Dedos de Prosa III

Gustavo da Rosa Rodrigues

 

Foto: Adelmo Santos

 

Deus ao mar o perigo e o abismo

 

Ele vai explodir o avião. Eu sabia. Desde o começo, sempre soube que o meu destino era morrer agarrado a uma mesinha de polietileno com fogo cegando os olhos míopes enquanto crianças afogadas passam do meu lado, boiando, de coletinhos laranjas, indo pra uma colônia de férias no céu. Se o avião cair na água, já era. Na terra, talvez o piloto tenha uma chance de fazer um pouso forçado, ou então cair em cima de umas árvores e aí dá pra tentar achar uma das oito saídas de emergência, que não serviriam de nada porque o avião já estaria todo arrebentado, e teríamos que engatinhar até a abertura mais próxima passando por cima, isso é certo, de pedaços de pessoas pelos cantos como se fosse uma piscina de bolinha versão hardcore; o negócio é ficar no fundo, sempre no fundo, porque é a parte que bate por último, e tem uma estatística que diz que 90% dos sobreviventes de avião sentaram nas últimas fileiras. Mas, nesse caso, acho que não tem saída. Ele pode levantar durante a noite, ir lá no cockpit e anunciar o sequestro, afunde esse avião no mar, ou, quando estivermos nos aproximando da costa da África vá direto para as Pirâmides do Egito, melhor acabar com aquilo, que se fodam os faraós e a especulação turística, ou, dê meia volta e arrebente o Christ the Redeemer — mas por que alguém iria sequestrar um avião no Brasil? Pra bater aonde? Vai ver o Brasil agora é um novo alvo do Estado Islâmico, ou Al-Qaeda, e eles estariam mandando uma mensagem afirmativa reconhecendo que os países economicamente emergentes mas nem tanto também entram na conta? 12 horas de voo, 7 horas só em cima do Atlântico, sem mapa de voo. A companhia é tão chinela que não tem nem o mapa do voo pra pessoa saber onde vai morrer.

