber. Uma leve brisa cortava a rua da feira, bem à nossa frente, e trazia até nós o cheiro de verdura apodrecida, que se misturava ao da cerveja que secara sobre o piso. Algumas moscas graúdas revoavam à nossa volta.

– Nunca te vi por aqui.

– Venho pouco à cidade. Passo no mercado, na padaria e volto pra casa.

– Deve ser casado.

– Não.

– Algum motivo essa pressa tem.

– Sou só um sujeito que gosta de solidão.

– Eu não ligo se você for casado.

Além de despachar as cervejas, o velhote colocava discos pra tocar. Naquele instante, em duas velhas caixas de som penduradas na parede, Silvano Sales se esgoelava, a rimar castigo com abrigo. Eu conhecia aquela música e, como havia bebido alguns copos, cantei o refrão.

– Ih, tá apaixonado – Daiane falou.

– Parece?

– Muito.

– Daiane, você é uma garota esperta, que deve conhecer os segredos da vida, mas errou nisso. O que acontece comigo na realidade é algo bem diferente de paixão.

– Tá desiludido – Marisa disse.

– Também não. O que tá rolando, como os gringos dizem, é um negócio chamado Wake up cool ever.

– Que porcaria é isso?

– É como se, de repente, num susto, eu tivesse começado a entender o que é que vim fazer aqui.

– E o que você veio fazer aqui? – Marisa quis saber.

– Ainda não descobri.

– Me conta, quando souber.

– Pode deixar.

Daiane se levantou.

– Vou pegar outra.

Bebemos mais duas ou três. Minha língua começava a enrolar, quando fiz um brinde a todas as coisas boas que ainda nos aconteceriam. Os copos estalaram no ar.

– Que tal ir lá no quarto agora?

– Hoje, não, Marisa. Mas volto qualquer dia desses.

Ela fez um muxoxo.

De onde estava, vi dois cachorros muito magros cruzando, uma senhora varrendo a calçada em frente a sua casa e outra senhora a caminhar com uma Bíblia na mão. O sol começava a se pôr – o sol laranja de Urucutuques, uma panela de ouro a reluzir o seu brilho sobre o teto de velhas casas. Em alguns minutos, ele começou a se esconder atrás do horizonte e o céu mudou de cor: do azul claro se transformou em amarelo, depois ficou lilás, azul marinho, até que, subitamente, a noite chegou. Eu poderia estar em casa, tentando escrever alguma coisa, a escutar o barulho dos sapos e dos grilos, mas estava ali, num puteiro com o letreiro “Supermercado Iguatemi”, a imaginar que existia algum significado naquilo e que a única coisa que precisava fazer era ficar mais um pouco. Como se aquilo tornasse a vida algo ainda mais cômodo e confortável. Ou, também pensei, como se, de algum modo, eu tivesse feito uma jornada no tempo e regressado a um dia qualquer de 1976.

 

Rodrigo Melo escreve prosa e poesia e tem quatro livros publicados. Vive em Ilhéus, Sul da Bahia.

 

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