Ele se vira de um lado pro outro no assento desde que sentou e fica praguejando alguma coisa em árabe, ou é francês? não dá pra saber, fala sussurrando, pra dentro, como se rezasse. Quando chegou na minha fileira e apontou pro assento da janela efusivamente dizendo hã, o cabelo comprido e a cara imberbe, perguntei em português aqui e ele não respondeu, só apontou, mas quando se sentou disse obrigado, achei que fosse brasileiro. Tinha que chover, sempre decolo com chuva durante a noite; pela janela oval só as luzinhas vermelhas e verdes em rotação universal, 24 de dezembro, deve ser isso, e os risquinhos da água na janelinha fake de plástico ou acrílico anunciando a ressurreição, tears of joy; agora ele pegou a revistinha da companhia, o cara parece que é de boa, tô até viajando, lê revistas de turismo e tal; folheia o negócio recheado de imagens profanas por dois segundos e, num som abafado, socando a revista atrás do assento da frente, sussurra pra dentro de novo, árabe ou francês, vai saber, e se inclina na janela pra tentar ver alguma coisa; certo que ele pode ter colocado a bomba na mala e tá com um detonador na calça, escondido; lá fora, as luzinhas fuzilantes das asas, revestidas de polietileno, que não servem pra nada, e os funcionários caneta marca texto tocando a vida das pessoas pra dentro; ele deve tá tentando conferir se a mochila com os explosivos já entrou, calça jeans rasgada no joelho; telinha do entretenimento, ele liga e seleciona filmes, dá pra ouvir o ronco da gasolina fluindo, e se eles se enganam e colocam menos do que precisa, ou se tem um vazamento tipo a Apollo 13 e estamos no meio do oceano sem o Gary Sinise pra nos salvar, aí já era, a única coisa boa é que o avião não explode, a não ser que o cara queime tudo, claro, e quando vê eles conseguem pousar e passar as instruções de segurança corretamente pra galera sair show, infle o colete só fora da aeronave, não corre, senhor, mantenha-se calmo, porque todo mundo tem que sair em fila, se bem que não vai dar pra saber, e no impacto, metade já morreu; o negócio é touch-screen, ele rola rola a lista de filmes oferecidos durante o périplo de 12 horas dentro de uma lata de sardinha que voa e ninguém sabe como; dá duas batidinhas na tela, o filme não entra, paraísos perdidos, talvez ele nem seja um terrorista, só tá meio puto porque tem que viajar às pressas e queria continuar no Rio, entendível, ou alguém ligou dizendo que a mãe dele morreu e agora precisa voltar pra pagar pelo caixão e tudo mais; não entra, ele dá um tapa bem dado na tela esbravejando alguma coisa em árabe, é árabe, não francês, e solta uma bufada; que merda, o cara tá ficando puto e ainda nem decolamos, vai estourar essa porra aqui mesmo no chão; tenta desligar o negócio, mas a bosta nem desligar desliga, travou; ele inclina o banco pra trás e outra bufada, murmura de cabeça baixa e olhos na cintura, analisando a estratégia de ação e pedindo a última bença pra se vingar da companhia que não consegue nem oferecer as mínimas distrações antes do encontro final com o profeta; ele sabe, ele sabe de tudo. Luzinhas, as luzes das asas, me deram perto das asas de novo, se cair, já era; a chefe de cabine anuncia que as portas foram fechadas, embark completed, ligo a minha telinha, english, deutsch, français, italiano, desenhinhos, português, filmes, música, televisão, joguinhos — sem árabe sem mapa de voo; uma das aeromoças me entrega um saquinho plástico, dois, entrego um pro cara e ele faz um sinal assertivo com a cabeça, não deve ser terrorista, é gentil; pega o saquinho e nem olha, atira no chão e dá uma risada, uma cobertinha de poliéster dourada e um travesseirinho de bebê, tá de manga curta, sabe que não vai precisar de coberta nenhuma, não sente frio porque vai explodir tudo e o avião vai virar um fogo de artifício gigante celebrando nossa libertação eterna e a cessão de todos nossos pecados ocidentais; ele tira a bunda do assento e bota a mão no bolso com dificuldade fazendo questão de não encostar em mim, latino, e tira um pacotinho de chiclete, o Trident que parece uma mini carteira de cigarro, certo que o detonador tá escondido na caixinha, é agora; ele coloca o chiclete na boca sem tirar o papelzinho e vira de lado, juntando as mãos, com frio. O avião começa a andar, o comandante, preciso avisar o pessoal, anuncia naquela voz robótica cabin crew prepare for the take off please, só a companhia das luzinhas vermelhas, não tem mais volta, talvez se eu der um grito e pedir pra descer, que tô passando mal, ou que deixei o fogão ligado, ou que minha mãe tá morrendo ligaram do hospital, mas não; o cara tá puto, uma das mãos pressiona o rosto colado na janela, os olhos bem abertos, vendo o quê, as luzinhas vermelhas e o breu; vai ver na real ele só tem medo de voar mesmo, é isso, sou um merda, coitado do cara, tá inquieto porque viu que não tem mapa de voo nem uma mísera indicação de altitude ou tempo até o destino e tá apavorado; as luzinhas vermelhas se apagariam no primeiro impacto, nunca ninguém nos acharia, o foda é só o mar, depois que passar o mar tá tranquilo; ele se revira no assento, quem sabe o negócio é imitar o cara, colocar as mãos no rosto e fingir uma reza sussurrada pra ele ter compaixão de mim e não explodir nada, vai pensar que merda o cara do meu lado tá fodido que nem eu, não vou explodir nada, deixa quieto, desculpa meu Deus, esse cara não merece. Decolou, não tem mais volta mesmo, só daqui 12 horas, ou até a explosão; ele olha pra fora, as luzes das favelas da cidade do Rio de Janeiro mais próximas do céu, deve ter deixado um amor aqui, um grande amor no Rio.

Duas horas de voo, nada de explosão. O cara já ligou e desligou a tv umas quinze vezes, não para de se virar e volta e meia ainda resmunga, olhando sempre pra cintura, pro cinto de explosivos. Cinco minutos depois da decolagem e o cara já tinha tirado o cinto de segurança, com o aviso luminoso ainda aceso; já dá pra sentir um cheirinho de comida, o avião balança, pauso o filme, Trapped, o sinal do cinto acende; e se eu puxasse conversa, e aí meu da onde tu é, gostou do Brasil? sim, lindas, é, pessoal muito amável, e tu tá fazendo o quê? ah negócios, sim, eu tô indo visitar minha namorada, é, sim, morei na Europa um tempo, agora tô indo pra passar o inverno, sim, que merda, aqui tá muito bom né, é, não conheço o Rio muito bem, mas é lindo sim. A aeromoça se aproxima com o carrinho, sr. would you like something to drink? o cara nem baixou a mesinha de polietileno boia-salva-vidas que o pessoal avisou antes, o colete tá embaixo do assento, e as máscaras vão cair automaticamente, ninguém em pânico, de boa, se mantiver a racionalidade, 75% sai vivo daqui e vai escrever um livro de autoajuda; ele diz chicken water, comedor de bicho morto, and a coke. Olho pra minha mesinha esperança, uma bandejinha de papel alumínio com massa, um potinho de plástico com duas rodelas de tomate e uma folha de alface entocado do lado, um bolinho de chocolate, um pãozinho redondo, um potinho de geleia de goiaba, dois pacotinhos de polenguinho e talheres de plástico enrolados numa embalagem de plástico e um guardanapo de papel enrolado em outra embalagem de plástico. Tomo meu suco no guti guti, quente, mas tá valendo; ele pediu coca, olha praquela lata como quem olha pra uma perna irremediavelmente gangrenada, ou uma carta de amor de despedida, e balança a cabeça; acabou se ocidentalizando nesse tempo no Brasil, sabe que uma coquinha é contra os ensinamentos e doutrinas, mas força e a tampinha do alumínio se rende, o som da explosão do gás finalmente liberto depois de dias, meses, expandindo felicidade; em dúvida, olha pra janela, breu, gotas no acrílico, toma direito da lata e solta um arroto seguido de um grande puxada de ar, tava com sede, sabe que é a última coca da vida antes de explodir o avião, a culpa tá batendo forte, não poderia ter feito isso tão perto do céu; talvez o cara gosta mesmo de coca, que merda, e os dois quilos de açúcar vão fluir a serotonina providencial pra que ele decida não sequestrar nada; deixou metade do frango e nem encostou na água, dá mais uma golada; o cara tá de boa, deve ter problemas com colesterol alto, mas é magrelo; coloco o fone de ouvido de novo e dou play no filme com o dedo sujo de polenguinho. Desligaram as luzes pro pessoal não saber que vai morrer, não vou dormir enquanto ele não dormir; qualquer coisa ele vai ter que passar por mim se quiser ir no banheiro pra estourar a bomba, ou invadir a cabine, se ele levantar agarro as pernas e grito por ajuda; a luzinha da asa, incessante, falha a qualquer minuto, pegar um livro e ler, não dá, não vou ligar a luz aqui na cara do cara pra ele ficar mais puto e explodir tudo de uma vez sem compaixão, não, coloco o fone, pela hora, em cima do Atlântico, o avião vai até o nordeste por terra por uma razão, todo mundo sabe, a lua, do mesmo tamanho, nada de especial; finalmente o filhadaputa pegou a cobertinha, ainda bem, a última cochiladinha antes do sono eterno. No filme o cara sai atrasado de manhã pra trabalhar e quando tá descendo as escadas lembra que esqueceu o celular; volta correndo pra buscar o negócio no quarto só que nesse meio tempo a porta de metal bate com a chave do lado de fora e não abre por dentro de jeito maneira; o cara tá trancado num apartamento sem comida sem água sem bateria no celular, ninguém ouve, e pra piorar é um prédio abandonado, ninguém mora ali, o pico não tem nem energia elétrica direito, tudo gateado; ele gasta todas as energias gritando e tentando quebrar a porta, mas não rola; aí ele tem a brilhante ideia de rasgar o sofá e as roupas de cama e pendurar nas grades da sacada a palavra H-E-L-P e atear fogo, só que o negócio meio que foge do controle e o fogo se espalha pra dentro da casa e o cara quase morre asfixiado. O fera acordou, tudo escuro; alguém bate no meu ombro no caminho do banheiro, um cara gordão só de meia, bigode, camisa de flanela; o nutrido apoia as mãos no bagageiro perto do banheiro e sufoca a menina que tá na poltrona da frente; ele acordou mais puto que antes, se inclina pra frente, o cabelo comprido e fino encosta de leve na tela e ele volta a olhar pra cintura, agora com as mãos entrelaçadas; tá aí, chegou o gran momento, o gordão é comparsa dele, sim, levantou e fingiu que ia banheiro pra dar o sinal, uma encoxada abdominal na cara da moça; agora ele vai fazer a última reza e pedir perdão pela coca-cola antes de apertar o detonador Trident; o foda é que se ele levantar, não posso simplesmente dizer ô malandro onde tu vai, o cara vai achar que sou maluco, ou, pior, vai ficar ainda mais putaço que vai querer me explodir primeiro; aviso luminoso, please remain seated with you seat belts fasten, we are going through an area of turbulence, eh, pelo menos agora ele não vai poder levantar, turbulência; eu sempre soube que ia morrer num avião, sempre, janelinha quatro camadas de plástico não segura porra nenhuma, uma criança começa a chorar algumas fileiras na frente, pessoal tá acordando, do outro lado tem duas mulheres apagadas desde que a gente saiu do Brasil, certo que elas tomaram lítio ou dramin, água escorre pela janelinha, o cara ainda tá abaixado, rezando, a asa do meu lado parece uma trampolim com sete crianças em cima sem coragem de saltar, chocalhada, tão baixando de altitude, tá caindo essa merda; olho debaixo da poltrona, pressão nos ouvidos, não tem colete nenhum, lembre-se de inflar o colete apenas quando estiver já fora da aeronave, nunca dentro, ok, discernimento nas horas extremas é o que nos trouxe até aqui, Santos Dummont apertando a mão do alfaiate voador e dizendo vai malandro, que merda, por que eles dizem coisas do tipo em caso de um improvável pouso na água, que pouso, velho, não tem pouso, nem muito menos improvável, é provável, sempre foi provável, o avião tá baixando, fugir da turbulência, quebra-molas, os morros do ar, 200 quilômetros de ar, as luzinhas vermelhas, lindas, morrer no Natal no meio do Romanche Trench, um everest de profundidade com uma temperatura de 1 grau celsius e, com sorte, enroscar num cabo de internet submarino e acabar com a internet do mundo; sempre soube, amanhã vai ser notícia e todo mundo vai pensar, ufa, caiu um agora, então demora mais uns três meses pra cair outro, e meu corpo trucidado sendo levado para as profundezas oceânicas até que algum peixe mais faminto resolva se alimentar das minhas orelhas e se lambuzar com o sangue ainda quente de um dos braços de uma mulher, finalizando, de sobremesa, com pedaços do vestido de uma outra, florzinhas roxas e amarelas; mesinha do desespero tremendo, zumbido, o cara ainda tá abaixado, pode tá morto já e ter programado o dispositivo, ou a reza tá demorada mesmo, depois de tudo, se ele não explodir, mais chance de sair de vivo, please remain seated, tá baixando, vai cair certo, na próxima vou tomar dramin, sempre digo isso, mas é igual um amigo me disse uma vez, mesmo que tu teja lá no quinquagésimo sono, se o avião tiver caindo sempre vai ter alguém pra te acordar e dizer que o avião tá caindo, o cara levantou a cabeça, é agora, o pessoal do serviço de bordo sentou e tá colocando o cinto, nenezinho em prantos, please remain seated we are going through an… tá perdendo altitude, GPWS, seguro no encosto da poltrona, rígido, aperto os olhos, vai cair, sempre soube; tudo escuro, me inclino pra trás e sinto uma mão suada na minha; abro os olhos no susto, ele aproxima os lábios do meu ouvido e, segurando meus dedos com força, sussura numa voz adocicada — amigo, no tenemos apuro.

Gustavo da Rosa Rodrigues tem 26 anos e mora em Porto Alegre-RS. É escritor, poeta, tradutor e estuda Letras (Tradução) na UFRGS.

 

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